Por Maria Francisca Pinheiro Coelho (UnB)
Barbara Freitag nasceu na Alemanha em 1941, no auge da Segunda Guerra, em um pequeno vilarejo da Bavária chamado Obernzell, à beira do rio Danúbio, na Alemanha Oriental. O pai, Karl Freitag, era engenheiro químico com doutorado em Berlim, na Technische Hochschule. O pai faleceu de câncer em um hospital de Berlim, em 1943, deixando cinco filhos, quatro mulheres e um homem.
Barbara, era a mais nova. A mãe, Margot Freitag, passou a dirigir um orfanado por três anos e como não tinha tempo especial para a filha mais nova, Barbara estreitou os laços afetivos com a avó materna.
Ainda durante a Guerra, a mãe fez a travessia da família para o lado ocidental, a zona de ocupação dos americanos, ingleses e franceses.
Em 1947, Margot Freitag contraiu na Suíça um novo casamento com um professor romeno, doutor em física, de nome Eugen Bodea, que recebeu um convite para trabalhar em uma universidade brasileira. A família Bodea obteve o visto de entrada no Brasil e em janeiro de 1948 desembarcou no Porto de Santos. A mãe viajou grávida do sexto filho, um menino, que nasceu brasileiro, Mihail Bodea, que depois trocou o nome para Miguel Bodea. Barbara chegou no Brasil com seis anos. Por três anos, a família morou em Itajubá, Minas Gerais, onde Dido, como era chamado o padrasto, trabalhava, quando então foi convidado para trabalhar em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, na Companhia Elétrica do Estado.
Em Porto Alegre, Barbara foi matriculada no Colégio Farroupilha, onde se destacou como boa aluna, ganhando uma bolsa de estudo. Passou a dar aulas de recuperação aos alunos com dificuldades de acompanhar as matérias de matemática, física e ciências naturais. Foi nessa atividade que reconheceu sua vocação como professora, pois “dava-lhe prazer e reconhecimento”. Foi a avó materna, Ana Johanna, que ao perceber o talento de Barbara para o ensino a incentivou a continuar os estudos acadêmicos na Alemanha, onde fez sua graduação, mestrado e doutorado em Sociologia.
Em 1961, com o apoio financeiro da avó, Barbara retornou à Alemanha. Primeiro foi para Frankfurt cursar Filosofia e Ciências Sociais, onde assistiu aulas de Max Horkheimer e Theodor Adorno em cursos de Introdução à Sociologia e Teorias da Modernidade. Eles discutiam temas contemporâneos da sociedade de massas, como os mecanismos de comunicação. Barbara estudou na biblioteca especializada da Universidade, que tinha um excelente acervo de Filosofia, e na biblioteca do Instituto de Pesquisa Social, que passou a ser conhecido como a Escola de Frankfurt. O Instituto reuniu nomes como Herbert Marcuse, Ernst Bloch, Friedrich Pollock, entre outros. Boa parte do projeto de pesquisa do Instituto de Pesquisa Social era em torno do tema da “Autoridade e Família”, embasado em reflexões teóricas sobre o freudo-marxismo. Na época, a Alemanha já estava dividida em Leste (DDR) e Oeste (BRD), a Alemanha Ocidental. O muro de Berlim tinha sido construído em 1961, ano que Barbara retornou à Alemanha. Em 1963, ela se transferiu de Frankfurt, onde tinha estudado por três semestres, para Berlim.
Barbara formou-se em Sociologia em 1972 em Berlim, depois de cumprida uma longa carga horária de Filosofia e Estatística, como pré-requisitos. Em um de seus estágios como estudante universitária passou três meses na Argentina e participou do Congresso Internacional de Sociologia, em Córdoba, como tradutora entre pares alemães e latino-americanos. Nesse Congresso conheceu o sociólogo Octávio Ianni, que a incentivou a incluir em seus estudos em Berlim a contribuição de autores como Gilberto Freyre, Florestan Fernandes e Celso Furtado, sugestão que ela levou à risca. O programa que a levou à Argentina fazia parte de um intercâmbio alemão com países em desenvolvimento no exterior. Nesse programa, ela também visitou outros países da América do Sul e da América Central.
Morou em Berlim de 1963 a 1972. Na Universidade Livre de Berlim estudou no Departamento de Filosofia, um pré-requisito para concluir sua formação em Sociologia, com um diploma reconhecido na Alemanha e nos Estados Unidos. Sua dissertação de mestrado (1967) foi sobre o desenvolvimento socioeconômico do Brasil a partir do olhar de cientistas sociais brasileiros. Sua tese de doutorado (1976) foi sobre a política educacional brasileira, agente ou resultante de processos de mudanças sociais. Fez seu mestrado na Universidade Livre e seu doutorado na Universidade Técnica. No período, foi professora de Sociologia e Psicologia na Universidade Técnica de Berlim e posteriormente nas Universidades de Zurique, Freiburg e Frankfurt (1979-1982), como professora visitante.
Durante sua pós-graduação em Berlim, Barbara Freitag tornou-se leitora e correspondente do professor Florestan Fernandes. Foi Florestan que fez a carta de recomendação para ela ser contratada pelo Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, que tinha como Diretor do Instituto de Ciências Sociais o professor Roque de Barros Laraia e chefe do Departamento de Sociologia o professor Maurício Vinhas de Queiroz. Em 1972, foi contratada pela Universidade de Brasília.
Na época, a UnB passava por problemas políticos decorrentes das pressões do regime militar e Barbara enfrentou muita resistência devido às suas aulas. Seu primeiro livro, Escola, Estado e Sociedade (1978), possuía conteúdos críticos sobre a educação, como um processo de reprodução social. No entanto, Barbara não se intimidava com os comentários críticos que sofria do regime, chegando mesmo a fazer seminários em sua residência, quando o clima na UnB era de muita vigilância, como nos contou o professor Roque de Barros Laraia.
Barbara Freitag casou-se com o diplomata Sergio Paulo Rouanet em 1976, mudando seu nome para Barbara Freitag-Rouanet, e acompanhou-o até o ano 2000 em seus postos diplomáticos (Zurique, Copenhague, Berlim e Praga), intercalando com suas atividades como professora Titular da Universidade de Brasília. Sua carreira como professora da UnB só foi concluída com sua aposentadora, em 2003. Em 2005, recebeu o título de professora Emérita da UnB. A cerimônia foi retratada pelos seus discípulos, alguns chamados carinhosamente de ‘barbaretes’, e resultou no livro Itinerários de Barbara Freitag (2005). Depois de sua aposentadoria, Freitag também aceitou convites para dar aulas em Universidades como a Universidade Federal da Bahia, Universidade de São Paulo, Universidade do Paraná, entre outras.
Barbara Freitag tem uma expressiva produção bibliográfica. Publicou ao todo 30 livros e foi organizadora de vários outros e coletâneas de estudos. O foco de suas pesquisas e livros concentra-se nos temas de política educacional, filosofia e política, Escola de Frankfurt, teoria crítica, teoria sociológica e teorias das cidades. Entre alguns de seus principais livros destacam-se: Escola, Estado e Sociedade (1978); Sociedade e Consciência – um estudo piagetiano na favela e escola (1984), defendido como tese de livre-docência em Berlim (1983). Teoria Crítica: ontem e hoje (1986), de leitura indispensável para conhecimento da história da Escola de Frankfurt, onde estudou e se tornou discípula de Jürgen Habermas e uma das mais competentes intérpretes de seu pensamento no Brasil.
Itinerários de Antígona (1992) é um estudo sociológico da abordagem filosófico entre a esfera pública e a esfera privada. A área de pesquisa sobre as cidades fez parte de um projeto do CNPq, como bolsista (Nível 1A), de 2000-2008, coordenando uma equipe de professores, que resultou em três livros: Itinerâncas Urbanas (2004); Teorias da Cidade (2006); e Capitais migrantes e poderes peregrinos: O caso do Rio de Janeiro (2009). Neste último, talvez o mais importante desse ciclo de estudo sobre as cidades, analisa a construção das capitais no Brasil, relacionando-as à história do país e a política. Em 2019 publica Peregrinação e aprendizado: minhas cidades formadoras, uma obra autobiográfica projetada também com o tema das cidades. Embora uma cidadã do mundo, Freitag não abriu mão de sua cidadania alemã. Articula seu saber sociológico com uma profunda compreensão humanista e universalista.
Podemos concluir com um retrato do perfil da Barbara Freitag como uma intelectual de face pública, conceito caro a Jürgen Habermas. Como socióloga, sempre esteve atenta aos resultados de suas pesquisas empíricas. Como cidadã, nunca se negou a dar sua opinião diante dos fatos, procurando sempre estabelecer distinções entre os dois papeis: como cientista e como cidadã. Barbara Freitag trouxe relevantes contribuições para a sociologia brasileira no campo da docência e da pesquisa. Destacou-se em dois momentos da construção do campo da Sociologia no Brasil: na sua expansão e consolidação.
Sugestões de obras da autora:
FREITAG-ROUANET, Barbara. Peregrinação e aprendizado: minhas cidades formadoras. Porto Alegre: Class, 2019. 152 p.
FREITAG, Barbara. Capitais migrantes e poderes peregrinos: O caso do Rio de Janeiro. Campinas, SP: Papirus, 2009. 400 p.
FREITAG, Barbara. Teorias da cidade. Campinas, SP: Papirus, 2006. 190 p.
FREITAG, Barbara. Itinerâncias Urbanas. Brasília, DF: Casa das Musas, 2004. 150 p.
FREITAG, Barbara. Itinerários de Antígona: A questão da moralidade. Campinas, SP: Papirus, 1992. 308 p.
FREITAG, Barbara. A teoria crítica: ontem e hoje. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986. 185 p.
FREITAG, Barbara. Piaget: Encontros e desencontros. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. 160 p.
FREITAG, Barbara. Sociedade e consciência: um estudo piagetiano na favela e na escola. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1984. 239 p.
FREITAG, Barbara. Escola, Estado e sociedade. São Paulo: Edart, 1978.
Sobre a autora:
ROUANET, Sergio Paulo; SOUSA, Nair Heloisa Bicalho de, COELHO, Maria Francisca Pinheiro (Organizadores). Itinerários de Barbara Freitag. Brasília: Editora Universidade de Brasília : Finatec, 2005. 174 p.