Por Henrique Carlos de O. de Castro (UFRGS)
Resumir a vida de pessoas como Benício Viero Schmidt em algumas linhas é empresa difícil. Este gaúcho nascido em Porto Alegre em 27 de janeiro de 1944 tem, desde a tenra juventude, uma postura crítica em relação ao mundo, o que o levou precocemente para a área de Humanidades. De origem teuto-italiana, filho de pais intelectualizados de classe média, soube aproveitar as oportunidades que a vida propiciou. Leitor voraz desde jovem e atento observador do Brasil em um momento de singular movimentação política – os antecedentes do golpe civil-miliar de 1964 –, Benício conclui o então curso clássico no tradicional Colégio Rosário de Porto Alegre em 1962 e inicia a sua vida acadêmica no curso de Direito da PUCRS em 1963 (iniciou também o curso de Ciências Sociais na UFRGS no mesmo período, mas não o concluiu). Militante político da AP – Ação Popular, movimento político ligado a setores progressistas da Igreja Católica, logo começa a estudar a sociedade e a política em um grupo acadêmico criado pelo professor Leônidas Xausa, fundador da Ciência Política no RS, o que em muita medida delineou a sua vida.
Como tantos de sua geração, teve a vida marcada pelo golpe de 1964. Se a sua vocação para atuar de forma ativa para influenciar a sociedade continuava, as limitações políticas de então o levaram definitivamente para a Academia. Começa com os olhos voltados para a Ciência Política, mas encontra na Sociologia o locus para tentar saciar a inquietação intelectual que carrega até hoje.
Se os títulos dos cursos de pós-graduação realizados foram em Ciência Política – Mestrado na UFMG de 1968 a 1970 e doutorado na Stanford University concluído em 1979 –, a sua inclinação para a Sociologia já se fazia presente nas aulas e orientações durante o tempo de docência no Departamento de Ciência Política da UFMG (1973 a 1976) ou no PROPUR – Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da UFRGS (1976 a 1982). Pode-se dizer, no entanto, que a consolidação da sua carreira de sociólogo se dá quando é convidado para ser professor da Universidade de Brasília (UnB) em 1982, sendo um dos fundadores do seu Departamento de Sociologia, universidade na qual foi o primeiro professor a se tornar titular por concurso público. A partir de então a sua atuação científica, política e institucional (e, arrisco dizer, pessoal) é definitivamente construída a partir da sua identidade de sociólogo. Foi professor visitante na Bolívia (FLACSO/La Paz 1990) e no Chile (PUC, 2002). Fez estágio pós-doutoral na Université de Paris I, acolhido por Ignacy Sachs na École des Hautes Études (1993-94).
Benício se destaca, porém, mais além de ser um sociólogo arguto e vivaz: é um construtor de instituições. Além de ter sido parte do grupo que criou o importante Departamento de Sociologia da UnB, na mesma universidade criou o CEPPAC – Centro de Pesquisa e Pós-graduação sobre a América Latina e Caribe em 1986 e consolidou o DATAUnB – Centro de Pesquisa sobre Opinião Pública, sendo o seu diretor de 1997 a 2004. Permito-me mencionar que tive a felicidade de conhecer o Benício primeiro como estudante de mestrado na UFRGS e posteriormente como amigo e colega, por ele convidado, no CEPPAC e no DATAUnB. A sua atuação institucional nunca o limitou às atividades intra muros. Com efeito, foi Presidente da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP/DF) entre 1995 e 1996, foi membro da diretoria da ANDES/Sindicato Nacional dos Docentes de Ensino Superior na gestão Renato de
Oliveira (2001 a 2002), Coordenador da Cooperação Internacional da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) de 2004 a 2006, Secretário Executivo do Conselho Nacional de Educação (CNE) entre 2006 e 2007, idealizador e primeiro Diretor do Departamento Pesquisas Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2008. Além disso, foi diretor da SBS de 2002 a 2003, membro do Comitê da Área de Sociologia do CNPq de 1983 a 1985 e assessor da diretoria da Anpocs (Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais) durante a Presidência de Vilmar Faria. Em 1979 recebeu o “Charles Borden, Geoffrey Bushnell And Juan Comas Prize”, no XLIII International Congress of Americanists, no Canadá. A sua paixão por livros e leitura também o levou a empreitadas editoriais, com destaque para a criação das editoras Paralelo 15 e Verbena, editando, traduzindo e publicando dezenas de livros especialmente de Ciências Sociais e Humanidades. No campo político, participou ativamente de todos os momentos importantes do país desde jovem, muitas vezes como um lutador de causas (quase) impossíveis, como a tentativa de recriar um movimento político e social com base na antiga AP nos anos 2000, sem as ligações políticas de antes, junto com alguns de seus contemporâneos.
O cientista e pesquisador reconhecido internacionalmente trouxe contribuições de fundamental importância para as áreas de políticas públicas (o seu livro sobre Estado e política urbana foi por muito tempo o mais lido por profissionais da área), de avaliação de políticas públicas, do Estado, de sociedade, de política comparada, particularmente, mas não limitada, à América Latina. Foi, por exemplo, um dos precursores em nível internacional do que se convencionou chamar especialmente a partir dos anos 2010 de Políticas Públicas baseadas em evidências (evidence-based policymaking – EBP) em pesquisas com colegas do DATAUnB desde o final da década de 1990. Também merece destaque, pelo caráter inovador, a realização do primeiro (e único) Censo da Reforma Agrária no Brasil em 1997 e pela criação da pesquisa A Justiça em Números (CNJ) em 2005, que continua sendo editada anualmente. Além disso, foi pesquisador Produtividade em Pesquisa 1A do CNPq na área de Sociologia. Formou – como orientador, professor ou colega – algumas gerações de cientistas sociais. Posso dizer, até por experiência própria, que as suas aulas, conferências, participação em debates e mesmo conversas informais marcaram e marcam a vida das pessoas. O professor transmite o entusiasmo com que vê o mundo, sempre trazendo conhecimentos de Sociologia, mas com aportes de outras disciplinas das Ciências Sociais, de Literatura, de História, da conjuntura e de outras áreas do conhecimento, sempre indicando leituras clássicas ou atuais, muitas delas erroneamente esquecidas. Já o cientista e analista indica pelo exemplo e pelas precisas, muitas vezes sarcásticas, interpretações da realidade caminhos a percorrer. As suas mais de 100 publicações são marcadas por uma provocativa originalidade, sendo inspiração e fonte para muitos.
Muito mais haveria a escrever sobre Benício Viero Schmidt, mas deve-se salientar por fim o ser humano. Esposo de Lia Zanotta Machado, importante antropóloga, pai de duas filhas (do seu primeiro casamento com Isaura Belloni, também cientista social, já falecida) e de um enteado/filho, avô de três meninas e um menino, amigo leal e fraterno, humanista e democrata convicto, inconformado com as injustiças sociais e com as mazelas da política institucional, sempre costuma dizer que “o ser humano falhou como espécie”. Este aparente pessimismo não encontra, no entanto, guarida na vida deste importante sociólogo e cientista social, uma vez que sempre agiu – dentro e fora da Academia – para mudar este mundo. Neste sentido, este construtor de instituições, de pessoas e de conhecimentos encarna o que um cientista deve ser: pessimista com o que observa, compreende e explica e otimista na construção da sua vida e daqueles que têm ou tiveram a felicidade de compartilhá-la.
Sugestões de obras do autor:
SCHMIDT, B. V.; OLIVEIRA, R. (Org.) ; ARAGON, V. A. (Org.) . Entre Escombros e Alternativas, Ensino Superior na América Latina. 1. ed. Brasília: Editora da UnB, 2000. v. 3000. 310p .
SCHMIDT, B. V.; MARINHO, D. N. (Org.) ; ROSA, S. C. (Org.) . Os Assentamentos de Reforma Agraria No Brasil. 1. ed. BRASILIA: Editora da Universidade de Brasília, 1998. v. 3000. 306p .
SCHMIDT, B. V.; FARRET, R. . A Questão Urbana. 1. ed. RIO DE JANEIRO: JORGE ZAHAR EDITOR, 1986. v. 3000. 110p .
SCHMIDT, B. V.. O Estado e A Política Urbana no Brasil. 1. ed. PORTO ALEGRE: LPM / EDITORA DA UFRGS, 1983. v. 3000. 215p .
SCHMIDT, B. V. Modernization and Urban Planning In The 19th Century Brazil. URBAN HISTORY REVIEW, v. XV, n.1, p. 132-156, Canada, 1980.