Por Thiago da Costa Lopes (Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz) e
Carolina Arouca Gomes de Brito (Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz)
Carlos Alberto de Medina nasceu no dia 1º de novembro de 1931 em Recife (PE), filho de Olga da Silva Lima de Medina e Francisco de Medina. No Rio de Janeiro, após ingressar na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (atual UFRJ) em fins dos anos 1940, Medina adquire o título de bacharel e licenciado nos cursos de Sociologia e História. Neste momento, a aproximação com o sociólogo rural José Arthur Rios, com quem passa a colaborar profissionalmente, tornou-se decisiva para sua trajetória.
Em 1952, Medina ingressou na Campanha Nacional de Educação Rural (CNER) a convite de Rios, seu primeiro coordenador. Ligado aos círculos intelectuais católicos do Rio de Janeiro, e egresso das fileiras da Resistência Democrática, movimento de oposição a Vargas surgido ao final do Estado Novo, Rios havia realizado o mestrado em Sociologia Rural nos EUA, pondo-se em contato com um dos ramos das ciências sociais que melhor expressava, naquele país, a reação comunitarista à modernização. Ativos participantes dos experimentos em planejamento social do New Deal rural de Roosevelt, os sociólogos rurais se tornaram atores-chaves nos planos de desenvolvimento de comunidade postos em marcha em diferentes áreas pobres e rurais do mundo nos primeiros anos da Guerra Fria.
Subordinada ao Ministério da Educação e Saúde e instituída pelo Segundo Governo Vargas em meio a uma série de iniciativas voltadas à extensão da proteção social ao campo, a CNER buscava se aproximar, em seu modus operandi, daquelas estratégias de desenvolvimento, apoiando-se nas ideias de “educação de base”, “educação de adultos” e “desenvolvimento de comunidade”. Veiculadas por organismos multilaterais como a Unesco e por agências do governo norte-americano que, na esteira do Ponto IV de Harry Truman, passaram a prover assistência técnica ao denominado “Terceiro Mundo” em uma tentativa de conter o avanço do comunismo, tais abordagens punham ênfase na participação dos grupos locais e na possibilidade de mobilização de seus próprios recursos em programas de educação, saúde, habitação e extensão rural. “Ajudar o povo a ajudar a si mesmo” era o dístico que sintetizava esse modelo de intervenção, ele próprio um reflexo, nos embates ideológicos do período, da preocupação de reformadores e intelectuais em garantir que a ascensão econômica das massas se fizesse acompanhar de sua integração à esfera da participação política, de modo que o avanço modernizador sobre as populações rurais do globo se traduzisse em formas consideradas democráticas de governo.
A trajetória intelectual de Medina nos anos 1950 esteve entrelaçada às discussões sobre as relações entre desenvolvimento rural, participação comunitária e o papel das ciências sociais no planejamento de políticas públicas. Ainda que sem a mesma circulação internacional de Rios, ele realiza um percurso formativo afinado ao do sociólogo rural brasileiro. Em 1953, Medina participa de curso promovido no Brasil pelo padre Louis-Joseph Lebret, expoente do movimento reformador internacional Economia e Humanismo e importante interlocutor da sociologia de Rios. No ano seguinte, ele realiza treinamento em pesquisa junto a John Kolb, sociólogo rural estadunidense da Universidade de Wisconsin cuja visita ao país, sob patrocínio da Unesco, transcorreu no contexto dos acordos internacionais de cooperação técnica para o desenvolvimento de comunidades rurais no país.
Neste período, Medina toma ainda parte, como aluno, dos dois primeiros cursos de formação de técnicos em Missões Rurais organizados pela CNER na cidade de Pinhal (São Paulo). A iniciativa buscava suprir a carência de quadros técnicos capazes de conduzir o trabalho comunitário em pequenos distritos e bairros do vasto hinterland brasileiro, estruturado em uma etapa preliminar voltada para o estudo da comunidade e em um programa de ação baseado na atuação de diferentes especialistas (agrônomo, médico, assistente social, educador) em articulação com as chamadas ‘lideranças locais’, membros das camadas populares que, em razão da ascendência social, deveriam ser capazes de agir como fio condutor da mudança. Além de aulas teóricas, que incluíam disciplinas como “Organização de Comunidade e Técnica de Missão Rural” e “Sociologia Rural”, ministradas por Rios, Medina empreende o levantamento socioeconômico do município de Pinhal. A serviço da CNER, ele conduz, em 1953, estudos em cidades da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina a fim de identificar as localidades mais propícias ao trabalho de educação de base.
Em 1953, Medina se torna assistente da cadeira de “Problemas Econômicos e Sociais do Brasil” do curso de Puericultura e Administração do Departamento Nacional da Criança, órgão criado em 1940 no interior do Ministério da Educação e Saúde com o propósito de coordenar e normatizar as ações no terreno da proteção materno-infantil no país. O primeiro ocupante da cadeira, na década de 1940, foi o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos.
As relações entre saúde e ciências sociais ocuparam espaço considerável nos primeiros anos da atuação profissional de Medina como sociólogo. Em 1954, acompanhando a transferência de Rios para o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), ele passa a trabalhar como pesquisador social naquele órgão. Nascido de acordo entre os governos do Brasil e dos EUA como parte dos esforços de guerra, o SESP atuou inicialmente junto às populações rurais, especialmente entre trabalhadores, em regiões consideradas vitais para a obtenção de materiais estratégicos para o conflito, como a borracha no Vale do Amazonas. Nos anos 1950, a agência, cujos programas estiveram centrados na medicina preventiva, no saneamento e na educação sanitária, ampliou seu raio de atuação pelo território brasileiro graças à relevância atribuída ao fator saúde nos planos de desenvolvimento regional e à continuidade da assistência técnica dos EUA no contexto do Ponto IV de Harry S. Truman. A entrada de Medina no SESP se deu em um momento em que o órgão, em um esforço de rever suas estratégias de educação sanitária, adaptando-as às condições socioculturais das populações rurais brasileiras e ajustando-as ao espírito participativista dos programas de desenvolvimento de comunidade então em voga, instituiu uma Seção de Pesquisa Social, chefiada por Rios.
No SESP, onde permaneceu até o início dos anos 1960, Medina participou de estudos de localidades que precederam a instalação de novos serviços na esteira do estabelecimento de acordos de cooperação do SESP com diferentes estados da federação. Em 1955, realizou levantamentos socioeconômicos em municípios da Fronteira Oeste do Paraná. Em 1957, entrevistou funcionários e usuários da unidade sanitária de Pirapora (MG) a fim de aferir a validade de materiais de educação sanitária a serem utilizados em campanha de prevenção contra a diarreia infantil, uma das principais causas de mortalidade de recém-nascidos no país. Em 1960, conduziu levantamentos em 20 municípios do Rio Grande do Norte, na região da antiga ferrovia “Great Western”. Medina foi ainda escalado para uma pesquisa, que não chegou a ser realizada, sobre estereótipos relacionados a pessoas com tuberculose, e para um “estudo de atitudes” em Palmares (PE) centrado na avaliação dos fatores que dificultavam a adesão das populações rurais a projetos cooperativos de saneamento. O problema da participação dos segmentos empobrecidos da sociedade em políticas destinadas ao aprimoramento de suas próprias condições de vida assim como os limites de ações em saúde e educação na superação do que à época era chamado de “círculo vicioso da doença e da pobreza” assumem primeiro plano nas incursões do sociólogo pelo mundo rural brasileiro.
Com estas preocupações em mente, Medina irá se debruçar igualmente sobre as favelas da cidade do Rio Janeiro, participando, em fins dos anos 1950, de uma das primeiras pesquisas sociológicas de fôlego sobre esses aglomerados urbanos, realizada pela Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais (Sagmacs). Fundada pelo grupo do padre Lebret no Brasil nos moldes de entidade francesa congênere, a agência contava com escritório no Rio de Janeiro, dirigido por Rios. No estudo, que contou ainda com participação do arquiteto Hélio Modesto, Medina foi um dos coordenadores das equipes que realizaram o trabalho de campo, recrutadas entre alunos dos cursos de Serviço Social da cidade. No relatório da Sagmacs, a favela surge como produto de uma forma de modernização da sociedade brasileira baseada no crescimento urbano-industrial desordenado e incapaz de solucionar os problemas sociais criados pelo antigo mundo rural, organizado em torno do latifúndio senhorial. A partir dessa experiência, Medina escreve, na atmosfera ideológica polarizada dos anos 1960 e em meio à crise do governo João Goulart, o opúsculo “A favela e o demagogo” (1964), em que se interroga pelos destinos da democracia em um país visto como preso a um padrão de desenvolvimento excludente, reprodutor das desigualdades, de frágil cultura cívica e refém de tradições políticas paternalísticas e clientelísticas. O livro também assinala o intrincado quadro socioeconômico das favelas, questionando o pressuposto de que estas constituiriam unidades sociais homogêneas e coesas.
Em 1965, Medina se torna chefe do Departamento de Estudos e Pesquisas do Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (CERIS). Órgão filiado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, à Conferência dos Religiosos do Brasil e à Federação de Institutos de Pesquisas Sociais e Sociorreligiosas, o CERIS nasceu com a missão de realizar estudos, planejamento e consultoria para programas de assistência social, refletindo um dos muitos esforços da Igreja Católica em tomar parte no debate sobre o subdesenvolvimento. Atuando na agência até os anos 1990, Medina foi um dos responsáveis pela avaliação de projetos. Além da condução de pesquisas de campo, sua experiência de trabalho no órgão deu origem ao livro “Participação e trabalho social: um manual de promoção humana” (1981).
A partir de 1967, Medina serviu como Secretário Geral do Centro Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais (CLAPCS), assumindo sua direção entre 1974 e 1979. Criado em 1957 sob os auspícios da Unesco e com sede no Rio de Janeiro, o CLAPCS, cuja direção coube inicialmente ao sociólogo Luiz de Aguiar Costa Pinto, representou importante fórum de debates, nas ciências sociais, sobre a questão do desenvolvimento na América Latina. A produção intelectual de Medina na instituição esteve ligada aos temas da relação campo-cidade, do ensino agrícola, da estrutura agrária e das favelas.
A docência também fez parte das atividades de Medina nos anos 1970. Foi professor convidado da Escola de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica (RJ) e do Instituto de Direito Público e Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas (RJ). Atuou como professor e conferencista do I Curso Interamericano de Planejamento Urbano e Habitação do Banco Interamericano de Desenvolvimento organizado pela Escola Nacional de Serviços Urbanos. Em 1972, foi consultor do projeto de urbanização para o Morro da Mangueira, no Rio de Janeiro, em parceria com o Instituto dos Arquitetos do Brasil e o Banco Nacional da Habitação. No mesmo ano, integrou o Grupo de Trabalho “Níveis de vida e pesquisa de orçamentos familiares na transamazônica” a convite do Ministério do Trabalho.
Nos anos 1990, a partir do interesse sociológico pela instituição familiar, Medina, em parceria com a psicóloga Berenice Fialho, com quem foi casado de 1976 até o final de sua vida, publicou o livro “A arte de viver em família: conversas com a família em crise”. Em fins daquela década, empreendeu análises do primeiro ano do Governo Anthony Garotinho no Estado do Rio de Janeiro a partir de notícias dos principais jornais da época, reunindo-as no livro “Socorro: Rio de Janeiro 1999-2000”, uma de suas últimas publicações.
Sem vinculações com os principais centros acadêmicos do período, a atuação profissional de Medina nos ajuda, entretanto, a compreender o complexo e multifacetado contexto institucional em que a produção sociológica brasileira se processou, em particular no Rio de Janeiro, envolvendo organismos multilaterais, agências do Estado e grupos políticos e religiosos. Questões candentes para as ciências sociais de então, como as relações entre o rural e o urbano, as condições sociais de possibilidade da democracia e os impasses do desenvolvimento em países periféricos como o Brasil, marcaram suas reflexões. Medina faleceu em 3 de maio de 2010 na cidade do Rio de Janeiro, aos 79 anos de idade. Seu acervo pessoal foi doado à Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz.
Sugestões de obra do autor:
MEDINA, Carlos Alberto de. Levantamento sócio-econômico de 20 municípios da região da “Great-Western”, estado do Rio Grande do Norte. Revista do SESP, tomo XI, n. 2, pp. 427-471, jun. 1961.
MEDINA, Carlos Alberto de. A favela e o demagogo. Rio de Janeiro: Leituras do Povo, 1964.
MEDINA, Carlos Alberto de. Participação e trabalho social: um manual de promoção humana. Petrópolis: Vozes, 1981.
Sobre o autor:
BRITO, Carolina Arouca Gomes; LOPES, Thiago da Costa. 2022. Saúde, desenvolvimento e interpretações do Brasil: uma análise da perspectiva sociológica de Carlos Alberto de Medina. Lua Nova, 115: 43 – 80, 2022. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ln/a/jTD7fbGzHhNPPwtSFFmb3Hc/?format=pdf&lang=pt.
LOPES, Thiago da Costa; BRITO, Carolina Arouca Gomes. Uma ciência do social para a saúde: a inserção de cientistas sociais no Serviço Especial de Saúde Pública (1950). In: ARAÚJO NETO, Luiz Alves; BRITO, Carolina Arouca Gomes; FREITAS, Rodrigo Cavalari. (org.). História da saúde: diálogos para o século XXI. São Paulo: Hucitec, 2022.