Por Edison Ricardo Emiliano Bertoncelo (USP)
Além de sociólogo e intelectual competente, Brasilio é, antes de tudo, uma pessoa íntegra e generosa. É um dos raros cientistas sociais que possui uma obra, fruto do entendimento de que a boa prática sociológica exige a construção do objeto em bases empíricas sólidas a partir do enfrentamento dos problemas de natureza teórico-interpretativa próprios a um domínio de investigação, prática essa que diligentemente busca ensinar a seus alunos(as) e orientandos(as). Desde o doutorado, em que examinou a penetração das relações capitalistas na cafeicultura do Oeste Paulista, passando pela análise dos processos de transição política e de democratização e chegando à investigação do impeachment de Fernando Collor, Brasilio jamais se furtou ao desafio de construir uma abordagem teórica original para dar conta de aspectos pertinentes da vida social.
Nasceu na cidade de Porto Alegre em 1946. Após ter estudado Economia por um breve período na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e na Universidade de Concepción no Chile, ficou desiludido com o curso, no qual ingressara em 1965. A América Latina passava, então, por um período de “enorme agitação política” e ele entendia que a Economia “era insuficiente para entender o processo de transformação em curso” (BASTOS et al. 2006, p. 270). Mudou-se, então, para São Paulo para cursar o curso de Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, que concluiu em 1970. Doutorou-se em Sociologia também pela Universidade de São Paulo em 1980 com a tese Capitalismo e Cafeicultura no Oeste Paulista (1888-1930), sob orientação de Luiz Pereira. Tornou-se livre-docente em 1995. Desenvolveu pesquisas de pós-doutoramento na Universidade de Stanford (1997-1998) e na Universidade Nacional Autônoma do México (1999).
Atuou como Professor de Sociologia da Universidade de São Paulo por mais de 40 anos, entre 1974 e 2016. Tornou-se Professor Titular em 2004. Teve papel importante na construção e na consolidação institucional do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia, tendo ocupado cargos de chefia, coordenação e de representação docente junto à Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Por vários anos, foi diretor do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC), relevante centro de pesquisa em questões de política nacional e internacional.
Depois de Capitalismo e Cafeicultura, Brasilio dedicou-se mais intensamente à análise de conjunturas de crise política. Ele se viu absorvido pela política por duas vias distintas. Em primeiro lugar, chegou a ela pela via teórica, a partir de um questionamento ao modo de tratamento das questões políticas pelo marxismo. Em segundo lugar, através do engajamento no debate da política nacional. Tendo começado a trabalhar como editorialista na Folha de São Paulo no começo de 1983, ficou “empolgado pela análise de conjuntura” e foi “tragado pelo movimento pela democratização” (idem, p. 279).
Tal “guinada” resultou na publicação do livro Labirintos: dos Generais à Nova República, que condensou um conjunto de análises desenvolvidas e publicadas ao longo das décadas de 1980 e 1990, em que o autor desenvolve uma perspectiva teórico-analítica instigante para dar conta dos processos de transição política e de democratização, analisados pela ótica das conjunturas. Labirintos é uma tentativa, bastante sofisticada, de demonstrar como o impasse estrutural, produto da crise do “padrão anterior de articulação entre capitais locais… e o capital internacional; [da] forma de agregação e representação de interesses econômico-sociais gerados em uma sociedade cada vez mais complexa; e [da] relação entre setor público e privado no processo de desenvolvimento capitalista” (SALLUM, 1996, p. 8), se transformou em uma crise política que afetava não apenas o regime político, mas, sobretudo, a própria forma de Estado. Em análises posteriores, o autor viria a denominá-lo de Estado Varguista (SALLUM, 2003), para acentuar a peculiaridade da manifestação da forma desenvolvimentista e autocrática dessa forma de Estado no Brasil.
Nesse sentido, Labirintos viria a sistematizar um tipo de Sociologia Política preocupada em trazer o Estado “de volta” ao centro da análise política, pensado em suas interfaces com os interesses econômicos, com os atores coletivos socialmente enraizados e com o mundo exterior, sem descurar, ao mesmo tempo, da análise das estruturas institucionais e das normas que moldam diferentes regimes políticos. Propõe, assim, diferentes níveis de observação da vida política (Estado, regime e governo) em suas relações com o mercado e com a sociedade.
Das pesquisas sobre conjunturas políticas, resultou também uma enorme base de dados sobre eventos de política nacional, construída por Brasílio e Eduardo Graeff, a partir da coleta de informações em quatro jornais de circulação nacional (Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, Jornal do Brasil e Gazeta Mercantil). A base está atualmente disponível para consulta e utilização no site do Consórcio de Informações Sociais, um sistema de compartilhamento de dados criado em 2003 por iniciativa de Brasílio, com apoio do Departamento de Sociologia da USP (http://cis.prp.usp.br/cis).
Depois de Labirintos, Brasílio dedicou-se ao estudo do processo de liberalização econômica no Brasil a partir de um prisma político e de um enfoque comparativo, que resultou na publicação de vários artigos e a coletânea Brasil e Argentina hoje: política e economia (2004). Escreveu também extensamente sobre as mudanças do Estado brasileiro nos governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, argumentando que essas transformações na relação do Estado com a sociedade e o mercado não obedeceram a diretrizes neoliberais, como argumenta uma parte da literatura especializada, mas, ao invés, a “um ideário liberal moderado e pouco ortodoxo… que valoriza a sociedade mercantil, o capitalismo, mas não exclui, e até admite, a intervenção do Estado” tanto para reduzir desigualdades de vários tipos quanto para promover o desenvolvimento econômico (SALLUM; GOULART, 2016, p. 131).
Dando continuidade à preocupação com a investigação do processo de transformação da sociedade brasileira sob o prisma das conjunturas de crise política, Brasílio estudou o processo político que resultou no impedimento do ex-presidente Fernando Collor de Mello. Resultado de uma extensa pesquisa empírica em diálogo profícuo com a literatura sobre o tema, o livro O Impeachment de Fernando Collor: Sociologia de uma crise (2015) transpõe um argumento já construído em Labirintos para o exame da conjuntura política dos anos 1990, sendo, nesse sentido, fiel à abordagem da Sociologia Política que buscava mobilizar: o impeachment é visto como um evento de uma conjuntura crítica mais ampla, ocasionada pelo esgotamento do Estado varguista e acentuada pelo fracasso dos atores políticos em construir e impor um projeto político visando à reconstrução do Estado em novas bases.
A qualidade da obra de Brasilio atesta a seriedade com que conduz sua vida acadêmica. Sua generosidade e competência na docência e na orientação de pesquisas levaram à formação de novos(as) pesquisadores(as) que, assim como eu, tentam levar adiante seus ensinamentos quanto ao fazer sociológico.
Sugestões de obras do autor:
SALLUM Jr., Brasilio. O Impeachment de Fernando Collor: Sociologia de uma Crise. São Paulo, Editora 34, 2015.
SALLUM Jr., Brasilio. Brasil e Argentina hoje: política e economia. Bauru, EDUSC, 2004.
SALLUM Jr., Brasilio. “Metamorfoses do Estado brasileiro no final do século XX”. Revista Brasileira de Ciências Sociais,18 (52), 2003, p. 35-55.
SALLUM Jr., Brasilio. “O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvimentismo”. Tempo Social, 11 (2), 1999, p. 23-47.
SALLUM Jr., Brasilio. Labirintos: dos generais à Nova República. São Paulo, Hucitec, 1996.
SALLUM Jr., Brasilio. Capitalismo e cafeicultura: Oeste paulista, 1888-1930. São Paulo, Duas Cidades, 1982.
Sobre o autor:
Entrevista com Brasílio Sallum Jr. in: BASTOS, Elide Rugai; ABRUCIO, Fernando; LOUREIRO, Maria Rita; REGO, José Márcio. Conversas com Sociólogos Brasileiros. São Paulo, Editora 34, 2006, p. 269-289.