Ana Luísa Fayet Sallas

Por Simone Meucci (UFPR)

Costumo dizer que Ana é uma mistura de Mary Poppins com Frida Kahlo. Parece que chega com o vento para cuidar das pessoas, posando cheia de alegria na vida da gente (frequentemente oferecendo um pote de geleia de mexerica, iguaria que ela mesma prepara). No apartamento de paredes coloridas, onde vive com seu companheiro Ângelo, recebe sempre as pessoas com um abraço longo, uma palavra afetuosa e, às vezes, um gole de mescal.

Além de seus três filhos e seu enteado – Amanda, Francisco, Lucas e Felipe – Ana inspira e orienta muitos jovens, especialmente da cena cult curitibana. É que ela vive numa Curitiba muito distante daquela do lavajatismo e do bolsonarismo, cidade outra que descobre em suas pesquisas de campo e nos ateliês de arte, cafés e bistrôs que frequenta desde 1991, quando foi nomeada professora de sociologia da UFPR.

Na verdade, chegou à cidade junto com uma revoada de docentes migrantes. No Departamento de Ciências Sociais, havia, na mesma época, muitos recém-chegados de Campinas, Rio de Janeiro e São Paulo (além de Brasília). Era um período em que Curitiba passava por extraordinário processo de expansão de sua periferia resultante do desenvolvimento da indústria metal-mecânica; e o Departamento, originariamente dedicado à sociologia rural e das organizações, passou a diversificar seus temas e abordagens criando, assim, as condições para que, uma década depois, surgisse o Programa de Pós-Graduação em Sociologia.

Ana trouxe em sua bagagem, além de numerosas experiências de pesquisa, uma preocupação com fenômenos culturais, possivelmente em razão da sua formação ser, de início, mais dedicada à antropologia. Tem uma produção insubmissa a um recorte temático mais restrito, mas é possível afirmar que desenvolveu uma agenda voltada à análise dos imaginários sociais, orientação que foi decisiva para o surgimento da Linha de Pesquisa “Culturas e Sociabilidades” do PPGSOCIO/UFPR, onde orientou dezenas de trabalhos de pesquisa.

Criou, no mesmo período de consolidação do Programa, o Grupo de Estudos “Imagem e Conhecimento”, espaço de reflexão e experimentação na área de sociologia visual. Foi também sob orientação desta abordagem que participou, com colegas da UFPR, sob o patrocínio da Associação das Universidades do Grupo Montevideo (AUGM), da criação do Centro de Cultura e Imagem da América Latina (CECIAL) inspirado nas ideias de Miguel Rojas Mix, com quem esteve, na Universidade de Extremadura, em reuniões de estudo.

A relação de Ana com a imagem é longeva. Pode-se dizer que, em particular, a fotografia a acompanhou desde o início de sua carreira.

O primeiro momento foi entre 1982 e 1983, quando desenvolveu um projeto pioneiro sobre a vida de moradores do Aterro Sanitário de Brasília sob orientação do professor Klass Woortmann, da antropologia da UnB. Sentindo uma espécie de impotência descritiva diante das cenas que testemunhava, Ana pediu socorro ao amigo fotógrafo Milton Guran. Juntos, desenvolveram o trabalho documental “Gente não é lixo” (2020) que teve como premissa uma interlocução com os moradores na qual a fotografia tornou-se instrumento do processo de reconhecimento e humanização. [1]

A fotografia aparece também em uma de suas produções mais recentes, “Huellas” (2019), seu livro de fotos do período em que viveu no México, no ano de 2012. Trata-se da reunião de cerca de cinquenta imagens em preto e branco nas quais desvela, sem a ajuda das cores nem das palavras, os movimentos de uma cultura rica e diversificada. As imagens compõem uma declaração de amor ao país e instituem a fotografia como sua linguagem privilegiada.

Ana, a propósito, tornou-se uma exímia fotógrafa. Das lentes da sua máquina, vê o nosso melhor sorriso, encontra a melhor composição e as melhores cores. Produz, assim, um mundo mais bonito. Sabe que brutalidade da vida exige, além de conhecimento e afeto, também arte.

E, pode-se dizer que ela testemunhou, desde cedo e bem de perto, as formas da violência, em particular na vida política brasileira.

Gaúcha de Cruz Alta, onde nasceu em 1957, mudou-se para Brasília antes dos cinco anos de idade, quando a cidade era ainda um canteiro de obras. Em 1962, a família, cujo pai era jornalista, partidário de Jango, trocou o frio minuano pelo sol do planalto central. Mas, a despeito do céu luminoso de Brasília, a menininha chegou ao palco dos acontecimentos políticos mais sombrios e tornou-se adolescente na época da violência mais extrema do regime militar.

Ingressou no curso de Ciências Sociais da UnB em 1977, quando as mobilizações estudantis ainda enfrentavam a repressão, ao mesmo tempo em que jovens inventavam linguagens culturais transgressoras.

Concluiu o curso de graduação casada e mãe de dois bebês e enfrentou os desafios do início da carreira no período da abertura política. Fez pesquisas no Centro-Oeste e na Amazônia, profissionalizando-se com uma agenda na qual a sociologia e antropologia se firmavam, na tecnocracia do Estado, como narrativas constituintes de reinvindicações por direitos sociais. Trabalhou na Companhia de Desenvolvimento do Planalto, na Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste e no Ministério da Cultura. Os diagnósticos das pesquisas nas quais tomou parte denunciavam os impactos sociais da expansão da fronteira agrícola, das hidrelétricas, rodovias, áreas de mineração e recomendavam o apoio aos movimentos de criação das reservas extrativistas em defesa de trabalhadores dos seringais do Acre.

Durante o mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UnB, dedicou-se ao estudo da vida e a obra de Oswald de Andrade sob orientação de Roberto Cardoso de Oliveira. Em 1987, quando defendeu a dissertação intitulada “Da Morte à Vida de Oswald de Andrade: uma aproximação antropológica”, já era mãe de três crianças e estava recém-separada. Viveu então um período ministrando aulas no Centro Universitário de Brasília até decidir pela mudança para Curitiba, após sua aprovação no concurso público.

Seu doutorado realizou na própria UFPR, no Programa de Pós-Graduação em História, entre os anos de 1993 e 1998. Sob orientação de Ronald Raminelli, desenvolveu um estudo sobre as representações da natureza pelos viajantes alemães no Brasil do século XIX, procurando articular textos e imagens produzidas pelos naturalistas/artistas.

Imediatamente depois da conclusão de sua tese foi convidada, por sua amiga de Brasília, Carla Coelho de Andrade, para realizar uma pesquisa comparada, financiada pela Unesco, acerca do tema juventude, violência e cidadania. A equipe local foi composta pelos colegas da UFPR Rafael Duarte Villa, Pedro Bodê de Moraes e Maria Tarcisa Silva Bega e o trabalho resultou no livro “Os Jovens de Curitiba: Esperanças e Desencantos” (2000), em cujas páginas aparece uma visão bastante caleidoscópica dos horizontes de expectativas de jovens pobres. Esta pesquisa representou uma transição importante na agenda de pesquisas de Ana para o tema da juventude, que teria prosseguimento no projeto “Imaginários Juvenis Latino-americanos”, cujo desdobramento mais importante é o desenvolvimento de seu estudo de pós-doutorado na Cidade do México, dedicado ao cotejamento das culturas juvenis no Brasil e no México, sob a supervisão de Orlandina de Oliveira e Minor Mora Salas, do Colégio do México.

Neste período, Ana, além de desenvolver pesquisa empírica, também aprofundou estudos teóricos sobre sociologia das emoções, contribuição que tem dado ao ensino da pós-graduação no PPGSOCIO/UFPR, e que tem balizado suas análises mais recentes sobre as ocupações estudantis no Brasil, em parceria com Luiz Antonio Groppo.

Não se pode esquecer que Ana também esteve atenta ao compromisso com a formação de docentes para Educação Básica. Participou do projeto Licenciar da UFPR entre 2000 e 2003, momento das lutas mais decisivas para introdução da sociologia no ensino médio.  Foi ainda uma das apoiadoras de primeira hora (quando se reuniam os primeiros esforços para sua criação) do Mestrado Profissional em Rede Nacional de Sociologia, onde hoje ministra aulas e orienta trabalhos.

Foi atuante nas principais associações científicas da área. Na ANPOCS, participou, entre 2015 e 2018, da Comissão de Imagem e Som.  Desde 2011, é associada da International Sociological Assocation, participando dos Comitês Sociology of Communication, Knowledge and Culture e Visual Sociology. E é associada da SBS, onde foi, em 2011, secretária geral do XV Congresso Brasileiro de Sociologia, trabalhando ao lado de José Miguel Rasia e Maria Celi Scalon na organização do evento. Na SBS, atualmente compõe também a Comissão do projeto SBS Memória.

Mas eu gostaria de terminar essa bionota (que nem de longe sintetiza toda contribuição de Ana Luisa para a UFPR e para a sociologia), destacando outro trabalho, para o qual lançamos pouca luz em nossas biografias acadêmicas: a atividade de gestão. Ana  diz que uma das melhores ações que desenvolveu na UFPR foi a coordenação do Programa de Revitalização e Restauro do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade, no período em que foi sua diretora, entre os anos de 2002 e 2010. Desde reforma, com a transferência da reserva técnica do Museu de Paranaguá para Curitiba, o Museu tornou-se muito mais próximo dos docentes, técnicos e estudantes, e isso resultou em enorme impacto acadêmico e no desenvolvimento de projetos de ações educativas, bastante conhecidas e premiadas pelo Ministério da Cultura.

Com esse texto espero ter demonstrado que Ana reúne qualidades raras, necessárias para o ensino, a pesquisa, a extensão e a administração acadêmica. Sua ciência e sua arte são reveladoras da sua estima pelo mundo. E isso ela transmite de um modo muito próprio, a cada um e cada uma de seus alunos e alunas.

Sugestões de obras da autora:

SALLAS, A. L. F. Ciência do homem e sentimento da natureza: viajantes alemães no Brasil do século XIX. Curitiba: Editora UFPR, 2013.

SALLAS, A. L. F.; BEGA, M. T. S.; MORAES, P.  R. B. de; VILLA, R. D.; ANDRADE, C. C.; AMARAL, C.  Os Jovens de Curitiba: esperanças e desencantos. 2. ed. Curitiba: Editora da Universidade Federal do Paraná, 2008.

SALLAS, A. L. F.; BEGA, M. T. S.; MORAES, P.  R. B. de; VILLA, R. D.; ANDRADE, C. C. ; AMARAL, C; ANDRADE, C. C. ; SILVA, S. L. C. ; GUIMARES, P. R. B. ; WAISELFISZ, J. J. . Os jovens de Curitiba: esperanças e desencantos. 1. ed. Brasília: Edições UNESCO Brasil, 1999.

SALLAS, A. L. F. Sobre experiências e pesquisa com imagens no universo do Graffiti e Street Art. Revista de Ciências Sociais, v. 47, 2016.

GROPPO, L. A.; SALLAS, A. L. F. Ocupações secundaristas no Brasil em 2015 e 2016: sujeitos e trajetórias. Revista Brasileira de Educação, v. 27, p. 1-27, 2022.

SALLAS, A. L. F.; GURAN, M. Gente não é lixo. Curitiba: Hellograf, 2020. Acessível em: https://livrosdefotografia.org/publicacao/22034/gente-nao-e-lixo

[1] Guran e Ana publicaram recentemente as fotografias que compuseram o audiovisual, transformando as imagens em um fotolivro.