Por Antônio J. Pedroso Neto (UFT)
Afrânio Raul Garcia Jr. nasceu no Rio de Janei ro em 1948, primeiro filho de um casal de mé dicos com trajetórias parecidas: nascidos em- Minas Gerais, investiram fortemente nos estudos como modo de enfrentar a ameaça de desclassificação familiar, trabalharam em hospitais públicos e se dedicaram à pesquisa. Sua inclinação inicial seria a diplomacia, por ascendência do tio paterno, mas o golpe militar de 1964 impôs inflexões para ele e sua geração. Daí sua primeira passagem pela França em 1966, onde a família exilada de seu grande amigo, José Sérgio Leite Lopes, o acolheu. Ambos cursaram os dois primeiros anos em Economia na Universidade de Paris. Obtiveram o Diploma de Estudos Econômicos Gerais pela Université de Paris X (1966 a 1968) e, ao voltar ao Brasil, em Economia pela PUC-RJ (1968 a 1969).
Em 1970, como assistentes de pesquisa do economista Isaac Kersternetzky na PUC-RJ foram convidados para realizar uma pesquisa sobre o processo de industrialização por substituição de importações no Brasil.
Mas foram vetados pelo próprio reitor da universidade por motivos ideológicos. Por conselho do mesmo professor, no mesmo ano, eles ingressaram no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional (UFRJ). Afrânio concluiu o mestrado (1976) e o doutorado (1983), elaborou e participou de pesquisas decisivas para a institucionalização do PPGAS e ingressou como docente do Departamento de Antropologia (1978), por concurso, onde atuou com docente-pesquisador de 1978 a 1998 (GHEORGHIU, 2018). Em 1970, casou-se com Marie-France Parpet, colega da Université de Paris X, que também integrou o PPGAS, onde fez mestrado e doutorado. E, em colaboração, realizaram pesquisas, publicações e concursos para instituições de pesquisa na França, a partir de 1994.
Trabalhou como economista nos anos 1970 no Instituto de Desenvolvimento da Guanabara (da FIRJAN), em planificação de formação de mão de obra industrial, e no Grupo de Pesquisas da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), sobre distribuição de renda no Brasil entre 1973 a 1980. No PPGAS participou das
pesquisas organizadas por Moacir Palmeira sobre transformação dos modos de dominação na grande plantação canavieira do Nordeste. Participou ativamente da elaboração e realização de um grande projeto de pesquisa coletivo: “Emprego e mudança socioeconômica no Nordeste” (1975-1978). Esse projeto reuniu mais de duas dezenas de pesquisadores aprendizes e sêniores e contribuiu decisivamente para a institucionalização definitiva do PPGAS na UFRJ.
Enfim, sua trajetória conflui com a do PPGAS, com a de colegas e aporta contribuições para a
sociologia e a antropologia brasileiras. No âmbito desse grande projeto, pesquisou a transformação do modo de dominação e de imobilização da força de trabalho nas grandes plantações açucareiras do Nordeste na primeira metade do séc. XX. Sua investigação em Pernambuco e na Paraíba apresentou uma análise etnográfica densa das estruturas objetivas e dos significados simbólicos das relações de dependência personalizada nos engenhos: da condição econômica, social, política e cultural de
morador e da teia de reciprocidades assimétricas que o liga à autoridade do senhor de engenho, e que o tornava sujeito, em certa continuidade com o passado escravista. Mas, como foco central, concentrou-se em agricultores de fora dos engenhos, nomeados como libertos. E analisou igualmente os percalços da economia dos senhores de engenho e as vicissitudes impostas pelo crescimento das usinas de açúcar, condenando muitas famílias de senhores à decadência.
Esse declínio seria precipitado pela abertura dos caminhos do sul para os grupos subalternos. Demonstrou como a migração tanto de libertos como de sujeitos, recrutados para trabalhar nas industrias na região sudeste, possibilitou o retorno de muitos com recursos materiais e simbólicos que alteraram os jogos de poder com os antigos senhores. Para os sujeitos, os deslocamentos para o sul tiveram forte impacto nos habitus ao verem a fazenda, a moradia, o mundo do trabalho confrontados com outros possíveis: ir morar na periferia das cidades, ter pequeno comércio em feiras, meios de ter acesso à terra, mobilizar organizações e direitos trabalhistas, ter a propriedade da terra cultivada como posseiro etc. Para os senhores, a reconversão de atividades econômicas se impôs: mudança para as cidades permitindo a escolaridade dos filhos, fracionamento ou venda das terras, mudança para a condição de produtor-fornecedor de cana, de rapadura, de cachaça, passagem à condição de pecuarista ou usineiro com base em trabalho assalariado. Enfim, mudança da dominação pessoal à dominação racional-legal (GARCIA JR: 1986 e 1989), mas com variações significativas entre vias opostas de pauperiza-
ção de assalariados e encampesinamento de certas frações de agricultores.
Finalizada a tese, partiu para o pós-doutorado no Centre de Sociologie Européenne (CSE/EHESS/Paris), com Pierre Bourdieu, de 1983 a 1986. Então, iniciou as pesquisas sobre as relações entre a reconversão dos herdeiros dos senhores em declínio – elites agrárias – e a construção do Estado brasileiro após a Revolução de 1930. Certos herdeiros ameaçados de declínio se dotaram de capital escolar e cultural para contribuírem com inovações políticas e culturais que restauraram seu capital social. Dessa forma, abandonaram trajetórias ligadas à herança fundiária por novos itinerários no espaço das elites. Eles não se restringiram aos espaços das elites jurídicas, militares, políticas e culturais. Atuaram na diversificação do campo do poder como parlamentares, ministros, militares, juristas e no mercado cultural com livros, romances e testemunhos reconhecidos na construção e definição do Brasil mais moderno, concebendo a expansão do Estado nacional. Atuaram na constituição de instituições públicas, na formação de mentalidade, nas categorias de percepção e representações sobre a cultura nacional, o nacionalismo, a economia nacional etc. Essas inovações significaram trunfos na dura competição pela hegemonia com as elites de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Enfim, analisou a trajetória de herdeiros do Nordeste, do Sudeste e do Sul: Alberto Torres, Juarez Távora, José Américo de Almeida, Getúlio Vargas, Nelson Werneck Sodré, dentre outros (GARCIA JR: 1993, 1994, 2008).
Em seguida, sensível ao peso do capital intelectual e social internacional no campo do poder nacional, ajustou a pesquisa para a elite acadêmica em suas transformações recentes. Analisou as trajetórias de Celso Furtado e Fernando Henrique Cardoso como políticos e intelectuais que contribuíram para repensar o Brasil. Ambos tiveram carreiras de excelência nos debates intelectuais e circulação internacional, e ambos estiveram voltados para a política e o Estado. Herdeiros de juristas, militares e parlamentares do Nordeste, do Centro-Oeste e do Sudeste, foram criadores de inovações intelectuais e políticas através de conhecimento aprofundado de diferenças regionais, nacionais e internacionais relativas à industrialização, ao desenvolvimento econômico, à repartição da renda nacional, às hierarquias sociais etc.
O uso das ferramentas da sociologia de Pierre Bourdieu foi constante. Buscou estender os domínios de sua aplicação ao Brasil – por exemplo, Garcia (1986) na Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Orquestrado com os colegas do Museu Nacional, as importou para estudar o campo da economia e dos modos de dominação. E, graças a seu pós-doutorado no CSE, estabeleceu relações fortes com os sociólogos de sua geração: M. Saint-Martin, L. Pinto, V. Karady, A. Sayad, M. Pollak, J. P. Faguer, J. C. Combessie, F. M. Dreyfus, M. Pialoux, entre outros. Assim, em grupo, teceu uma densa rede de circulação e colaboração em pesquisas (GHEORGHIU, 2018). Finalmente, a sua inserção no espaço acadêmico francês. Com a eleição para Maître de Conférences na EHESS em 1995 – marca de reconhecimento da sua atuação no espaço intelectual – passou a diretor do Centre de Recherches Sur le Brésil Contemporain (CRBC), criado por Ignacy Sachs, de 1996 a 2009. Pôde atuar na cooperação internacional com novo elenco
de pesquisa – ex. com L. Canedo, R. Grün, A. M. Almeida e outros (GARCIA JR. & MUNOZ, 2009) –, publicação, conferência e com novas possibilidades de conectar pesquisadores brasileiros com os homólogos na França e na Europa. Um desdobramento intencional e importante desses vínculos internacionais foi a irradiação de circuitos e possibilidades para o espaço dos pesquisadores brasileiros, reforçando e abrindo novos horizontes para nosso internacionalismo científico.
Sugestões de obras do autor
GARCIA JR, A. R. 1986. Libres et assujettis. ARSS, v. 65, pp. 14-40.
GARCIA JR, A. R. 1989. Libres et assujettis: marché du travail et modes de domination au Nordeste. Paris: Editions de la MSH.
GARCIA JR, A. R. 1993. Les intellectuels et la conscience nationale au Brésil. ARSS, v. 98, pp. 20-33.
GARCIA JR, A. R. 1994. Reconversions des élites agraires. Du pouvoir local au pouvoir national. Etudes Rurales, v. 131, n. 132, pp. 89-105.
GARCIA JR, A. R. 1998. La construction interrompue. Celso Furtado, la guerre froide et le développement du Nordeste. ARSS, v. 121-122, pp. 52-61.
GARCIA JR, A. R. 2004. A dependência da política: Fernando Henrique Cardoso e a sociologia no Brasil. Tempo social, v. 6, n. 1. pp. 285-300.
GARCIA JR, A. R. 2008. Os vice-reis do norte: reconversão de elites agrarias e a revolução de 1930 (1920-1964). Revista de Ciências Sociais, v. 38, n. 2, pp. 73-87.
GARCIA JR, A. R. & MUNOZ, M. C. (orgs.) 2009. Mobilité universitaire et circulation internationale des idées. Cahiers de la recherche sur l’éducation et les savoirs (CRES), hors-série n. 2.
GHEORGHIU, M. D. 2018. Entretien avec Afrânio Raul Garcia Jr. “Les frontières internationales des sciences sociales. Itinéraires d’un intellectuel collectif”. Psihologia Socială, n. 42 (II).