Por Valmir Lopes ( UFC)
Um intelectual público
Nos primeiros anos da década de 1960, um jovem padre se preparava para uma decisão que mudaria definitivamente sua vida. O superior da ordem dos jesuítas apresentou para ele três países como destino missionário: China, Haiti e Brasil. Descartou de imediato a China, pela barreira da língua e pelo mesmo critério o Haiti por se tratar de um país francofônico. Do Brasil, sabia tão pouco; quase nada. Lembrava de um filme franco brasileiro italiano com uma bela trilha sonora chamado Orfeu Negro. Em poucas palavras podemos descrever o jovem canadense, membro da ordem dos jesuítas, que se tornaria o intelectual público, filósofo e sociólogo, professor por mais de cinco décadas do curso de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará.
André Haguette nasceu em 20 de fevereiro de 1942 em Montreal, capital da província francesa canadense do Quebec. Formou-se em Filosofia pela Université de Montreal (1964) e fez seu mestrado em Filosofia pela mesma universidade com a dissertação Ômega em Pierre Teilhard de Chardin, em 1966.
Ainda que tenha refletido bem sobre sua decisão, não estava completamente preparado para a realidade brasileira. O preparatório informativo veio do seminário de acolhimento realizado em Petrópolis onde aprendeu por cinco meses aspectos da formação histórica, socioeconômica e política do Brasil e o domínio da língua portuguesa. Tudo isso não foi suficiente para o contato real com o povo, a pobreza e a miséria ainda mais gritantes no Brasil da década de 1960. Em Recife, natal de 1966, convidado por um colega para a celebração de uma missa numa usina de cana de açúcar teve sua primeira visão da realidade nacional. Os rostos, o vestuário da gente pobre na celebração não saíra de sua mente por longos anos. Naquela noite, vagando pela propriedade, ouve a canção les marionnettes, muito popular na época. A canção francesa o fez refletir sobre as razões de estar naquele lugar, sentindo-se meio perdido no mundo.
Seu desembarque definitivo em Fortaleza ocorreu em fevereiro de 1967 para ser professor do colégio Santo Inácio. Contudo, como era sabido seu domínio do pensamento de Teilhard de Chardin, foi convidado para ministrar um curso na Faculdade de Filosofia de Fortaleza. Relutante por considerar pouco seu domínio da língua, finalmente ministrou o curso com muito sucesso. Desse encontro, promovido pelo pensamento do místico jesuíta, seria convidado pela direção da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia para integrar os quadros do recém-criado Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Ceará, onde fora criado em 1967 o curso de Ciências Sociais. Naquele momento, fruto do seu engajamento na luta contra a ditadura militar brasileira, sentiu modificada sua concepção teológica e não mais se sentia membro da Igreja. Sua contratação como professor pela Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais foi realizada dentro de um projeto mais amplo de promover a transição entre a filosofia e as ciências sociais. Refletindo, anos mais tarde, sobre essa época e a decisão tomada, afirma que chegou a perder a fé e não via mais sentido em permanecer na ordem religiosa.
Se a vida humana é vivida em ciclos, podemos dizer que um deles havia sido encerrado na vida de André Haguette. Segundo ciclo: Professor de Filosofia na primeira turma formada pelo recém-criado curso de Ciências Sociais da UFC.
O ano de 1974 foi emblemático na sua vida. Sofrendo perseguições políticas por parte da direção da universidade, André e a a esposa, a socióloga Tereza Haguette, decidiram sair do país com bolsa do governo norte-americano. Instalou-se, em Syracuse, na Syracuse University onde concluiu em 1975 seu mestrado em Sociologia e em seguida, 1977, o doutorado em Sociologia com a tese A filosofia, as políticas e a mensuração das ideias de desenvolvimento.
O doutorado realizado nos EUA permitiu finalmente sua conversão ao campo da sociologia. A concepção da ciência social como necessária à transformação da sociedade. É preciso ter no horizonte o projeto permanente de transformar a sociedade de maneira que as pessoas possam finalmente encontrar “um lugar para viver bem”. Essa aspiração e ideal nunca lhe saiu do espírito. Lamenta o abandono pelos atuais estudos sociológicos de duas ideias que crê ser importantes e que não deveriam jamais sair da mente dos sociólogos: planejamento e desenvolvimento. Sempre teve forte impulso de engajamentos em ações realizadas pela sociedade civil. Nunca teve vinculação partidária porque acredita que o intelectual deve sempre, acima de tudo, guardar sua liberdade de reflexão crítica.
A paixão pela obra viva que encarna ao mesmo tempo uma maneira de sentir e fazer algo para transformar a realidade nunca o abandonou. A teoria nunca lhe foi estranha, pelo contrário sempre se dedicou com afinco à compreensão de dois grandes teóricos da sociologia: Max Weber e Karl Marx, mas em momento algum, a teoria teve valor teórico nem muito menos mero adereço de exposição de vaidade. A teoria que do seu interesse foi sempre aquela com alcance transformador.
Os anos de 1979/1984 foram marcados no Nordeste pela ocorrência de uma grande seca atingindo todo o semiárido. Na época ainda dominada pelos governos militares, a Rede Globo de televisão idealiza o projeto Nordestinos: O Brasil em busca de soluções. Realizado em parceria com onze universidades federais da região, percorreu 7.700km, contatou 6.320 pessoas em seis cidades: Oeiras, PI; Quixeramobim, CE; Lages, RN; Itaporanga, PB; Afogados da Ingazeira, PE e Jeremoabo na Bahia. André Haguette foi o membro indicado pela UFC para participar do projeto. O saldo existencial do mergulho no sertão permanecerá ao longo dos anos, reforçando seu entendimento sobre a necessidade de uma sociologia com dimensões intervencionistas, que possa ser usada para a transformação da realidade.
Ainda na década de 1980, participou do Movimento Pró-Mudança, parte importante da mobilização da sociedade civil que culminará com a eleição de Tasso Jereissati no Ceará, iniciando uma ampla transformação do gerenciamento do governo estadual.
A educação tornou-se um tema dominante a partir de um determinado instante da sua trajetória. Isso ocorrerá, como quase tudo que lhe ocorreu, com o convite para uma ação institucional. As escolhas são apenas parte daquilo que fazemos, o mais importante é o resultado delas. Uma trama complexa estabelecida entre o instante da escolha e sua realização. A reflexão constante ajuda a monitorar o desejo e os impulsos vindos do meio.
Atuou de maneira institucional como Coordenador de Projetos da Secretaria de Educação do Ceará, na gestão Paulo Elpídio de Meneses Neto. Essa experiência, mesmo de pouco mais de um ano, modificou definitivamente seu entendimento da urgência do tema da educação. Como gestor empregava a maior parte do tempo em visita às escolas, o que lhe permitiu o conhecimento mais profundo dessa realidade.
Conjugando, ao longo de anos, as atividades acadêmicas de professor, pesquisador e sempre engajado em atividades públicas, André Haguette tornou-se membro como conselheiro de diversas instituições nacionais e internacionais.
Como consultor atuou na Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal, FAPDF; Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras, CRUB; no Ministério da Educação, MEC, como membro do Comitê Técnico-educacional; no Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Banco Mundial), BIRD; no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, INEP/MEC; no Fundo das Nações Unidas para a Infância, UNICEF; no Ministério das Relações Exteriores; no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq e foi membro da Diretoria da ANPOCS (1980/1982) – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais.
Desde 1995, Haguette mantém uma coluna no jornal O Povo onde exerce sua função de intelectual público, analisando de modo crítico os principais problemas nacionais e locais de maneira a contribuir com reflexões críticas e soluções para os graves problemas sociais. Enfatiza sempre seu entendimento de sociologia como uma forma de intervenção na sociedade de modo que possa alcançar um estado de bem-estar social para todos. Sua pregação quase missionária em favor de uma sociedade que reduza a desigualdade social e promova a escola para todos, chega ao limite de propor a eliminação de todo o ensino privado de modo que todos os membros da sociedade possam ser educados numa única escola republicana. Num ambiente desse tipo, os talentos poderiam ser revelados em competição entre si, mas contando com instrumentos para que se possa verificar o grau de acerto. Social-democrata convicto, acredita que o principal problema da sociedade continua sendo a ordem capitalista que precisa encontrar um ajuste entre a poderosa máquina de gerar inovação e riqueza e suas consequências. as desigualdades na distribuição de renda e de riqueza. Se olharmos para o ponto inicial de sua trajetória no Brasil, aquele jovem idealista missionário jesuíta, continua com o mesmo coração e movido com a mesma paixão pela mudança social. Alcançar uma “boa vida” para a maioria do povo brasileiro permanece como um objetivo, mesmo que inalcançável, persiste como uma miragem que dá força para sua indignação intelectual.
De maneira discreta, André Haguette criou e mantém há mais de vinte dois anos a Fundação Tapuia. Situada na cidade de Aquiraz, a instituição sem fins lucrativos é voltada para atividades de reforço escolar, esportes, cultura e arte na comunidade do Tapuio. Essa ação expressa de modo vivo seu entendimento de uma sociologia intervencionista, longe do partidarismo. A instituição foi criada como parte de sua preocupação com a educação nos últimos anos.
No belo Introdução ao método de Leonardo da Vinci, Paul Valéry escreve: “O legado que um homem deixa cifra-se no nome e nas obras que transformaram esse nome num sinal de admiração, de ódio ou de indiferença”. A admiração, no caso do André Haguette, cai bem como sinal de legado. Chegando ao Brasil com vontade tão intensa de agir e transformar a realidade, vai aos poucos também sendo transformado pela realidade que deseja transformar. Como dialético que continua a ser, diz que a práxis sempre foi sua categoria da experiência reflexiva central. Joaquim Nabuco, o primeiro sociólogo sistemático do Brasil, distingue no O Abolicionismo sociedades baseadas na escravidão de sociedades constituídas pela escravidão. A segunda – exemplo da brasileira – constituirá a escravidão um espírito dominante sobre todas outras instituições. Atrofiadora da sociabilidade, constituída uma obra na sociedade brasileira, dependeria de várias gerações o trabalho de desfazê-la. O engajamento público em defesa da educação, da transformação social e o desejo de um país solidário marcam a atividade do André Haguette. Nesse sentido, ele prova cotidianamente a necessidade de contribuir para a eliminação daquela realidade criada e tematizada por Nabuco.
Sugestões de obras do autor:
HAGUETTE, A.; DUSSAULT, G.; GENDRON, L.. Panteismo, Acción, Omega según Teilhard de Chardin. Madri: Marfil, 1969.
HAGUETTE, A. A Luta Pelo Ensino Básico – Uma Proposta Pedagógico-Administrativa. Fortaleza: UFC, 1990.
HAGUETTE, A.; VIDAL, E. M. Os Caminhos da Municipalização No Ceará: Uma Avaliação. 1. ed. Fortaleza: UFC, 1998.
HAGUETTE, A.; AMORA, Kleber. C. Filosofia? É só Filosofar. Fortaleza: Geo Estúdio, 1996.
HAGUETTE, A. A Sociologia e Você. Fortaleza: Book Editora, 2004.
HAGUETTE, A.; PESSOA, M. K. M. Dez Escolas, Dois Padrões de Qualidade. Uma pesquisa em dez escolas públicas de Ensino Médio do Estado do Ceará. 1. ed. Fortaleza: UFC, 2015.
HAGUETTE, A.. Racionalismo e Empirismo na Sociologia. Revista de Ciências Sociais (UFC), v. 44, p. 194-218, 2013.