Por Michel Misse (UFRJ)
Eduardo Paes-Machado nasceu no município de São João da Barra, no norte do Estado do Rio de Janeiro, em 1953, mas foi criado no interior da Bahia, nos municípios de Amargosa e Canavieiras. Filho de um juiz de direito que se graduou na tradicional Faculdade de Direito da USP e neto, pelo lado materno, de um grande fazendeiro de Campos dos Goytacazes (RJ), Eduardo foi alfabetizado em casa, aos cinco anos, e mergulhou cedo nas leituras dos clássicos adaptados para crianças. A paixão pela literatura infantil o acompanhou até a adolescência, quando se entregou à ficção científica e outros gêneros literários que prendiam a atenção do que ele mesmo chamou do “traço sonhador” de seu temperamento.
Ainda criança, acompanha as apreensões de seu pai, juiz eleitoral e responsável pela cadeia local, com os conflitos entre fazendeiros e trabalhadores rurais que começavam a se organizar em sindicatos, processo interrompido pelo golpe militar de 1964. Já em Salvador, na segunda metade dos anos 60, Eduardo está estudando em colégio católico da elite. O ambiente religioso e austero da escola contrasta com a atmosfera doméstica de debates de temas diversos e de livre exame do papel da religião, contribuindo a produzir no menino, cuja experiência de cidade do interior agora sofria o impacto da cidade grande, uma certa aversão à orientação geral do colégio.
A aproximação à cultura pop, ao rock, à contracultura e ao zen-budismo levará Eduardo à introspecção e à leitura voraz de todos os livros que lhe caiam na mão. No pós-68 não pôde ter a experiência do movimento estudantil, que praticamente desaparecera sob a repressão do regime militar, mas ligou-se a colegas participantes de um círculo de estudantes intelectualizados e politizados que trocavam ideias e livros de interesse comum. Vivenciou, como vários de sua geração, a explosão tropicalista, o teatro de Brecht, as encenações de José Celso Martinez, a poesia de Maiakovski, o inconformismo social e político. A presença dominante do marxismo universitário o levará a se ligar a uma organização de esquerda, a Política Operária (POLOP) ainda no curso secundário. Aos 17 anos tem a sua casa invadida e vasculhada por policiais após ter sido denunciado junto com seus companheiros. Conduzido preso sob espancamentos e queimaduras com pontas de cigarro, foi libertado após três meses de cadeia graças à condição de menor de idade e à influência paterna. Ao sair decidiu auto-exilar-se e conhecer a experiência socialista que começava a ganhar corpo no Chile no início de 1971.
Mesmo não tendo concluído o curso secundário no Brasil, Eduardo conseguiu admissão na Universidade chilena com uma bolsa de estudos e, aos poucos, foi se tornando um “nativo”, com bom domínio do espanhol e da cultura chilena. Esse processo foi interrompido pelo golpe de Estado que derrubou Allende em setembro de 1973. Eduardo retorna ao Brasil e retoma o curso de Ciências Sociais numa Universidade Federal da Bahia esvaziada de pensamento crítico pela ditadura. Aproxima-se da profa. Katia de Queiroz Mattoso, na Universidade Católica de Salvador e colabora com ela na coleta e sistematização de dados como parte de um projeto sobre a estrutura social de Salvador no século XIX. Eduardo considera essa experiência como o marco inicial de sua formação científica.
Antes de defender, sob a orientação da profa. Anete Ivo, sua monografia de graduação, sobre o padrão do trabalho docente na UFBA, casa-se com Ligia, arquiteta e companheira amorosa de toda uma vida. Em seguida foi buscar na França a continuidade de sua formação acadêmica, defendendo em 1981 uma dissertação de mestrado sobre Agricultura e Sociedade no Nordeste do Brasil. Na França nasce-lhe a filha Laura e ganha, após o espanhol, o aprendizado da língua francesa. De volta ao Brasil em 1981, começa a trabalhar na Secretaria de Planejamento, Ciência e Tecnologia do Estado da Bahia, onde permanecerá até 1990, mesmo após ingressar, como professor assistente, em 1982, na UFBA, para lecionar no Curso de Ciências Sociais. Em 1983, nasceu em Salvador o seu filho Estêvão. Em seguida parte para a UNICAMP para fazer o seu doutorado. O doutorado, em 1992, sob a orientação de Alba Zaluar, dá continuidade ao seu interesse pelo mundo agrário, investindo agora sobre as migrações rurais. Estudou também com Moacir Palmeira e Afrânio Garcia Jr., no Museu Nacional, no Rio, que muito contribuíram para a consolidação de sua bagagem intelectual e suas preferências teóricas.
Pode-se dizer que a trajetória acadêmica de Eduardo Paes-Machado divide-se, assim, em duas partes: a primeira, até o doutorado na UNICAMP, se caracterizará por uma antropologia social das migrações rurais; a segunda, que começa na segunda metade dos anos 1990,será marcada por um grande investimento em sociologia do crime e da polícia, uma área que em outros países é geralmente ocupada pela criminologia.
Eduardo, é preciso dizer, trilhou caminho próprio. Inicialmente marcado por parcerias longas e produtivas com docentes e pesquisadores do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da UFBA e, em seguida, com inserção na criminologia internacional, especialmente de língua inglesa. As parcerias com o ISC resultaram na criação da linha de pesquisa Violência Urbana e Saúde no PPG em Saúde Coletiva da UFBA (2002), cujas atividades levariam posteriormente à criação da linha Crime, Punição e Direitos Humanos no PPG em Ciências Sociais da UFBA (2010) e do LASSOS – Laboratório de Estudos sobre Crime e Sociedade (2009). A inserção na criminologia internacional é notável nas diversas passagens de Eduardo por universidades estrangeiras. Das 10 estadas em universidades do exterior, sete foram pós-doutorados, estágios de pesquisador visitante e também docência em departamentos de criminologia de universidades do Canadá (Toronto, York e Montreal), Estados Unidos (Michigan State e Temple) e Reino Unido (Sheffield e Salford).
Essa trajetória explica em grande medida as contribuições substantivas que Eduardo deu para a Sociologia do Crime e a Criminologia por meio de pesquisas rigorosas e criativas sobre processos sociais de vitimização, justificativas para o uso da força policial, interações coercitivas, promoção, governança e pluralização da segurança. A partir do ISC, Eduardo Paes-Machado se tornou vice-coordenador de um projeto internacional financiado pela OPAS que realizou a primeira pesquisa de vitimização na América Latina (1996). Depois, em 2004, coordenou o projeto internacional sobre o uso da força policial, apoiado pelo PNUD, que reuniu pesquisadores de várias partes do mundo. Professor Titular aposentado, Eduardo permaneceu atuando no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFBA, nos conselhos editoriais de importantes revistas internacionais produzindo novas contribuições publicadas nos melhores periódicos especializados de sua área temática.
Sugestões de obras do autor:
PAES-MACHADO, E. Trajetórias da migração rural da Bahia. Tese de Doutorado. Unicamp: Campinas. 1992.
PAES-MACHADO, E.; Noronha, C. V. A polícia dos pobres: violência policial em classes populares urbanas. Sociologias (UFRGS), Porto Alegre, v. 7, p. 188-221, 2002.
PAES-MACHADO, E.; LEVENSTEIN, C. ´I´m sorry everybody, but this is Brazil´: armed robbery on the buses in Brazilian cities. British Journal of Criminology, London, v. 44, n.1, p. 1-14, 2004.
PAES-MACHADO, E; NASCIMENTO, A. M. Bank money shields: work-related victimisation, moral dilemmas and crisis in the bank profession. International Review of Victimology, London, v. 13, p. 1-25, 2006.
PAES-MACHADO, E. The deliveries cannot stop: ecological (dis)vantages and social-spatial safety tactics against predatory crimes among Brazilian couriers. Crime, Law and Social Change, v. 54, p. 241-261, 2010.
PAES-MACHADO, E.; VIODRES-INOUE, S. O lado sombrio da estrada: vitimização, gestão coercitiva e percepção de medo nos roubos a ônibus interurbanos. Revista Brasileira de Ciências Sociais v. 30, p. 09-30, 2015.
PAES-MACHADO, E. ; BIRKBECK, C. ; BACON, M. ; BEAR, D.; HOUBORG, E. ; KAMMERSGAARD, T. ; PEDERSON, M. M. ; MARKS, M. ; HOWELL, S.; SHAW, M.; CANO, I.; RIBEIRO, E.; LEUPRECHT, C.; AULTHOUSE, A.; WALTHER, O.; MANSO, B. P. ; ALMEIDA, O. L. (Eds). Policing drug markets. 17. ed. London: Routledge, 2016. 88p.
LOPES, C., PAES-MACHADO, E., A Segurança em Mutação: concepções, práticas e experiências no século XXI. Apresentação de dossiê organizado pelos autores. Lua Nova, São Paulo, 114, 13-28, 2021.
OLIVEIRA, P., PAES-MACHADO, E. Segurança híbrida, privatização e exclusão reativa dos espaços públicos do carnaval. Espacio Abierto, Maracaibo, v. 30, n.4, 81-105, 2021.