Por Ricardo Mariano (USP)
Nasceu em 28 de agosto de 1944 em Altinópolis, São Paulo, e faleceu em 8 de junho de 2012. De família católica, aos 11 anos, ingressou no seminário menor da diocese de Ribeirão Preto. Em 1964, graduou-se em filosofia no Seminário Central da Arquidiocese de São Paulo e, quatro anos depois, em teologia na PUC-SP. Em 1970, abandonou o doutorado em teologia dogmática na Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma, após romper com a igreja e desistir da carreira eclesiástica.
Em 1971, iniciou sua trajetória acadêmica participando como auxiliar na pesquisa “Mudanças nas funções sociais do cristianismo no Brasil”, realizada no Cebrap sob orientação de Candido Procópio Ferreira de Camargo, que orientou sua dissertação de mestrado Igreja Católica e reprodução humana no Brasil, defendida em 1977 na PUC-SP e publicada pela Brasiliense no ano seguinte com o título Igreja: contradições e acomodação. A ideologia do clero católico sobre a reprodução humana. Lecionou na Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP entre 1978 e 1985. Neste ano, sob orientação de Reginaldo Prandi, defendeu, no PPG de Sociologia da USP, a tese de doutorado Democracia, igreja e voto: o envolvimento eleitoral do clero paroquial de São Paulo nas eleições de 1982. Em 1986, ingressou, como professor visitante de sociologia, no Departamento de Ciências Sociais da USP, para o qual foi contratado como professor assistente em janeiro de 1988. Em 2001, defendeu, na FFLCH-USP, a tese de livre-docência O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber, publicada em 2003 pela Editora 34. Em 2006, tornou-se professor titular de sociologia da USP.
Por duas décadas, Flávio exerceu cargos administrativos relevantes na universidade e noutras instituições acadêmicas e de fomento à pesquisa. Entre 1990 e 1992, coordenou o curso de Pós-Graduação em Sociologia da USP. Entre 1992 e 1996, foi secretário-executivo da ANPOCS. Em 1997, coordenou o Comitê Assessor de Ciências Sociais do CNPq. De 1998 a 2001, integrou o comitê de avaliação do Pronex do CNPq. De 1998 a 2000, participou da diretoria da Associación de Cientistas Sociais de la Religión del Mercosur (ACSRM). De 2001 a 2003, foi secretário-geral da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e, entre 2001 e 2004, editor da revista Novos Estudos Cebrap. Quando faleceu, chefiava o Departamento de Sociologia da USP.
Entre meados dos anos 80 e dos 90, pesquisou as bases populares conservadoras de partidos e plataformas políticas de direita em São Paulo, sobretudo as janistas e malufistas. Investigou a bancada evangélica na Constituinte, núcleo inicial da direita cristã no país, e a politização à direita do pentecostalismo. Em 1999, publicou Ciladas da diferença, pela Editora 34, na qual discorreu sobre as armadilhas teóricas em que movimentos de esquerda incorrem ao investir nos discursos diferencialistas, na defesa, no valor, no léxico e na estratégia da diferença e no direito à diferença, enfatizando que tais arsenais ideológicos têm sido acionados, tradicionalmente e de forma exitosa, pela direita para rejeitar e combater os Direitos Humanos e o igualitarismo.
A partir de meados da década de 90, dedica-se à sociologia da religião de recorte weberiano. E engajou-se em debates acadêmicos. Primeiro, inspirado pela conferência de Bourdieu sobre “Sociólogos da crença e crenças de sociólogos” e num tom provocador, questionou a cientificidade da sociologia da religião efetuada por pesquisadores religiosos e defende a necessidade de submeter a pertença religiosa a “um esforço de objetivação reflexiva sem complacência”.
Embrenhou-se, em seguida, no debate da teoria da secularização, na posição de defensor dessa perspectiva teórica já então minoritária. No artigo “Reencantamento e dessecularização: a propósito do autoengano em sociologia da religião”, de 1997, rejeitou a suposta crise de paradigma da teoria da secularização, sublinhando o declínio da religião e dos poderes eclesiásticos sobre a sociedade, as instituições, a alta produção cultural, a universidade, a filosofia, a ciência, os esportes, o lazer, a sexualidade, a família. Defendeu que a expansão dos novos movimentos religiosos e o processo de secularização não são necessariamente incompatíveis. Tal como Bryan Wilson, frisou que a teoria da secularização explicaria, em certa medida, “a emergência de expressões religiosas não-tradicionais” (os chamados Novos Movimentos Religiosos) e que o próprio pluralismo religioso seria um “fator de secularização crescente”. Teria tal efeito por desenraizar os indivíduos da tradição e dessacralizar a cultura, possibilitando o trânsito religioso e a apostasia como condutas socialmente aceitáveis.
Em 1998, publicou o artigo “Secularização segundo Max Weber: da contemporânea serventia de voltarmos a acessar um velho sentido”, no qual tratou de circunscrever o conceito de secularização como normatividade jurídico-política, tomando por referência o sentido teórico predominante do conceito na obra de Weber, principalmente em sua sociologia do direito. Destaca, estrategicamente, processos históricos de secularização, como a racionalização jurídica e da administração da justiça, a dessacralização da lei, a autonomização do direito dos poderes hierocráticos, a legitimação secular da dominação política, a formação do Estado como domínio da lei. A fim de superar os agudos desentendimentos teóricos sobre o tema, propôs partir da factibilidade histórica do processo de secularização jurídico-política do Estado para analisar objetivamente o “lugar ocupado pelas autoridades religiosas nas sociedades” atuais e compor base sólida para formar um consenso conceitual e teórico mínimo em torno do conceito de secularização.
Sua investigação conceitual da sociologia weberiana resultou na publicação, em 2003, de O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber, pela Editora 34, seu único livro dedicado à obra do sociólogo alemão, elaborado antes como tese de livre-docência, na qual pesquisou, contextualizou e analisou as 17 citações efetuadas por Weber do conceito de desencantamento do mundo (desmagificação). Na tese, realçou a conexão do conceito com a noção de racionalização e com o projeto weberiano de compreender a singularidade do racionalismo ocidental. E delimitou os dois sentidos do conceito: 1) desencantamento do mundo desencadeado pela racionalização religiosa e pelo abandono da magia como meio de salvação no judaísmo antigo e sobretudo no protestantismo ascético; 2) desencantamento do mundo deflagrado pela ciência, que transforma o mundo natural em mero mecanismo causal e lhe retira qualquer sentido intrínseco.
Sua batalha em defesa da teoria da secularização se fez acompanhar de um engajamento apaixonado em prol da “secularização que importa em primeiro lugar”, como atesta o artigo “De olho na modernidade religiosa” (Tempo Social, n.20, v.2). Enquanto sociólogo e cidadão-sujeito-de-direito, defendeu a importância da laicidade do Estado, da preservação e ampliação das liberdades civis e políticas num “Estado democrático de direito”. Defesas que nunca se fizeram tão relevantes em nossa recente experiência democrática.
Por tudo que fez e pela pessoa calorosa, cativante e generosa que foi, Flávio deixa muitas saudades e uma obra preciosa e inspiradora.
Sugestões de obras do autor:
PIERUCCI, Antônio Flávio. (1987), As bases da nova direita. Novos Estudos, Cebrap, São Paulo, 19: 26-45.
PIERUCCI, Antônio Flávio. (1997), Reencantamento e dessecularização: a propósito do autoengano em sociologia da religião. Novos Estudos, Cebrap, 49: 99-119.
PIERUCCI, Antônio Flávio. (1998), Secularização em Max Weber: da contemporânea serventia de voltarmos a acessar aquele velho sentido. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 13 (37): 43-73.
PIERUCCI, Antônio Flávio. (1999), Ciladas da diferença. 1ª edição. São Paulo, Editora 34.
PIERUCCI, Antônio Flávio. (2003), O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber. São Paulo, Editora 34.
Sobre o autor:
BONATO, Massimo et. al. (2016), Secularização em Antônio Flávio Pierucci: da contemporânea serventia de continuarmos acessando aquele velho sentido. Século XXI: Revista de Ciências Sociais, Santa Maria, v. 6, ed.1, pp.11-43.
CITELI, Maria Teresa; ROSADO, Maria José (2013). Conversa com Antônio Flávio Pierucci. Rever, ano 13, n. 2.
MARIANO, Ricardo (2013). Antônio Flávio Pierucci: sociólogo materialista da religião. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, n° 81, pp. 7-16.