Por Pedro Barboza (PPCIS-UERJ)
Um cosmopolita à força
Fernando Henrique Cardoso nasceu em 18 de junho de 1931, no Rio de Janeiro. Sua família era de militares historicamente ligados à política. Em 1952 licenciou-se em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP). No ano seguinte ocupou o cargo de auxiliar de ensino da cadeira de Sociologia I, cujo membro era Roger Bastide (1898-1974). Em decorrência da volta deste à França, a partir de 1955 foi promovido à posição de primeiro assistente da cátedra, então ocupada por Florestan Fernandes (1920-1995). Em 1961, com a defesa da tese Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul, obteve o doutorado pela mesma faculdade onde se graduara. Entre 1962 e 1963 realizou curso de pós-graduação no Laboratoire de Sociologie Industrielle da Universidade de Paris. Em 1963 também logrou o título de livre docente da cadeira de Sociologia I. Sua atuação não teve fôlego, posto que com o golpe civil-militar de 1964 e as consequentes perseguições, partiu para o exílio, iniciando assim sua longa atuação em diversas instituições pelo mundo. Passando sua trajetória em retrospecto, Fernando Henrique afirmou que: “eu fui me tornando cosmopolita à força.”
No período de 1964 a 1967 ocupou importantes postos dentro de instituições acadêmicas latino-americanas. Destaca-se sua atuação enquanto docente na Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (FLACSO), na Facultad de Ciências Económicas da Universidad de Chile, além de sua atuação na cátedra de Sociologia do Desenvolvimento no Instituto Latinoamericano de Planificación Económica y Social (ILPES), órgão ligado à Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), no Chile. Em 1967 mudou-se para França, ocupando o cargo de professor de Teoria Sociológica no departamento de sociologia da Universidade de Paris-Nanterre. No ano seguinte retornou ao Brasil e, substituindo Lourival Gomes Machado, obteve a cátedra de Ciência Política. Uma vez mais sua atuação foi interrompida por conta do contexto repressivo vivido à época e, em abril de 1969, foi aposentado compulsoriamente.
Mesmo com essa condição, Fernando Henrique não cessou sua atividade intelectual. Junto com professores também cassados, criou, em 1969, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Também continuou com sua atuação internacional lecionando em instituições renomadas nos Estados Unidos, Inglaterra e França, além de estar à frente da International Sociological Association (ISA), no período de 1982 a 1986.
Sua carreira política se iniciou em 1974 quando Ulysses Guimarães o convidou a elaborar, em conjunto com outros intelectuais, a plataforma eleitoral do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) para o pleito que se avizinhava. Quatro anos depois foi eleito suplente para o senado, posto que ocupou a partir de 1983 porque o titular, Franco Montoro, elegera-se governador de São Paulo. Em 1986 foi reeleito e participou das discussões para a nova constituição. Em 1988 fundou com outros políticos e intelectuais o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Entre outubro de 1992 e maio de 1993 foi Ministro das Relações Exteriores do governo de Itamar Franco, deixando este cargo para ocupar o de Ministro da Fazenda. Fernando Henrique Cardoso foi eleito Presidente da República em 1994 e reeleito em 1998, ambas ocasiões em primeiro turno. Desde então, embora ainda ocupe o cargo de presidente de honra do diretório nacional do PSDB, afastou-se da esfera política institucional. Manteve colunas em grandes jornais do país, como O Globo, O Estado de São Paulo e Zero Hora. Desde 2010 preside a Fundação Fernando Henrique Cardoso. Foi casado com a antropóloga Ruth Cardoso (1930-2008), com quem teve três filhos.
Para além do seu legado à Sociologia, observar esta trajetória tão vasta é também um chamado à reflexão sobre uma questão sensível nas ciências humanas: a relação entre intelectuais e esferas institucionais do poder.
Por uma teoria original do desenvolvimento
O contato de Fernando Henrique com o ambiente intelectual latino-americano encontrado no exílio teve importância fundamental em suas contribuições ao campo das Ciências Sociais. Como emblemático deste período pode-se colocar o livro escrito em 1967 em parceria com o sociólogo chileno Enzo Faletto, Dependência e desenvolvimento na América Latina.
Em linhas gerais a obra tem como objeto algo caro à corrente desenvolvida na CEPAL: partindo de uma perspectiva própria, que não importava modelos dos grandes centros, compreender as razões da dependência das economias que se localizavam na periferia do sistema capitalista. Entretanto, a obra perseguiu este objetivo adotando um método analítico histórico e estrutural que permitiu reconstruir a configuração dos diversos grupos internos dos países periféricos. Esta abordagem distanciava-se da cepalina, pois enquanto esta observava a relação entre centro e periferia de maneira majoritariamente unilateral, aquela vinculava o processo social e econômico vivido no continente não só como consequência das ações dos poderes externos, mas também a partir da própria relação e atuação dos grupos domésticos da periferia.
A chave para entender como ocorreu o vínculo das economias periféricas às centrais, a constituição de grupos sociais internos e a relação destes com o mercado internacional está no tratamento que deram ao conceito de “dependência”. Mirando hacia dentro, construíram uma tipologia que distinguia com nitidez diferentes modos da dependência ser produzida a partir da constituição dos próprios grupos locais. Ao mesmo tempo em que este modelo jogava luz às diferentes maneiras das classes sociais dominantes serem formadas nos países periféricos e sublinhava tipos diferentes de vinculação entre centro e periferia, também definia as possibilidades de expansão das economias dependentes. Essa perspectiva alijava-se daquela dominante em amplos setores da esquerda, que não admitiam a possibilidade de desenvolvimento econômico sem uma revolução. Com as ideias de Cardoso e Faletto é possível considerar um desenvolvimento, ainda que seja “dependente associado”. O diagnóstico feito apontava para que, mesmo com a passagem das economias no formato primário-exportador para aquele que continha um mercado interno relevante em vias de se internacionalizar, o caráter dependente não estava superado.
A teoria da dependência tal qual formulada por Cardoso e Falleto teve ampla recepção nas Américas e fora dela. Tratava-se de uma tentativa original produzida dentro do próprio continente para explicar a histórica dependência das economias latino-americanas frente às do “centro”. Ultrapassadas cinco décadas de sua publicação, num contexto em muitos aspectos diferente daquele que inspirou os autores, talvez valha a pena adotar a mesma perspectiva que privilegia a historicidade dos fenômenos sociais e a flexibilidade dos conceitos, para buscar relações assimétricas entre nações – tanto no campo econômico, político ou tecnológico. É um convite instigante.
Sugestões de obras do autor
Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962.
Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1964.
Dependência e desenvolvimento na América Latina: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. Em colaboração com Enzo Faletto.