Por Elsa Sousa Kraychete (UFBa)
Entre os anos 1960 e 1970, a sociedade brasileira passou por grandes transformações que exigiram esforços capazes de revelar com mais acuidade a realidade local e de busca de suportes teóricos capazes de apontar caminhos para a superação do subdesenvolvimento historicamente produzido. Nesse momento, foi mobilizado um conjunto de forças acadêmicas e técnicas voltadas para construir interpretações que dessem suporte a ações visando a transformação socioeconômica brasileira. Momento de efervescência política e intelectual ecoava na academia de forma a combinar o aprendizado teórico com a pesquisa empírica.
É nesse contexto que Ângela Maria Carvalho Borges iniciou seu percurso acadêmico. Com toda formação em escola pública, realizou o curso médio no Instituto Isaias Alves, escola voltada para formar professores no estado da Bahia. Em 1968, ingressou no curso de Ciências Sociais na Universidade Federal da Bahia. A escolha por este curso deveu-se às indagações sobre questões que estavam postas para a sociedade brasileira: a pobreza, a fome e a denominada questão Nordeste, enfeixadas nas controvérsias sobre o desenvolvimento. Na graduação, como bolsista de iniciação científica, teve o primeiro contato com a pesquisa, na realização de projeto coordenado por Maria Brandão, que refletia sobre o processo de urbanização em Salvador e sua Região Metropolitana. Perguntava sobre como esta marcha levou à alta concentração de terras no meio urbano e sobre o papel desempenhado pelo Estado como indutor de projetos de desenvolvimento que favoreciam a posse da terra na mão de poucos. Ainda na graduação, participou do projeto realizado no Programa de Recurso Humanos (PRH), com consultoria do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), que investigou sobre a natureza do desenvolvimento do capitalismo em uma região periférica, sob as óticas sociológica, política, demográfica e econômica. Com a coordenação geral de Guaraci Adeodato e Vilmar Farias, participação de pesquisadores do centro paulista como Francisco de Oliveira e Paul Singer, os resultados desta pesquisa vieram a público no livro Bahia de Todos os Pobres, organizado por Guaraci Adeodato e Vilmar Farias, até hoje uma referência bibliográfica da Sociologia e dos estudos sobre o estado da Bahia. Entre os anos 1960 e 1970, a UFBa incorporou uma nova geração de cientistas sociais que ampliou a perspectiva acadêmica para além do ensino, incorporando a pesquisa empírica como parte do proceder universitário. São parte desta geração a própria Guaraci Adeodato, Inaiá Carvalho e Anete Ivo, com quem Ângela interagiu ao longo de sua trajetória acadêmica. Nesse ambiente, vivenciou as suas primeiras experiências multidisciplinares nas fronteiras entre a sociologia, a economia e a demografia, que marcaram todo o seu percurso. É desse tempo, a sua escolha por estudar questões urbanas como habitação e mercado de trabalho, temas centrais do seu itinerário.
Em 1971 concluiu a graduação e, em 1972, ingressou no serviço público, na então denominada Comissão de Planejamento Econômico (CPE), e, desde 1995, Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI), organização na qual permaneceu até 1999, ano da sua aposentadoria. A CPE, criada em 1955, dirigida inicialmente pelo economista Rômulo Almeida, foi idealizada no âmbito do Estado planejador, embora ao longo do tempo tenha passado por diversas denominações, manteve a missão de órgão responsável pela realização de estudos que subsidiaram o planejamento estatal na Bahia. Como órgão voltado para a realização de pesquisas e estudos sobre a realidade baiana e suas interações nacionais, sob diversos aspectos, congregava profissionais de formações diversas como sociólogos, economistas, demógrafos, estatísticos, historiadores, o que permitiu aprofundar o diálogo entre os saberes, enraizando a sua vocação multidisciplinar. Ambiente propício para ir além do dado colhido nas pesquisas, mas realizar leituras múltiplas, transformando o dado em informação que melhor qualificava o entendimento da realidade socioeconômica baiana.
Na CPE, Ângela participou de diversas atividades de pesquisas que visavam subsidiar o planejamento governamental em momentos importantes da transformação econômica e social da Bahia, a exemplo da instalação do II Polo Petroquímico brasileiro e a modernização agrícola com a introdução do agronegócio na região oeste do estado e as dinâmicas sociais resultantes, entre os anos 1970 e 1980. Integrou, nesta organização, o grupo que propôs e concebeu a criação da revista Bahia Análise & Dados, inicialmente pensada como meio de tornar pública as análises dos dados de pesquisas, realizadas por técnicos do próprio órgão, mas que logo se abriu para acolher contribuições de analistas e pesquisadores pela submissão pública de artigos. Exerceu, em diversas oportunidades, a função de gerente de estudos e pesquisas sociais. Representativos dessa época são os artigos que analisam o atraso do processo de urbanização da Bahia; desigualdades, trabalho e rendas; e economia informal na Região Metropolitana de Salvador.
Em virtude da qualidade dos indicadores e análises produzidas no órgão, participou do debate público, interagindo com profissionais de outras áreas técnicas e acadêmica sobre a realidade socioeconômica da Bahia e do Brasil, especialmente sobre o mercado de trabalho. Simultaneamente, no Centro de Recursos Humanos (UFBA), integrou a equipe que realizou a pesquisa Terceirização: relações de trabalho e saúde, coordenada pela socióloga Graça Druck, e de dois outros projetos com a mesma equipe e coordenados por Tânia Franco:Trabalho Industrial, saúde e meio ambiente e Saúde; Flexibilidade do trabalho, precarização: o caso das doenças profissionais – abordagem franco-brasileira. Pesquisas pioneiras sobre terceirização das atividades produtivas e da força de trabalho redefinem a sua trajetória acadêmica, que passa a ter como núcleo central o mercado de trabalho em grandes metrópoles.
A contínua atividade no trabalho técnico, voltado para subsidiar o planejamento não afastou Ângela da academia, em trânsito em mão dupla, aportava informações estatísticas, indicadores e análises que retratavam realidades socioeconômicas em magnitude não facilmente disponível na Universidade, como encontrava no ambiente universitário a possibilidade de reflexão, a partir de aportes teóricos para além do trabalho técnico. A sua experiência profissional punha em questão a desconexão entre o uso da estatística e a reflexão teórica, inclusive manejando com ferramentas próprias da informática, ainda pouco utilizadas em pesquisas acadêmicas.
Em 1982, conclui o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) na Universidade Federal da Bahia, com orientação da professora Nadya Araújo Guimarães, com a dissertação Expansão capitalista e habitação popular em Salvador, onde apresentou e interpretou a dinâmica da urbanização da capital baiana e o surgimento dos loteamentos populares, com a realização de trabalho de campo em quatro loteamentos. Em 1987, ingressou na Universidade Católica do Salvador (UCSal), na Escola de Serviço Social, lecionando disciplinas na área da sociologia.
Em 1999, reingressa no PPGCS para cursar o doutorado, propondo realizar pesquisa sobre a desestruturação do mercado de trabalho na Região Metropolitana de Salvador e das suas consequências sobre os níveis de vulnerabilidade social a que estavam expostos os trabalhadores desta região, na década de 1990, em contexto marcado pela reestruturação produtiva, pela globalização e pelo ajuste da economia brasileira a esses processos. As conclusões da pesquisa estão na tese Desestruturação do Mercado de Trabalho e Vulnerabilidade Social: a Região Metropolitana de Salvador na década de 90, defendida em 2003, com orientação de Maria da Graça Druck.
Aposentada do serviço público em 1999, dedicou-se integralmente à academia, como professora e como pesquisadora no grupo de pesquisa liderado por Graça Druck, no Centro de Recursos Humanos (pesquisador associado 1999-2006). Em 2005, integrou, na Escola de Serviço Social da UCSal, a equipe que propôs a criação do mestrado Políticas Sociais e Cidadania, ampliado, em 2016, com o doutorado. Foi coordenadora do Programa de 2006 até 2017, quando ambos os cursos já estavam consolidados. Com perfil multidisciplinar, Ângela integra a linha de pesquisa Estado, desenvolvimento e desigualdades sociais, em íntima sintonia com a sua trajetória intelectual, ministrando disciplinas como Trabalho e Questão Social; Manifestações da Questão Social; Mudanças tecnológicas e trabalho no século XXI; O trabalho nas políticas sociais. Entre 2010 e 2014, neste Programa, participou do projeto Metrópoles na atualidade brasileira: a Região Metropolitana de Salvador, coordenado por Sylvio Bandeira de Mello e Inaiá Carvalho. Na UCSal, criou o grupo de pesquisa Núcleo de Estudos do Trabalho (NET), que acolheu grande número de estudantes em iniciação científica, mestrandos e doutorandos. A partir de resultados de pesquisas neste Núcleo, três dezenas de dissertações e teses foram concluídas.
Autora de grande número de artigos e capítulos de livros, dentre os seus mais recentes trabalhos destaca-se a participação no Dicionário Desenvolvimento e Questão Social (Annablume, 2013, com segunda edição em 2020), no qual é autora do verbete Mercado de Trabalho. Originário de projeto coordenado por Anete Ivo, (coma colaboração de Ângela Borges, Elsa S. Kraychete, Denise Vitale, Cristiana Mercuri e Stella Sennes) é obra de referência que reúne 114 pesquisadores de 40 universidades brasileiras e estrangeiras, com verbetes explorando os entrelaçamentos entre desenvolvimento econômico e suas dimensões sociais, políticas e culturais como se apresentam contemporaneamente. A obra foi contemplada entre as finalistas do 56° Prêmio Jabuti (2014).
Procurou manter participação em entidades que congregam pesquisadores das ciências sociais brasileiras, tendo sido presidente da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET) e do Encontro Nacional da ABET, realizado em Salvador em 2019. Também integra a Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP), coordenando o GT População e Trabalho no período 2013-2015, participando também de congressos e encontros da SBS, ANPOCS, ALAS, ALAST, CLACSO, sendo uma das editoras dos Cadernos do CEAS, periódico editado conjuntamente pelo Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), Universidade Católica do Salvador e Universidade Católica de Pernambuco.
Ângela é baiana, nascida na cidade de Itaberaba, Chapada Diamantina em 1950, e migrou com a família para Salvador no decorrer dos anos 1960. Casada, tem dois filhos e dois netos.
Sugestões de obras da autora:
BORGES, ÂNGELA; CARVALHO, INAIÁ. Revisitando os Efeitos de Lugar: segregação e acesso ao mercado de trabalho em uma metrópole brasileira. Caderno CRH, v. 30, p. 121-135, 2017.
BORGES, ÂNGELA. Jovens em mercados de trabalho em mudança: Indicações a partir da trajetória de dois grupos geracionais. Última década, v. 24, p. 195-225, 2016.
BORGES, A.. Deficits juvenis ou deficits de lugares? O desemprego e a ocupação dos jovens nos mercados de trabalho do Nordeste e do Sudeste. Revista da ABET, v. VII, p. 167-188, 2008.
BORGES, A.. Mercado de trabalho: mais de uma década de precarização. In: Druck, G; Franco, T. (org.). A perda da razão social do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 81-93.
BORGES, A. Impactos do desemprego e da precarização sobre famílias metropolitanas. Revista Brasileira de Estudos de População – ABEP, v. 23, p. 205-222, 2006.
BORGES, A.; DRUCK, G.. Crise global, terceirização e a exclusão no mundo do trabalho. Caderno CRH, Salvador, v. 19, p. 22-45, 1993.
BORGES, A. Sobre o atraso do processo de urbanização na Bahia. Bahia Análise & Dados, Salvador, v. 3, n.2, 1993.