Por Maria Luzia Miranda Álvares (UFPA)
Edna Maria Ramos de Castro é paraense nascida na cidade de Belém. Sua mãe, Esmeralda Cabral Ramos, era formada em Odontologia e seu pai, Luís Gonçalves Ramos, de ascendência portuguesa e com estudos em Lisboa, era comerciante, trazendo ao cotidiano familiar os cânticos, os sabores e as festas portuguesas. A vivência urbana em bairros centrais da cidade, Batista Campos e Nazaré, mescla-se a suas viagens para a zona rural do rio Acará, distante 66 kl de Belém, moradia de seus avós maternos onde experimentou as travessias pelos cursos d’ água desde sua infância.
Seu percurso escolar, no Grupo Escolar Floriano Peixoto, localizado na Praça da República, fugiu à tradição dos alunos daquela época pois pode circular em outros bairros mais afastados “que conformavam um círculo do povoamento de Belém, e que se tornaria, ao longo dos anos, o lugar de onde buscava ver a cidade como espaço de diversidade social e étnica”. Esse contexto cultural provavelmente contribui para firmar o seu olhar singular de intelectual crítico no rol de profissionais da sociologia brasileira.
Do ensino primário público, ela ingressa no Curso Ginasial no Colégio Santo Antônio, escola católica para meninas, predominante no ensino em Belém, com os colégios de padres para meninos. Nesse ambiente se interessa pela política, sendo eleita a presidente da agremiação estudantil, editando, com outras colegas, um jornal chamado Clareira. Sua participação em Congressos da União dos Estudantes Secundaristas do Estado do Pará (UESP), e o convívio com colegas de escolas laicas, abrem novas ideias e consegue a transferência para o Colégio Estadual Paes de Carvalho (CEPC), público, misto e laico, que naquela época era palco principal das lutas estudantis pela democratização do ensino, e pelo ensino público. Participação que deve ter influenciado o interesse pela dimensão política da vida social, ingressando no curso de Ciências Sociais, em 1964. O rompimento da Igreja durante a ditadura com a juventude politizada que ela mesma formara na linha da teologia da libertação, e da qual Edna fazia parte, e a emergência da Ação Popular/AP, lhe permitiram perceber as formas de dominação presentes na formação social dessa região.
Esse período foi importante, com a faculdade transformada em uma frente de resistência, conseguindo algumas vitórias como o impedimento das eleições estudantis para agremiações pelegas criadas pelos militares, mas, também, articulando uma série de estratégias encaminhadas nacionalmente pelo movimento universitário, até mesmo a ocupação do prédio pelos estudantes e posterior dispersão pelo Exército.
Edna Castro ingressou na UFPA como docente em 1973 para lecionar a cadeira de sociologia no Curso de Ciências Sociais, através de concurso público. Sentia falta de uma formação melhor em sociologia, das discussões sobre a históricas dos conflitos, dos movimentos sociais, haja vista o bloqueio desses temas pela ditadura militar. Ensinou sociologia na graduação de ciências sociais e na pós-graduação interdisciplinar em desenvolvimento e meio ambiente (NAEA), no Programa de pós-graduação em Sociologia e Antropologia (IFCH) e na Université du Québec à Montréal, entre outras, enquanto professora-visitante. Na docência e na orientação de inúmeras dissertações de mestrado e teses de doutorado, o debate sobre agentes e agências relacionados à fronteira em movimento na Amazônia e os processos de dominação tiveram e têm ainda espaço relevante no seu pensamento e na sua trajetória acadêmica.
A pesquisa sempre fez parte da prática sociológica de Edna Castro. Durante a sua graduação em Ciências Sociais conseguiu ingressar como estagiária no Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), e frequentou por vários anos o seminário semanal coordenado pelo antropólogo Eduardo Galvão que reunia pesquisadores e estagiários para debater textos e experiências de pesquisa sobre diversos temas da Antropologia. Pesquisadora Produtividade e Pesquisa do CNPq, coordenou inúmeros projetos sobre trabalho e relações de trabalho, dinâmicas socioeconômicas e meio ambiente, fronteiras, agentes e ação coletiva compartilhando resultados em redes nacionais e internacionais. Ou seja, ela adentra as estruturas que permitem, por exemplo, problematizar as transformações sociais e até mesmo os processos de estigmatização de grupos e de territórios.
“A experiência acadêmica na França foi única, desestabilizadora, reconstrutivista”, diz a pesquisadora, ao tratar de seu tempo de pós-graduação nesse país onde fez o mestrado e o doutorado em sociologia na École des Hautes Études en Sciences Sociales/EHESS, concluído em 1983, tendo frequentado os seminários de Pierre Bourdieu, de Alain Touraine e de Manoel Castels, atraída justamente pelas diferenças de abordagens e categorias sobre o agente/ator e a ação coletiva na sociologia.
No pós-doutorado, no Centre Nacional de la Recherche Scientifique/CNRS, Paris, com bolsa do CNPq, foi recebida no IRESCO por Helena Hirata e Danielle Kergoat, com estudos sobre trabalho e gênero, e no Centre de Recherche sur le Brésil Contemporain/CRBC/IHESS, por Ignácio Sachas, dedicando-se a pensar a possibilidade de uma sociologia ambiental menos disciplinar, aberta à compreensão de um mundo social complexo e diverso. Pôde conhecer as bandeiras do movimento ecológico nas lutas do Larzac, contra os planos de instalação de centrais nucleares na França. Edna Castro encontra ainda o movimento feminista engajando-se no grupo de Mulheres Latino-Americanas. As discussões sobre a democracia e a nova ordem mundial, o debate sobre a relação fordismo x modelo flexível, as lutas de descolonização em vários países da África e o avanço da fronteira do capital na Amazônia, foram acontecimentos importantes para suas pesquisas e publicações.
A produção de filmes documentais decorrentes de pesquisas como Fronteira Carajás, 1992, que mostra os impactos sociais e ambientais provocados pelo Programa Grande Carajás, na mina de ferro, na ferrovia, nas carvoarias e nas usinas de ferro-gusa nas cidades de Marabá e Parauapebas (Pará) e em Açailândia (Maranhão). Na mesma direção o filme Marias da Castanha, 1987, documenta o trabalho das operárias nas fábricas de castanha-do-pará e as lutas que travam nos bairros onde moram pela ocupação de terreno urbano e o direito à cidade, atravessando as dimensões do tempo e do espaço do trabalho feminino, e da dupla jornada de trabalho.
Além da produção de artigos, livros e outras publicações nas linhas temáticas abraçadas, a gestão universitária na UFPA teve em Edna Castro uma eficiente colaboradora. Foi Coordenadora do Departamento de Ciências Sociais/IFCH, Diretora Geral do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos/NAEA, instalou e coordenou o doutorado do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento do Trópico Úmido/NAEA, e editora da revista Novos Cadernos NAEA, como também representação em cargos de direção em associações científicas como SBPC, ANPUR, SBS e ANPOCS.
No filme “Cidadão Kane” (1941), de Orson Welles, o personagem milionário Charles Foster Kane, ao morrer, pronuncia com dificuldade, uma palavra enigmática: Rosebud. A partir dela será desencadeada toda uma revisão da vida do magnata para identificar o significado daquela palavra que, ao final, se descobre estar escrita num trenó com o qual ele brincava em criança. No fecho desta bionota sobre Edna Castro, faço analogia com o filme ao analisar seu percurso acadêmico que traduz a obra de toda a vida de uma intelectual e pensadora da Amazônia. Para mim, as cláusulas de Rosebud, contidas na palavra enigmática da sequência final do filme, na advertência da câmera ao “no trespassing” do Castelo de Xanadu, cravaram-se ao que eu ainda não sei dela, apesar de conhecê-la e com ela conviver por quase quatro décadas. Quem é Edna Maria Ramos de Castro?
Sugestões de obras da autora:
CASTRO, E. M. R. Transformations sociales et marche du travail dans la Region du Programme Grande Carajas. Cahiers du Brésil Contemporain/CRBC, Paris, n.21, p. 39-62, 1993
CASTRO, E. M. R.; PINTON, F. (Orgs.) Faces do Trópico Úmido: conceitos e questões sobre desenvolvimento e meio ambiente. Paris/Belém, CRBC/EHESS/CEJUP, 1997. 395p
MARIN, R. E.A.; CASTRO, E. M. R. Negros do Trombetas: Guardiãs de matas e rios (Amazônia). 2ª. ed. Belém: CEJUP, 1993. 278p
MARIN, R. E. A.; CASTRO, E. M. R. Black Peoples of the Trombetas River: Peasantry and Ethnicity in the Amazon. In: Stephen Nugent; Mark Harris. (Org.). Some Other Amazonians: Perspectives on Modern Amazonia, London: 2004
CASTRO, E. M. R. Escravos e Senhores de Bragança (Repertório de Documentos Históricos sobre escravidão no Pará). Belém: Editora Universitária, UFPA, 2006
CASTRO, E. M. R. (Org.) Cidades na Floresta, São Paulo, Annablume, 2009
BOLLE, W.; CASTRO, E. M. R.; VEJMELKA, M. (Orgs.) Amazonien – Weltregion und Welttheater. 1. ed. Berlim, Alemanha: Trafo Wissenschaftsverlag, 2010. v. 1. 317p
CASTRO, E, M. R. Neoextractivismo en la mineria, práticas coloniales y lugares de resistencia en Amazonia. Santiago, Perfiles Económicos Nº5, Julio 2018, pp. 35-76,
CASTRO, E. M. R. & PINTO, E. R. F. (Orgs) Decolonialidade e Sociologia na América Latina. Belém, NAEA/UFPA, 2018. 394 p.
CASTRO, E.M. R. (Org.) Pensamento crítico latinoamericano. Buenos Aires/São Paulo, CLACSO/Annablume, 2019.