Por Felipe de Souza Tarábola (FE-USP)
Uma vida comprometida com a democratização da escola pública
Celso de Rui Beisiegel nasceu em Tietê, cidade do interior de São Paulo, no dia 21 de agosto de 1935. Filho de Amadeu Beisiegel, marceneiro e membro do Partido Comunista de Tietê, e Leonilde de Rui Beisiegel, costureira, cresceu e se formou na educação básica pública da cidade, tendo cursado Escola Normal com perspectiva de atuação no magistério. Aos 18 anos, contudo, fora recrutado pelo exército, tendo servido no Segundo Regimento de Obuses 105, na cidade de Itu, onde permaneceu até o final de 1954, quando se inscreveu no cursinho preparatório para o vestibular oferecido pelo Grêmio da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da própria USP. Aprovado para o curso de Ciências Sociais iniciado já em 1955 e tendo que arcar com os custos de moradia na capital, trabalhou como bancário durante o dia no banco Itaú e estudou no período noturno nos dois primeiros anos da graduação. Em seguida, em 1957, por indicação do próprio professor de Estatística Álvaro Marchi foi realizar estágio na Divisão de Estudos Sociais da Instituição no Centro Regional de Pesquisas Educacionais (CRPE) de São Paulo, criado em 1956 no campus da USP, na Cidade Universitária.
A relevância deste centro na formação do professor Celso e em sua trajetória no campo da educação escolar em grande medida se deve à própria missão e atuação do órgão ligado ao projeto de Anísio Teixeira em buscar fundamentar cientificamente os rumos da educação no país. A partir da ampliação de experiências prévias na administração da política educacional do estado da Bahia e na direção do INEP, Anísio Teixeira cria e dirige em seus anos iniciais um novo órgão vinculado ao Ministério da Educação, o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), com o objetivo de desenvolver estudos e pesquisas sobre os problemas brasileiros de educação. Junto a ele, outros cinco centros regionais também surgiram, nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco. Os centros estavam articulados com instituições internacionais, como a Organização das Nações Unidas para a Ciência, a Educação e a Cultura (Unesco), e com universidades, como a Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP) e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (FFCL).
Logo em seguida, no mesmo ano de 1957, o professor Celso Beisiegel foi aprovado em concurso para o quadro de professores de Sociologia do magistério secundário e normal do Estado de São Paulo. Em seguida à aprovação, como era comum à época, foi comissionado junto à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, justamente para prestar serviços de pesquisa no CRPE. No ano posterior, em 1958, o mesmo em que concluiu a graduação em Ciências Sociais na FFCL da USP, assumiu a direção de um recém-criado ginásio estadual noturno na periferia da capital, onde permaneceu até meados de 1960, quando passou a integrar a primeira equipe do recém-criado Fundo Estadual de Construções Escolares (FECE) do Plano de Ação do Governo Carvalho Pinto, desempenhando a coordenação e execução do programa de expansão das construções escolares para o ensino primário da cidade de São Paulo.
Tais experiências de trabalho se juntaram à condução de uma investigação iniciada por Francisco Weffort no CRPE correlacionando propostas de criação de ginásios estaduais com a posição política dos deputados estaduais que as defendiam na Assembleia Legislativa de São Paulo para culminar na pesquisa de mestrado defendida em abril de 1964, sob orientação de Florestan Fernandes e intitulada como “Ação política e expansão da rede escolar”.
Entre meados de 1961 e meados de 1962, prof. Celso Beisiegel trabalhou como pesquisador no Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (CESIT), criado e coordenado por Fernando Henrique Cardoso, na Cadeira de Sociologia I, da FFLC da USP. Reassumiu os trabalhos no FECE em meados de 1962 e, em 1963, retornou ao CRPE, para trabalhar como assistente de Florestan Fernandes em cursos de sociologia da educação e para atuar na preparação em atividades de pesquisa nos cursos de formação ali oferecidos.
Foi nessa atuação, realizando uma pesquisa de treinamento com estudantes que acompanhou o projeto piloto de alfabetização promovido pela União Estadual de Estudantes no município de Osasco, que conheceu a experiência de Paulo Freire. Posteriormente, Celso esteve com Paulo Freire em São Paulo e no Rio de Janeiro a trabalho, visitou Pernambuco e passa a acompanhar a experiência freireana de alfabetização de adultos em Angicos, Rio Grande do Norte. Ainda sob inspiração de Paulo Freire, Beisiegel também acompanhou e participou da organização da experiência de alfabetização realizada em Ubatuba, no litoral de São Paulo.
O processo de abertura da escola historicamente elitista a crianças e jovens das camadas populares e as progressivas alterações e tensões da incorporação desta população a setores seletivos, ou seja, as relações entre ação política, mudanças sociais (como os processos de urbanização, industrialização, atuação política e voto das camadas populares, o fenômeno do populismo etc.) e mudanças educacionais (sobretudo o direito à educação e a ampliação das oportunidades de acesso a níveis cada vez mais avançados de escolaridade das camadas populares, assim como a questão da qualidade de ensino das escolas públicas de massas, temática em que foi pioneiro no Brasil, desde a década de 1970) foram o grande tema deste pesquisador, assim como os compromissos com a escola pública e sua democratização. Não à toa, portanto, o último texto publicado pelo prof. Celso, de maneira póstuma, foi justamente a respeito das relações entre educação popular e o ensino superior, a partir da obra de Paulo Freire, o artigo “Educação popular e ensino superior em Paulo Freire” (Beisiegel, 2018).
A pesquisa de doutorado realizada por Celso Beisiegel inicialmente sob orientação de Florestan Fernandes e posteriormente, por Luiz Pereira, após cassação de Florestan pela ditadura civil-militar instaurada no país, foi defendida na FFCL/USP em 1972 e publicada como livro “Estado e educação popular: um estudo sobre a educação de adultos”, em 1974. Tanto nele quanto em “Política e Educação Popular”, originalmente tese de livre-docência defendida pelo professor Beisiegel na Faculdade de Educação da USP, em 1981, é possível encontrar férteis análises sobre a educação de jovens e adultos, assim como as tensões e contradições da orientação da ação do Estado brasileiro.
A partir de sua atuação no CRPE, Beisiegel ingressa no quadro de professores da Faculdade de Filosofia da USP, inicialmente no Setor de Orientação Educacional do Departamento de Educação da Faculdade de Filosofia, em 1966. Após a reforma universitária de 1970, passou a ministrar as disciplinas de Sociologia da Educação do curso de Pedagogia até a aposentadoria em 2005. Contudo, sua atuação na pós-graduação da mesma Faculdade permaneceu até 2014 formando diversos pesquisadores e professores da área. Na mesma instituição, foi também chefe do Departamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação (1984-1987; 2001-2004), vice-diretor (1987-1988) e diretor da FEUSP (1988-1990). O reconhecimento do trabalho intelectual, do compromisso social e engajamento institucional do professor Beisiegel pode ser notado por meio de sua aprovação como Professor Titular da FEUSP em 1986 e como professor emérito da Universidade de São Paulo, em 2006.
Entre outras atuações de destaque na administração universitária, foi pró-reitor de Graduação da USP (1990-1993). Sua atuação pública também incluiu a função de membro do Conselho Estadual de Educação (1984-1990). Foi membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Sociologia (1962-1964).
Professor Celso Beisiegel faleceu em 25 de novembro de 2017, deixando esposa, professora Sylvia Leser de Mello Pereira, as filhas Beatriz de Mello Beisiegel e Mariana de Mello Beisiegel, assim como diversos alunos e contribuições à educação pública brasileira e à Sociologia da Educação nacional.
Sugestões de obras do autor:
BEISIEGEL, Celso de Rui. Educação e Sociedade no Brasil após 1930. In: FAUSTO, Boris, História Geral da Civilização Brasileira III – O Brasil Republicano. 4 Economia e Cultura (1930-1964). 2. Ed. São Paulo, Difel, 1986, pp. 381-416.
BEISIEGEL, Celso de Rui. Política e educação popular. 2. ed. São Paulo: Ática, 1989.
BEISIEGEL, Celso de Rui. Estado e educação popular: um estudo sobre a educação de adultos. 2. Ed. Brasília: Liber Livro, 2004.
BEISIEGEL, Celso de Rui. A qualidade do ensino na escola pública. Brasília: Liber Livros, 2005.
BEISIEGEL, Celso de Rui. Paulo Freire. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010 (Coleção Educadores).
BEISIEGEL, Celso de Rui. Os primeiros tempos da pesquisa em sociologia da educação na USP. Educação e Pesquisa, vol. 39, núm. 3, jul-sept., 2013, pp. 589-607.
BEISIEGEL, Celso de Rui. Educação popular e ensino superior em Paulo Freire. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 44, 2018. https://doi.org/10.1590/S1678-4634201844104010.
Sobre o autor:
BARROS, Gilda Naécia Maciel de. Celso Beisiegel: professor, administrador e pesquisador. São Paulo: Edusp, 2009.
PAULO, Fernanda dos Santos. Legado de Celso de Rui Beisiegel: um dos pioneiros da educação popular. Rev. Ed. Popular, Uberlândia, v. 18, n. 1, p. 233-244, jan./abr. 2019.
SPOSITO, Marilia Pontes. Celso de Rui Beisiegel: o legado de um intelectual em defesa da educação popular pública. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 44, 2018. https://doi.org/10.1590/S1678-463420184410401100