Por Eliska Altmann (UFRJ)
“Fotografias de um assentamento da reforma agrária na indecisa transição urbano-rural da Baixada Fluminense (1987). Fotos de acampamentos de trabalhadores sem terra no centro do Rio de Janeiro (1987). Fotos de comemorações do centenário da Abolição (1998). Fotos de moradias sob viadutos em ‘instalações’ de rua e em carroças (1989-1992). Reproduções de fotos de professores e alunos de Ciências Sociais da UFRJ entre as décadas de 1940 e 1980 (1991). Fotos de cortiços, favelas e loteamentos periféricos (1990-1993). Reproduções de fotos do Arquivo da Memória Operária (1992); de álbuns fotográficos impressos sobre províncias de Moçambique, nos anos 1920 (1992) e de iconografia do século XIX (1994). Essas fotografias fazem parte do acervo que vem se constituindo desde a criação, em 1987, do Núcleo Audiovisual de Documentação (NAVEDOC), do Laboratório de Pesquisa Social (LPS), do IFCS/UFRJ” (Galano, 1998: 173).
Ninguém melhor que Ana Maria para dar início à sua memória acadêmica. Neste trecho já é possível ter ideia da pluralidade temática abraçada pela pesquisadora, pode-se dizer, pioneira no campo da Sociologia da Cultura (stricto sensu), cujos interesses principais compreendiam estudos da imagem, mais particularmente, fotografia, retratos e paisagens, cinema e audiovisual, e literatura.
Nascida em 12 de março de 1943, Ana Maria Mochcovitch Linhart ingressou aos 19 anos no curso de Letras da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Entre 1970 e 1972 realizou graduação em sociologia na Universidade de Paris VIII, onde também finalizou a dissertação de mestrado “Alphabetisation, pedagogie et politique (conceptions de culture pour le peuple au Bresil 1961-1964)”, em dezembro de 1976. Sete anos depois, na Universidade de Paris X – Nanterre, defendeu a tese de doutorado intitulada “Ouvriers agricoles et paysans dans la reforme agraire au Portugal”, sob orientação Michel Gervais. Antes de ingressar como professora adjunta no Departamento de Ciências Sociais do IFCS/UFRJ, em 1986, ministrou disciplinas no Institut des Hautes Études de L’Amérique Latine (IHEAL), na Universidade de Paris VIII e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Entre 1996 e 1998 realizou pós-doutorado no Centre de Sociologie de l’Éducation et de la Culture da École des Hautes Études en Sciences Sociales.
Referência daquela área de conhecimento ainda em formação no Brasil, em 1986, além de “Sociologia rural”, Ana já assinalava como linha de pesquisa em seu currículo “Sociologia da cultura”. Em interlocução com a Antropologia visual, coordenou na ANPOCS, entre 1993 e 1996, o grupo temático “Usos da imagem”. Sua contribuição no referido campo também pode ser vista em sua atuação na pós-graduação, quando em 2001 ofereceu, no PPGSA/UFRJ, a disciplina optativa “Sociologia de imagens visuais: retratos e paisagens”, em que buscava dar ênfase a duas vertentes: a historicização da noção de paisagem e suas repercussões sobre estudos iconográficos; e a transformação de espaços físicos em representações visuais. Como renovação da bolsa de produtividade do CNPq, naquele mesmo ano, apresentou o projeto integrado “Processos de modernização agrícola, reconfigurações de paisagens e suas representações visuais”.
Se a fundação do NAVEDOC, sob sua coordenação, se deu no final da década de 1980, a sedimentação de sua trajetória, por meio de projetos de pesquisa, orientação e ensino, se fortalece na década seguinte. Em janeiro de 1990, Ana coordena e desenvolve, junto a alunos/as e orientandas/os, o projeto “Imagem e som na pesquisa social”, com a aspiração de criar um “inventário bibliográfico”. Em agosto do mesmo ano, o grupo dá início ao projeto “Fotografando a moradia popular no Rio de Janeiro”, com o objetivo de efetuar estudos sobre tipos de habitação na cidade, privilegiando a fotografia como temática de documentação.
Em paralelo a orientações de iniciação científica e mestrado, nos meados/fins dos anos noventa, Ana coordena dois outros projetos. “Interpretações da cultura e o tema da nacionalidade” – integrado com demais professoras/es – visava verificar “diferentes circuitos da produção cultural contemporânea, a partir de sua dimensão discursiva e simbólica bem como de suas condições sociológicas e institucionais”. (Seu subprojeto “Intelectuais de província” tinha como base a pesquisa anterior “Paca Tatu Cutia-Não”).
“Imagens do campo e representações do Brasil na produção cinematográfica nacional (1960-1990)” – desenvolvido entre 1996 e 1999 – voltava-se à “análise crítica do tratamento da produção cultural à luz da problemática da identidade nacional, […] à importância política da questão agrária e, em particular, do Nordeste rural, no início dos anos 60; e ao empenho dos diretores de cinema da época e sua participação política através de seus filmes”. Aqui, verifica-se, uma vez mais, a junção dos temas trabalhados ao longo de sua carreira: campesinato, espacialidades rurais, identidades nacionais, imagem e cinema.
Numa das inúmeras pastas do acervo físico da professora e de seu núcleo, no prédio do IFCS/UFRJ, há a de nome “Textos escritos em 1998”. Nela encontram-se documentos como a análise intitulada “A propósito do bandido da luz vermelha (6/8/98) – para a tese de Ana Lúcia”; “Comentários sobre o projeto de dissertação de mestrado ‘Dois livros, dois filmes, um cineasta’, de Ariana Timbó Mota – 16/9/98” e escritos “Sobre Vidas Secas – após projeção 24/07/98 em minha casa”. Em sua dedicação aos usos da imagem em base teórica, prática e didática, Ana Maria reuniu gerações de jovens – na universidade e em sua casa – revolucionando entendimentos e fazeres sobre a ciência.
Ana realizou filmes – “Oxalá Jesus Cristo” (1989), “E por aqui vou ficando…” (1994) e “Continuidades e rupturas. 50 anos do curso de ciências sociais da UFRJ” (1991), este último com a parceria de Glaucia Villas Bôas – e deixou artigos inéditos, tais como: “Cinema Novo e imagens do Nordeste rural: processo de criação e análise de filmes ou Representações do Nordeste rural no cinema brasileiro do início dos anos 60”; “Tensões e legados coloniais no cinema”; “Guerra e paz em português: do colonial ao pós-colonial no cinema”, entre outros.
Para documentos, publicações e imagens de Ana Maria Galano, visitar seu acervo virtual: https://www.grua.art.br/acervo-do-navedoc.
Sugestões de obras da autora
Galano, Ana Maria. Iniciação à pesquisa com imagens. In: Feldman-Bianco, Bela e Moreira Leite, Míriam (orgs.) Desafios da imagem. Fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais. Campinas, SP: Papirus, 1998; p. 173-193.
_____. Um filme da crise ou o cinema fora da televisão. In: Villas Bôas, Glaucia e Gonçalves, Marco Antonio (orgs.) O Brasil na virada do século: o debate dos cientistas sociais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995
_____. Particulares de “Campo Geral”, novela de Guimarães Rosa. Novos Estudos, n. 38, março de 1994; p. 206-224.
_____. O uso da imagem na pesquisa científica. Boletim da Associação Brasileira de Antropologia, n. 14, 1993
Sobre a autora
Villas Bôas, Glaucia; Guimarães, Roberta; Gaspar, Natália. Homenagem à memória da professora Ana Maria Galano. Enfoques, n. 1, v. 1, 2002.