Por Maria Alice Rezende de Carvalho (PUC-Rio) e
Sarah Silva Telles (PUC-Rio)
Neto de bem-sucedidos funcionários públicos que migraram do Espírito Santo para o Rio de Janeiro, Fernando Bastos d’Ávila, o Padre Ávila, nasceu no Distrito Federal, em 1918, e viveu seus primeiros anos em uma casa confortável, localizada na atual Rua Bolivar, em Copacabana. Seus avós paternos eram mais modestos, residindo na cidade de Petrópolis, no bairro do Retiro, próximo ao Rio Piabanha, em que o menino, nas férias, pescava lambaris. Mais tarde dirá que, em seus passeios por ali, sua atenção se voltava para um pequeno convento e uma igrejinha dedicada a São Tomás de Aquino, “o maior gênio do pensamento teológico”.
A morte súbita de seu avô materno terá sido seu primeiro encontro com o mistério e o ensejo de muitas transformações. Seus pais adquiriram uma casa na Rua Gal. Polidoro, deixando o velho casarão; o menino iniciou o curso secundário no Colégio Santo Inácio; sua mãe adoeceu e atravessou alguns anos entre orações e trabalhos dedicados à Igreja, realizando, quando curada, a promessa de tornar seu filho um padre. Em 1930, aos doze anos de idade, Fernando foi enviado à Escola Apostólica dos Padres Jesuítas, de Nova Friburgo, preparando-se para ingressar no noviciado da Companhia de Jesus, onde foi admitido em 1935, a contragosto de seu pai, médico, agnóstico, que sonhava em fazer dele um cientista.
No noviciado fez o curso de retórica, que faz parte do código de ensino dos jesuítas, chamado Ratio Studiorum, que consiste em gramática, humanidades e retórica. Terminado o curso de retórica e sendo necessário instituir um substituto para o seu professor, Pe. Cardoso, o jovem Fernando, mesmo sem ser padre, e pouco mais velho que seus colegas, foi indicado ao posto, no qual permaneceu entre 1943 e 1945, conhecendo seu primeiro grande desafio docente. Concluído o magistério, era preciso cursar teologia, que, no Brasil, existia somente no sul do país, ministrado por descendentes de alemães, cujos métodos não eram aprovados em Roma. Foi, então, indicado para seguir para a Itália, onde concluiu o mestrado em Filosofia e Teologia na Universidade Gregoriana. Com ele viajaram os que seriam, para sempre, seus grandes amigos: Pe. João Bosco Penido Burnier e Pe. Henrique Claudio Lima Vaz – este último considerado pelo Pe. Ávila o “irmão que não teve”.
Fernando Bastos d’Ávila recebeu a ordenação sacerdotal, em 1948. Mas a conclusão de sua formação como jesuíta se deu em Florença, em 1950. Seguiu, então, para a Bélgica, onde cursou o doutorado em Ciências Políticas e Sociais na Universidade de Louvain, defendendo, em 1954, a tese L’imigration comme éxile, aprovada com a mais alta distinção. Voltou naquele mesmo ano ao Brasil e ingressou no corpo docente da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, provavelmente por indicação do Pe. Guimarães Lustosa, de família bem relacionada no Rio de Janeiro, que havia sido seu professor no último ano de Filosofia. Na verdade, a proximidade entre o Pe. Ávila e o Pe. Lustosa se revela na própria definição da trajetória intelectual do jovem sacerdote, cuja guinada para a sociologia se afina com as preocupações do Pe. Lustosa acerca da educação e da questão social no Brasil.
A relação do Pe. Ávila com a PUC do Rio de Janeiro se prolongou por toda a sua vida. Quando conheceu a instituição, em 1954, espantou-se com o número limitado de cursos que ela oferecia e com a ausência, numa universidade católica, de tratamento sistemático da crise social no país. Por isso sugeriu a criação de novos departamentos, erigindo, em 1955, a Escola de Sociologia, Política e Economia, de que foi diretor até 1967. Nela se dedicou, durante 16 anos, ao ensino das disciplinas Introdução às Ciências Sociais e Doutrina Social da Igreja, tendo participado da criação da revista Síntese Política, Econômica e Social – SPES, que tem ainda continuidade, publicada como Síntese – Nova Fase, pelo Instituto Santo Inácio, de Belo Horizonte.
Indagado, certa vez, sobre o modelo que terá inspirado a sua “Escola”, admitiu alguma proximidade com a Escola de Sociologia e Política de São Paulo, ainda que em uma escala bem mais modesta. Não reconhecia outra instituição similar no Rio de Janeiro, e considerava, portanto, “[…] que a PUC inovou quando criou um departamento de pesquisas, que chamava Ciências Políticas e Sociais e que, na época, tinha que ser complementado com Economia”. Pe. Ávila, a exemplo do que ocorrera em São Paulo nas décadas de 1930 e 40, embora sem recursos comparáveis, buscou também reunir e contratar um conjunto de intelectuais altamente qualificados, no qual sobressaíram Manuel Diegues, Isaac Kesternetz, na área de Economia, Hélio Jaguaribe e outros que não chegaram a ser membros da PUC, mas gozavam de grande prestígio e participavam do seu repertório intelectual, como Artur Neiva, que faleceu inesperadamente em 1943, e Celso Furtado, com quem o Pe. Ávila estreitará laços de amizade na Academia Brasileira de Letras, no período final de sua vida.
Em 1964, Pe. Ávila foi nomeado vice-reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, e se engajou na luta pelo reconhecimento da profissão de sociólogo. No ano seguinte, coordenou uma equipe de especialistas para a elaboração do livro-texto que serviria à disciplina de Moral e Civismo introduzida no currículo da escola secundária. A Pequena Enciclopédia de Moral e Civismo foi publicada em 1967, e apreendida pelos censores do regime militar por ser “subversiva”. Voltou a ser reeditada apenas em 1972, por iniciativa dos ministros Jarbas Passarinho e Nei Braga, conhecendo várias reimpressões.
Ao final da década de 1960, o Pe. Ávila se afastou circunstancialmente da PUC por determinação do Geral da Ordem dos Jesuítas, Pe. Arupi. “Ele soube que no Chile os jesuítas haviam criado uma instituição chamada ILADES (Instituto Latino-Americano de Desenvolvimento Social), e que as dioceses e os órgãos religiosos começaram a enviar alunos para esse instituto. Diante disso, o Pe. Arupi criou (em 1967) o IBRADES — Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Social. E fui nomeado seu primeiro diretor, cargo que ocupei por trinta anos.” Tal instituição, como se sabe, tinha como principal atribuição assessorar a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB. Como dirigente de um órgão de assessoramento, Pe. Ávila elaborou, durante vários anos, análises sobre a situação política e social do país, sendo a sua independência na condução dessa atividade o motivo que o levou a responder a Inquérito Policial Militar, e levou a instituição a sofrer constantes represálias, que culminaram com a sua invasão em 1970.
Pode-se dizer que os temas de pesquisa do Pe. Ávila giraram em torno da integração entre valores religiosos e instituições sociais ou políticas, como, por exemplo, a investigação que realizou sobre a participação do clero no parlamento brasileiro. Ligavam-se também à apropriação pública, laica, da doutrina social da igreja, do que resultou o livro Pensamento social cristão antes de Marx (1972), em que Pe. Ávila expressa a convicção de que os efeitos socialmente desastrosos da revolução industrial tinham sido objeto de preocupação da Igreja Católica bem antes de Karl Marx abordá-los. Dessa reflexão surgiria, a pedido da Conferência Episcopal Latino-americana – CELAM, a preparação de um livro em colaboração com o Pe. Pierre Bigot sobre a difusão da Doutrina Social da Igreja e de suas propostas de solução para os problemas socioeconômicos da América Latina. Enfim, os nexos que o Pe. Ávila sempre buscou estabelecer entre valores religiosos e experiência social fizeram dele uma inspiração frequente em inúmeras instituições da sociedade civil, como a ‘Associação dos Dirigentes Cristãos de Empresas’, e um membro de organizações sociais diversas, como o ‘Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio’.
Pe. Ávila aposentou-se em 1995, após 40 anos de exercício do magistério. Em 1997, se tornou o sexto ocupante da Cadeira n° 15 da Academia Brasileira de Letras – ABL, sucedendo Dom Marcos Barbosa. A obra de Pe. Ávila – quinze livros publicados e numerosos ensaios, artigos e conferências – pode ser classificada em teoria sociológica, sociologia da educação, história e doutrina social da Igreja. Seu lugar na história intelectual brasileira será sempre o de uma “ponte”, como definiu o jornalista Luiz Paulo Horta, entre a mensagem da Igreja Católica e a realidade social, o que terá sido fruto de seu talento reflexivo aliado ao contexto de vigência do Concílio Vaticano II.
Seu último livro, “A Alma de um Padre. Testemunho de uma vida,” publicado em 2005, foi louvado e criticado pelo mesmo motivo: sua sinceridade rara, sua franqueza sem limite, em que discute, por exemplo, o tema da vocação, que, no seu caso, não obedeceu a um “chamamento” divino, mas, antes, se construiu pela empatia para com os que sofrem.
Sugestões de obras do autor:
D’Avila, Fernando Bastos. Introdução à Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Agir ,1962.
D’Avila, Fernando Bastos. Neocapitalismo, Socialismo e Solidarismo, Rio de Janeiro; Editora Agir, 1963.
D’Avila, Fernando Bastos. O pensamento social cristão antes de Marx. Rio de Janeiro, Ed. Jose Olympio, 1972.
D’Avila, Fernando Bastos. Solidarismo, alternativa para a globalização. Aparecida do Norte: Santuário, 1997.
D’Avila, Fernando Bastos. Igreja e Estado no Brasil: perspectivas e prospectivas. São Paulo: Loyola, 1987.
D’Avila, Fernando Bastos. Pequena enciclopédia de moral e civismo. Rio de Janeiro: MEC-FENAME, 1967.