Por Tiago Magaldi (UFSCar)
O caminho do meio
Evaristo de Moraes Filho nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 5 de julho de 1914. Carioca “da gema”, passou a primeira infância na Rua dos Coqueiros, fronteira entre Santa Teresa e Catumbi, onde hoje deságua o túnel Santa Bárbara. Nascido no seio de uma família de classe média, segundo filho do renomado advogado Evaristo de Moraes com Flávia Dias Moraes, foi um aluno brilhante desde cedo. Seu pai, dentre outros feitos, assumira a defesa de João Cândido Felisberto, o Almirante Negro, após a Revolta da Chibata (1910), e foi integrante ativo do nascente movimento socialista e operário do início do século XX. A mãe, normalista de ascendência portuguesa, foi sua principal referência afetiva, sobretudo após ter se divorciado. Mas foi por influência do pai que decidiu cursar Direito e tornar-se, como ele, advogado. O tempo trataria de “corrigir” sua trajetória.
Admitido em 1933 na Faculdade Nacional de Direito (FND – atualmente parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro), aprimorou o gosto pelo estudo, tendo rapidamente abandonado a intenção de tornar-se um operador do Direito: “um advogado militante”, disse em 2000, “só tem tempo de ler autos”. Começava, então, para não mais parar, sua carreira de colecionador de livros e ideias. Em 1934 fundou, com colegas da FND, uma “Sociedade de Sociologia” – em cujas reuniões os discentes apresentavam e debatiam temas sociológicos correntes na época –, e uma revista – “Ideia”, voltada para a militância de esquerda –; no ano seguinte, aos vinte anos, tornar-se-ia diretor da seção de filosofia da revista discente “Época”, também da FND (Morel, 2015). Desde cedo foi um escritor prolífico: no último ano do curso já escrevia em diferentes revistas sobre filosofia, sociologia, direito e literatura, além de contribuir para alguns jornais diários e para a militância socialista.
Ainda em 1934, assume um posto no Ministério do Trabalho (criado em 1930 por Getúlio Vargas) como secretário das Comissões Mistas de Conciliação, cujo propósito era mediar conflitos entre empregados e empregadores. Em 1941, com a instalação da Justiça do Trabalho no país e a extinção das Comissões, torna-se Procurador do Trabalho, cargo que exercerá até a aposentadoria voluntária, em 1966. A experiência acumulada nesses anos resultará no clássico O problema do sindicato único no Brasil, publicado em 1952.
Durante toda a sua carreira funcional seguiria, paralelamente, a vocação intelectual. Em 1937 bacharelou-se em Direito; em 1939 fez novamente o vestibular, dessa vez para a recém-criada Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi), na qual concluirá bacharelado e licenciatura em Filosofia em 1949. A década de 50 será a do lançamento das bases definitivas de sua carreira acadêmica, tendo nela prestado três concursos, todos com sucesso: em 1953, livre-docência em Direito do Trabalho, na FND; em 1955, livre-docência em Sociologia, na FNFi; por fim, em 1957, cátedra de Direito do Trabalho, na FND. Como professor da última, teve atuação fundamental na institucionalização da pesquisa em Ciências Sociais, tendo sido fundador do Instituto de Ciências Sociais (ICS), em 1958, antecessor do atual Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS).
Com o golpe civil-militar de 1964, a conjuntura muda drasticamente. Muitos professores e alunos da UFRJ, entre eles, Evaristo, são presos. Além da prisão arbitrária, com o AI-5 de 1969 chega também a aposentadoria compulsória. Forçado a deixar a docência, o professor mergulha em sua própria biblioteca: nos dez anos seguintes, até a Lei de Anistia em 1979, publicará mais de dez livros, a maioria sobre temas jurídicos. Nesse ano é convidado a retomar a docência na UFRJ, ao que declina: “A suposta anistia chegara tarde, a ausência durara demais, e os sentimentos já não eram os mesmos”. Mas em 1983 receberá o título de Professor Emérito daquela instituição, e no ano seguinte seria eleito membro da Academia Brasileira de Letras, sucedendo Alceu Amoroso de Lima na cadeira de número 40. Desde então publicou alguns livros e ensaios, vindo a falecer em julho de 2016, aos 102 anos.
Um colecionador de ideias
A vida intelectual de Evaristo de Moraes Filho foi marcada por dois pontos principais. Em primeiro lugar, sobretudo até 1969, pela quase equidistância entre a Sociologia e o Direito: “entre a Nacional de Filosofia e a Nacional de Direito, eu vivia como numa gangorra”. Seu trabalho mais conhecido desse período, o clássico O problema do sindicato único no Brasil: seus fundamentos sociológicos, parece justamente se situar “no meio do caminho” entre ambas as disciplinas. Nele o autor dirá, em chave sociológica, mas se valendo da análise de material jurídico, que não seria possível ao Estado legislar corretamente sobre conflitos trabalhistas sem levar em consideração os grupos sociais produzidos pela dinâmica econômica e sua tendência a coordenar seus interesses comuns: os conflitos entre eles existiriam independentemente da regulação estatal. O desenvolvimento desse ângulo de análise levará o autor a, de forma pioneira, atacar frontalmente a estrutura sindical estadonovista e o mito getulista da “outorga” da legislação trabalhista – pioneirismo pelo qual o autor é mais conhecido hoje.
Em segundo lugar, sua obra é marcada pela paixão dedicada ao pensamento e aos pensadores, os brasileiros em particular. A leitura de quaisquer textos de Evaristo – sejam livros bem acabados ou ensaios despretensiosos – oferece ao leitor um manancial de autores, nacionais e estrangeiros; neles as notas de pé de página por vezes saem vitoriosas em sua luta com o corpo do texto. É um erudito. Sobretudo a partir dos anos 1980, o autor se permite mergulhos profundos nos universos particulares de cada pensador, delineando seus aspectos mais salientes e conhecidos, mas também buscando a linha mestra que os unifique, implícita ou explicitamente. As introduções das famosas coletâneas de Georg Simmel e Augusto Comte, publicadas no Brasil pela Editora Ática (“Coleção Grandes Cientistas Sociais”, coordenada por Florestan Fernandes) surpreendem pela familiaridade com que Evaristo apresenta não apenas os principais pontos da obra dos autores e seu sentido de conjunto, mas também o contexto intelectual no qual eles se inserem. O mesmo olhar minucioso, mas com maior fôlego, tomou por objeto o pensamento de conhecidas figuras de nosso país, como Tobias Barreto, Rui Barbosa, Sílvio Romero, Tavares Bastos e Alceu Amoroso de Lima, produzindo obras de referência para os estudiosos do pensamento político e social brasileiro.
Sugestões de obras do autor
MORAES FILHO, Evaristo de. O problema do sindicato único no Brasil: seus fundamentos sociológicos. São Paulo: Alfa-Omega, 1978.
MORAES FILHO, Evaristo de. Introdução: formalismo sociológico e a teoria do conflito. In: __________. Georg Simmel. São Paulo: Editora Ática, 1983.
Sobre o autor
MOREL, Regina Lúcia de Moraes. “Evaristo de Moraes Filho: produto e produtor da universidade” Sociologia & Antropologia, vol. 05, nº 1, 2015.
VILLAS BÔAS, Glaucia. “Evaristo de Moraes Filho e a maioridade dos trabalhadores brasileiros”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 19, nº 55, 2004.
LEITE LOPES, José Sérgio; PESSANHA, Elina; RAMALHO, José Ricardo. “Esboço de uma história social da primeira geração de sociólogos do trabalho e dos trabalhadores no Brasil”. Educação & Sociedade, vol. 33, nº 118, 2012.