Por Rodrigo Lessa (IFBAIANO) e
Filipe Baqueiro (UFBA)
Nascido em 1952 e natural do bairro da Liberdade, em Salvador (BA), Antônio Câmara iniciou a graduação em Ciências Sociais em 1972 estimulado pelas ações que ocupavam as ruas da cidade contra a Ditadura Militar entre 1964 e 1968. O cerco da militarização aos espaços acadêmicos foi parcialmente contornado no movimento estudantil e em grupos de estudos clandestinos sobre Kant, Hegel e Marx, quando também começou a ter mais contato com o mundo artístico através das salas de cinema e do Teatro Vila Velha – algo até então distante do cotidiano dos secundaristas do Retiro, bairro popular onde viveu a maior parte da juventude.
O mestrado o leva a um período na UNB, ambiente paradoxalmente mais vigiado que o de Salvador, no entanto com menos autocensura (todos os livros e artigos não disponíveis em Salvador já circulavam livremente na capital federal, ao tempo em que o movimento estudantil apresentava extraordinária diversidade). Atuante pelo campo trotskista na política estudantil, avançou naquele momento para um melhor domínio de práticas de pesquisa, defendendo em setembro de 1978 a dissertação “Hegemonia e crise social no Brasil: a ideologia dominante em face às Ligas Camponesas (1950-1964)”, obra na qual o interesse pelos antagonismos entre emancipação e ideologia começa a mostrar resultados mais robustos. No retorno a Salvador, liga-se em definitivo com sua companheira de vida, interlocutora e parceira no trabalho, Rute Lima, e atua temporariamente no Centro de Recursos Humanos (CRH), coordenando uma pesquisa com o professor Solon Santana Fontes.
A docência universitária começa na UFBA, primeiro como professor colaborador e depois como professor auxiliar após concurso para a vaga de Sociologia, em 1980. Passa a lecionar ainda na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), onde permaneceu por dez anos. Seu vínculo com a universidade também está atrelado diretamente ao seu envolvimento no movimento docente, com dois mandatos na direção sindical da APUB (Associação dos Professores Universitários da Bahia) e participação na fundação do ANDES-SN.
Lecionou uma diversidade de componentes curriculares sobre teoria social, prática de pesquisa e epistemologia até a conclusão do Doutorado em Paris 7, no ano de 1994, com a defesa da tese “La question de la réforme agraire au Brésil : idéologie et réalité (1950-1980)”, orientada pelo Prof. Dr. Pierre Fougeyrollas. Publicaria nesse período também O pós-modernismo e o liberalismo tardio: novo projeto de uma velha ideologia (1996), texto que enfrenta a condescendência ideológica dos discursos filosóficos que sugerem a era da dissolução do sujeito, além do estudo A atualidade de Lukács na revista Interfaces da História, em 1998.
De volta ao Brasil, já como doutor, credencia-se junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da UFBA, mantendo a dedicação aos tópicos sobre teoria e epistemologia das ciências sociais e ampliando esse escopo. Destacam-se aqui os cursos optativos sobre temas como razão, cultura e modernidade, Teoria Crítica, Escola de Frankfurt e movimentos sociais. A preocupação com a cultura e a arte, também a partir da filiação temporária à Pós-Graduação em Artes Plásticas na Escola de Belas Artes da UFBA, aprofunda-se através de disciplinas como Cinema, Cultura e Sociedade, ou ainda Arte, Cinema e Sociedade.
A luta social dos movimentos sociais rurais e os obstáculos ideológicos às conquistas das suas pautas ocupam boa parte da atividade de pesquisa de Antônio Câmara. Do mestrado aos estudos sobre o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) no pós-doutorado (entre 2000 e 2001) a radicalidade do campesinato é analisada sob a ótica de projetos emancipatórios audaciosos que mantêm viva a utopia socialista diante da hipertrofia que as ditaduras burocráticas impunham aos partidos políticos, sindicatos e organizações proletárias ligadas ao Estado. O texto PCB, Marighella e a questão agrária, publicado em Carlos Marighella o homem por trás do mito (1999), organizado pelo colega e professor Jorge Nóvoa, expressa bem essa inquietação permanente.
O aparecimento do interesse acadêmico pelo campo da arte, nesse período, revela a busca por novas maneiras de abordar o antagonismo entre a práxis destes movimentos e as formas ideológicas que se lhes contrapõem, dessa vez como contradições unificadas na representação artística. O que implicaria na revisão crítica do realismo socialista ortodoxo de Lukács rumo a uma estética dialética mais próxima de Adorno, Benjamin, Bloch e do enfrentamento da autonomia da obra de arte em seu caráter socialmente condicionado.
Essa inflexão é contemporânea à formação dos coletivos de trabalho aos quais Câmara é vinculado atualmente. Fundado em 1999, o Núcleo de Estudos Ambientais e Rurais (NUCLEAR) é resultado da convergência de diversos profissionais que trabalhavam com sociologia e antropologia rural, como Sérgio Elísio, João Saturnino, Guiomar Germani, Solon Fontes, Francisco Brito, Altino Bonfim e Sylvia Maia. Após encontrar problemas financeiros para a realização do projeto inicial de uma grande pesquisa sobre o meio rural baiano, o Núcleo cresceu e se consolidou sob a coordenação de Câmara, Lídia Cardel e Maria Salete Amorim. Em uma das ações mais relevantes do núcleo, o projeto interdisciplinar Interações bioculturais e desenvolvimento rural sustentável em região de Mata Atlântica: saberes e práticas naturais, mobilidades e dinâmicas territoriais foi desenvolvido no sistema de convênio internacional CAPES/COFECUB entre 2008 e 2015, numa parceria Brasil-França com profissionais de diversas áreas da UFBA e da Universidade de Estrasburgo, sob coordenação Lídia Cardel e Antônio Câmara, no Brasil, e Colette Méchin, na França. Trabalho que resultou na publicação em português e francês da obra Estudos socioambientais e saberes tradicionais do Litoral Norte da Bahia: diálogos interdisciplinares, organizada por Lídia, Câmara, Colette Mechin e Agnés Clerc-Renaud.
O ineditismo local das disciplinas e orientações em sociologia da arte e projetos na área do cinema e da vida rural também começam a se tornar cada vez mais recorrentes após o retorno de Toulouse, onde realizou pós-doutoramento. O fluxo crescente de orientações e voluntários de graduação e pós-graduação daria origem ao grupo de pesquisa Representações Sociais: arte, ciência e ideologia, hoje posteriormente nominado também como Núcleo de Estudos em Sociologia da Arte (Nucleart). Como parte desse projeto de conduzir a vida acadêmica de modo orgânico, em meio a coletivos de pesquisadores e estudantes que se apoiam mutuamente, as publicações passam a ser desenvolvidas em parceria com orientandos e têm como lastro o amplo leque de orientações e atividades de ensino, pesquisa e extensão que orbitam o grupo de pesquisa. Cinema Brasileiro em Perspectiva (2013), organizado em parceria com Rodrigo Oliveira Lessa, e Ensaios de Sociologia da Arte (2018), que incorpora ainda a mentoria de Bruno Evangelista da Silva, são títulos emblemáticos do amadurecimento dessas proposições, reunindo textos que sintetizam a maneira como esse coletivo percebe e valoriza o estudo da arte como um fenômeno social e cultural único. Mais recentemente, resultado do reconhecimento público e de anos de produção, o dossiê A Arte na Sociologia (2020) no Cadernos do CRH, organizado em conjunto com a Profa. Glaucia Villas Bôas (UFRJ) e o então doutorando e membro do Nucleart, Bruno Villas Bôas Bispo, demonstra não apenas a profundidade deste projeto, mas também a busca por novas redes de interlocução sobre o universo da relação entre a Estética e a vida social. Fruto de uma prática coletiva de pesquisa que passou a envolver ainda a organização de eventos, como o I e o II Encontro Arte e Sociedade, em 2016 e 2018, e as mostras de cinema em formato de Cine Clube executadas por meio de projetos de extensão – tanto no Circuito Sala de Arte da UFBA como mais recentemente em colégios públicos de Salvador.
Antônio Câmara possui uma singular trajetória acadêmica, na qual as investigações científicas acerca dos seus objetos de pesquisa articulam reflexões dos postulados filosóficos das Ciências Sociais juntamente com um apurado debate acerca da teoria social. Essa particular característica rendeu-lhe, dentre outros méritos, dezenas de orientandos (as) ao longo da sua carreira docente, em que uma tratativa humanizada permeada por relações de afeto constrói pontes para além do processo de orientação. E nesse percurso intelectual, com projetos a concluir e novos projetos à vista, Câmara segue sendo essa importante referência intelectual e humana para todos (as) àqueles (as) que cruzam o seu caminho.
Sugestão de obras do autor:
CAMARA, A. S.; SILVA, B. E.; LESSA, Rodrigo Oliveira. Ensaios de Sociologia da Arte. Salvador: EDUFBA, 2018.
CAMARA, A. S. Marx e Hegel – A contribuição da dialética para o estudo da arte. In: Incontornável Marx. 1 ed. Salvador/São Paulo: EDUFBA/Editora UNESP, 2007, v.1, p. 369-387.
CAMARA, A. S. A atualidade da reforma agrária: de Canudos aos sem-terra: a utopia pela terra. O Olho da História. , v.2, p.29 – 45, 1996.
CAMARA, A. S. O pós-modernismo e o liberalismo tardio: novo projeto de uma velha ideologia. TEXTOS APUB. , v.03, p.01 – 29, 1996.
CARDEL, L. M. P. S.; CAMARA, A. S.; MECHIN, Collete; CLERC-RENAUD, A. Estudos socioambientais e saberes tradicionais do Litoral Norte da Bahia: diálogos interdisciplinares. Salvador: EDUFBA, 2016.
CAMARA, A. S.; LESSA, Rodrigo Oliveira (Org.) . Cinema Documentário Brasileiro em Perspectiva. 1. ed. Salvador: EDUFBA, 2013.