Por Sílvia Fernandes (UFRRJ)
Natural da cidade de Recife, Cecília Loreto Mariz, nasceu em 01 de julho de 1956, tornando-se uma das mais proeminentes sociólogas da religião no país. Sua produção científica descortinou um horizonte de possibilidades investigativas, além de influenciar novas gerações de pesquisadores da religião interessados em compreender as dinâmicas e as articulações entre religião e sociedade.
A afinidade com a pesquisa emergiu nos anos iniciais da formação enquanto cursava o bacharelado em Ciências Sociais, na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, entre 1974 e 1977. Sob a orientação de Heraldo Pessoa Souto-Maior, Cecília realizou o mestrado na mesma Universidade (1978-1982) produzindo a dissertação intitulada Texto didático e criança carente. Demonstrando habilidade e sofisticação teórica, Mariz analisa a questão escolar a partir de uma releitura de Pierre Bourdieu. O texto entrelaça a sociologia da educação com a questão da desigualdade social no Brasil, explorando dimensões da pobreza e do cotidiano de camadas populares no Recife, com foco nos valores que mobilizavam a ação dos sujeitos.
Sublinhe-se que, nos anos em que a pesquisadora cursava o mestrado, a Teoria da Dependência era conteúdo mandatório nos cursos de Ciências Sociais e colocava em relevo a estrutura de dependência entre países periféricos e países do centro. Talvez, não por acaso, a relação entre saúde, religião, educação, pobreza e estratificação social compôs os interesses de pesquisa de Cecília Mariz em momentos distintos de sua trajetória.
Em 1989, a socióloga obteve o título de doutorado em Sociologia da Cultura e Religião, na Universidade de Boston (BU), sob a orientação de Peter Berger e coorientação de Anthony Leeds. A experiência da formação internacional foi enriquecida pela interlocução com pesquisadores como David Martin, Paule Verdet, Madeleine Cousineau, dentre outros. O diálogo profícuo com seus pares favoreceu a consolidação da religião como o principal objeto de pesquisa de Cecília. Na tese – publicada em 1994 sob o título Coping with poverty: Pentecostals and Base Communities in Brazil – Mariz encampa uma análise que articula a complexa relação entre classes sociais e afiliação religiosa. Ancorada na teoria weberiana sobre racionalização, Cecília argumenta que a pertença religiosa para membros de igrejas pentecostais e participantes de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) – grupos católicos que emergem da teologia da libertação – funciona como estratégia para o enfrentamento da pobreza, e ambos os grupos podem produzir semelhantes consequências políticas não intencionais. O forte argumento da tese é o de que o pentecostalismo acentua as respostas individuais à pobreza, enquanto nas CEBs a dimensão comunitária se destaca. Entre os pobres, o pentecostalismo tenderia a crescer especialmente por sua oferta estratégica para o enfrentamento da pobreza nas camadas populares.
Dois anos antes de defender a tese, Cecília havia publicado a resenha do livro de Gustavo do Passo Castro, intitulado As comunidades do dom: um estudo das CEBs no Recife. O livro apresentava um enfoque sobre a dimensão pedagógica das CEBs, grupos cujo interesse da academia tem arrefecido, especialmente em razão das novas dinâmicas da religião no país, marcadas pelo crescimento acentuado dos evangélicos e pela emergência de movimentos de orientação carismática e ultratradicionalistas no campo católico.
Cecilia Mariz integrou o corpo docente da UFPE por treze anos (1978 – 1991) onde atuou em vários projetos de pesquisa que conjugavam etnografia e abordagens quantitativas. Em 1992, a socióloga passou a compor o corpo docente da Universidade Federal Fluminense – UFF onde permaneceu por quatro anos. Em seu memorial, defendido na UERJ em 2018, Cecília explica que sua mudança da UFF para a Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ teve como fator principal a ausência, à época, do curso de Pós- Graduação no Departamento de Sociologia da UFF. Certamente, a Pós-Graduação é um espaço importante para a validação da produção científica na medida em que favorece a elaboração da pesquisa e a formação de novos pesquisadores.
Em 1995, Cecília passa a integrar o corpo docente da UERJ como professora adjunta, permanecendo na instituição até o presente como professora titular.
Não é difícil entender a presença do rigor teórico e metodológico na produção de Cecília Mariz quando se observa as amplas redes pelas quais circulou no Brasil e internacionalmente, estabelecendo um diálogo produtivo com antropólogos, sociólogos e teóricos com distintas formações. Cabe destacar sua passagem pelo ISER e sua participação no Grupo de Catolicismo, que havia sido criado por Pierre Sanchis (UFMG) na década de 1980. Regina Novaes, Patrícia Birman, Rubem Cesar Fernandes, Otávio Velho, Maria das Dores Campos Machado, Samira Crespo e vários outros interlocutores, favoreceram a elaboração e o refinamento de hipóteses em vários de seus projetos de pesquisa cujos resultados abriram janelas inspiradoras para seus orientandos e colegas.
Merece destaque a parceria intelectual com Maria das Dores Campos Machado iniciada em meados da década de 1990. À temática do sincretismo e das transformações do campo religioso brasileiro somaram-se as questões de gênero, política, mídia e família. Avançando na ampliação de redes internacionais e na própria formação, Cecília realizou seu primeiro pós-doutoramento na École des Hautes Études em Sciences Sociales, EHESS (1999-2000), na França, estabelecendo interlocução com Daniele Hervieu-Léger, Marion Aubrèe, Françoise Champion, pesquisadoras de referência na sociologia da religião. O segundo pós-doutoramento foi feito nos Estados Unidos, na New York University (2015-2016).
No primeiro pós-doutoramento, sua produção acadêmica concentrou-se no catolicismo carismático e suas variações, como a emergência das chamadas comunidades de vida e do espírito. É também um período em que seu diálogo com Peter Berger é retomado ao publicar um artigo instigante sobre os conceitos de secularização e dessecularização em Berger. Na New York University, Cecília mantém os estudos de catolicismo e pentecostalismo, além de abrir espaço para a análise das relações entre religião e juventude.
Como é próprio ao ofício do sociólogo, Cecília Mariz esteve sempre atenta às mudanças sociais e às temáticas emergentes no campo. Por essa razão, sua vastíssima produção tem buscado compreender as relações entre religião e mídia, religião e saúde, religião e migração; religião e política; religião e juventude, religião e globalização. De modo particular, a questão dos fluxos religiosos, transnacionalidade e globalização foi amadurecida com sua colega Clara Mafra (in memoriam), na UERJ, gerando o Grupo de Estudos de Cristianismo que reúne pesquisadores de várias instituições.
As inúmeras orientações de alunos na graduação e na pós-graduação revelam o quanto a produção acadêmica de Cecília Mariz é inspiradora. Mas revelam ainda sua generosidade como intelectual e ser humano para quem o conhecimento é processo que se consolida no diálogo profícuo, no olhar atento aos desafios do campo e nos bons encontros.
Sugestões de obras da autora:
MARIZ, C. O que precisamos saber sobre o censo para falar sobre os seus resultados? Um desafio para novos projetos de pesquisa. Debates do NER (UFRGS. Impresso), v. 14, p. 39, 2013.
MARIZ, C. Comunidades de vida no Espírito Santo: juventude e religião. Tempo Social (USP. Impresso), São Paulo, v. 17, n.2, p. 253-274, 2005.
MARIZ, C. Secularização e dessecularização; comentários a um texto de Peter Berger. Religião e Sociedade, vol. 21, no. 1, 2001, p. 25-39.
MARIZ, C. Coping With Poverty: Pentecostals And Base Communities In Brazil. Philadelphia , USA: Temple University Press, 1994. 224p .
Sobre a autora:
Cecília Loreto Mariz, «Memorial do Cecília Loreto Mariz», Interseções [Online], 21-2 | 2019, posto online no dia 15 agosto 2019, consultado o 06 junho 2021. URL: http://journals.openedition.org/intersecoes/597