Por Maria Eduarda da Rocha (UFPE)
Afrânio Mendes Catani nasceu em 22 de junho de 1953, na cidade de Campinas, interior de São Paulo, filho de Renato Catani e de Maria José Mendes Catani. A família materna havia vendido as terras em Piracicaba e comprado seis casas para alugar na cidade, onde o avô também emprestava dinheiro a juros e conseguia prover uma vida confortável aos seus dependentes. Do outro lado, a ascendência italiana esteve na origem do capital cultural do pai, já que o avô dominava a língua mátria além do francês e não apenas o dialeto local da Toscana de onde provinha. O avô paterno pode então viver bem como tradutor juramentado enquanto as circunstâncias da Segunda Guerra não levaram ao fechamento do Consulado da Itália, seu principal contratante. Entre bons e maus momentos, o pai de Afrânio foi o único de sua geração a cursar a faculdade, levado a Piracicaba para frequentar a Escola de Agronomia, onde se formou em 1940, casando-se com a mãe dele, dona-de-casa, em 1942.
O pai de Afrânio, Renato Catani, ingressou muito cedo no Instituto Agronômico de Campinas como pesquisador, depois do doutorado cursado em Piracicaba. Em 1950, recebeu bolsa da Fundação Rockefeller para estudar dos Estados Unidos, na área de Química, que ajudou a consolidar em várias instituições acadêmicas do interior de São Paulo. No primeiro concurso de cátedra para Química Analítica da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP em Piracicaba, foi aprovado e pôde usufruir de um salário que, naquela época, era equiparável ao de outras carreiras de alta reputação no serviço público. Pôde assim, prover a Afrânio e a sua única irmã mais velha uma casa confortável com uma ampla biblioteca.
Aos dois anos de idade, quando o seu pai já estava estabelecido, Afrânio se mudou para Piracicaba junto com a família. Pouco depois, aos seis anos, ingressou no Grupo Escolar Prudente de Morais e mais tarde, no Instituto Educacional Piracicabano, de base metodista, o que causava incômodo sendo a sua família de filiação católica. Pesava mais naquela escolha o pragmatismo da possibilidade de uma educação de qualidade do que a inclinação religiosa, o que dá mostras da importância da aquisição de capital escolar na visão de seus pais. Enquanto a irmã seguia a trilha do pai rumo às áreas duras, optando pela Agronomia, Afrânio queria fazer da paixão pelo cinema a sua ocupação. Via filmes com muita frequência, eram a sua principal forma de lazer, especialmente as chanchadas e o cinema hollywoodiano, mas também o cinema europeu. Além disso, leituras dispersas de livros como Brasil em Tempo de Cinema, de Jean Claude Bernadet ou Por que Literatura, de Luiz Costa Lima, haviam “mudado” a sua vida ao sinalizar ser possível se dedicar a algo “que não fosse engenharia, direito ou medicina” (Catani, 2021, 38). O interior oferecia agronomia, engenharia, até a recém-criada faculdade de Direito, por tantas pessoas usada como porta de entrada para as humanidades, mas pouco atrativa por sua prematuridade e incipiência naquele contexto. Oferecia também as desconhecidas ciências sociais em Rio Claro e Araraquara. Mas estas eram opções ou desinteressantes para ele ou muito vaporosas quando comparadas a percursos tão focados como os do seu pai e de seus avôs.
Então no começo dos anos de 1970, a inclinação para as humanidades significou a mudança para a capital, trazido pelos pais para frequentar um cursinho de sete semanas e depois, como não havia obtido sucesso na primeira tentativa, o preparatório da FGV para o vestibular, ingressando no curso de Administração Pública que era gratuito. Foi ali que se deu a sua descoberta da Sociologia, através das muitas disciplinas da área que o curso oferecia e da colaboração nas pesquisas dos professores, especialmente aquela que serviu de base à tese de Sergio Miceli. Foi também ali que se manifestou a serventia de um recurso valioso trazido de casa, o domínio da língua, que o engatou de maneira definitiva no trabalho editorial. Ainda na graduação, seu professor Edgar Carone perguntou se alguém sabia corrigir prova e Afrânio, sem entender que se tratava de prova de livro, se prontificou. Quando chegou na editora Difel onde Carone atuava, só não se viu em uma situação mais difícil graças à ajuda do funcionário que se dispôs a ensinar os macetes para que adaptasse a esse serviço o bom conhecimento do português que já tinha. Foi esse recurso também que impressionou Miceli quando era diretor da Revista de Administração da FGV e pediu que os alunos fizessem resenhas de livros, abrindo caminho para a colaboração que se seguiu, sobretudo na participação nas edições brasileiras dos livros de Bourdieu. Esse trabalho, que começa com o muito bem-sucedido Escritos de Educação, coletânea organizada em parceria com Maria Alice Nogueira (Nogueira, Catani, 2022 [1998]), culmina no Vocabulário Bourdieu, mais recentemente lançado também em colaboração com Nogueira, além de Ana Paula Hey e Cristina Medeiros (Catani et alli, 2017).
A passagem da administração para a Sociologia como área disciplinar só pode se dar em nível de pós-graduação, o que foi muito comum na sua geração. A amiga Vanya Sant’Anna, professora de Ciência Política da Getúlio Vargas, fez a ponte com Gabriel Cohn e a insistência de Afrânio fez com que aceitasse orientar um mestrado iniciado em 1976 e concluído em 1983 com o título “A Sombra da Outra: a Companhia Cinematográfica Maristela e o Cinema Industrial Paulista nos anos 50”. A dissertação foi publicada muito tempo depois, em 2002, pela editora Panorama (Catani, 2002). O projeto de fazer do cinema a sua ocupação encontrou o apoio de Paulo Emílio Gomes Salles, o seu assessor na Fapesp, enquanto cursava o mestrado. Ele o condicionou a estudar profundamente o tema e, de certo modo, aquele investimento na sistematização de uma cultura cinematográfica fragmentária que trazia de muito antes era um retoque importante no trabalho que Afrânio vinha fazendo desde a sua mudança para São Paulo, de saltar de um repertório cultural disperso e “eclético” (Catani, 2021, 36), para equiparar a sua formação àquela exigida pelo meio em que passava a circular, o que fica evidente quando compara, por exemplo, o conhecimento em história adquirido no colégio do interior com o de seus primos que haviam estudado na capital. O ingresso na Sociologia aparece como parte desse esforço de autoconstrução.
O doutorado em Sociologia também foi feito na USP, mas sob orientação de Heloísa Fernandes, entre 1985 e 1992, resultando na tese “Cogumelos de uma só manhã: B. J. Duarte e o Cinema Brasileiro (Anhembi 1950-1962)”, onde a influência de Bourdieu se fez mais presente, através de uma compreensão ampliada do conceito de “capital”. Mas as marcas da obra do sociólogo francês na sua visão de mundo eram muito mais profundas e lhe acompanhariam ao longo de todo o seu percurso, talvez porque tenha lhe permitido compreender uma desigualdade social vivenciada muito de perto, desde a primeira infância. No grupo escolar onde havia iniciado os seus estudos, ele convivia em uma classe com cerca de quarenta estudantes, sendo um dos poucos liberados de ocupações manuais. Começava ali a sua percepção do peso da origem social na trajetória escolar. Naquela turma, ele estava entre os dez alunos “filhos de gente de bem”; tinha até acesso a biblioteca e uma máquina de escrever em casa (Catani, 2002, 60). Na transição para o ginásio, mais de trinta dos seus colegas ficaram pelo caminho, absorvidos pelos trabalhos que já exerciam e a que passaram a se dedicar em tempo integral. Mas foi somente a leitura dos escritos de educação de Bourdieu que lhe permitiu ressignificar essa experiência como exclusão, bem como entender que, se naquele contexto interiorano a sua condição era privilegiada, na comparação com a formação recebida pelos primos da capital, havia um déficit em humanidades que o fazia se sentir deslocado (Catani, 2002, 61). Não por acaso, no texto em que faz o balanço de sua trajetória, é a partir desse sentimento que Afrânio faz a passagem entre a sua própria experiência e a do autor que se tornaria a sua principal referência teórica (Catani, 2013, p. 16 e ss), tomada como uma sociologia dos “interesses vitais”. (Bourdieu apud Catani, 2002, p. 61).
Através de Sergio Miceli, Afrânio integrou-se à primeira geração de mediadores e mediadoras da obra de Bourdieu no Brasil, tendo frequentado o Centro de Sociologia Europeia em 1975, ao mesmo tempo que seu professor. Esse foi o contexto de sua inserção na rede de relações que lhe permitiram a organização da coletânea de artigos do sociólogo francês sobre sociologia da educação, em colaboração com Maria Alice Nogueira, muito depois (Nogueira e Catani, 2022 [1998]). Somada à sua formação em administração pública, esse trabalho lhe abriu a possibilidade de uma inserção profissional na área da Sociologia da educação. Afrânio já havia começado a dar aulas na FGV como horista durante o mestrado, onde ficou até 1980, quando ingressou na Unesp de Araraquara e de lá seguiu para um ano e meio na Unicamp até sua entrada na Faculdade de Educação da USP em 1986.
Suas linhas de pesquisa sugerem uma compreensão ampliada da sociologia da educação bourdieusiana, integrada à economia dos bens simbólicos. Nesse sentido, a história do cinema na América Latina pode vir de par com as políticas da educação superior dentre as suas preocupações. Sobre este último tema, tem publicado artigos de referência (Cf., por exemplo, Catani et alli, 2008). Ao mesmo tempo, a recepção da obra de Bourdieu no Brasil, especialmente na área da educação onde tem sido protagonista, também tem recebido atenção de sua parte. O livro que, de certa forma, faz um balanço de sua carreira, recebeu o título de Origem e Destino – pensando a sociologia reflexiva de Bourdieu (Catani, 2013). No ensaio final, parte de sua tese de livre docência defendida na Faculdade de Educação da USP, ele retoma a análise de trajetórias que havia feito ao longo de sua própria formação como pesquisador, de Benedito Duarte, Vinícius de Moraes, Octávio Ianni, Florestan Fernandes e do próprio Bourdieu, problematizando a relação entre o “berço” e a inserção no sistema de ensino, o que mostra a persistência e a profundidade das marcas deixadas por aquele pensador em sua forma de enxergar o mundo e, mais do que isso, indica as questões de fundo que fizeram a sociologia ter sentido para ele.
Sugestões de obras do autor:
BOURDIEU, P. Escritos de Educação. 16. Ed. Organização de Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani. Petrópolis: Vozes, 2022 (1998).
CATANI, Afrânio Mendes. A Sombra da Outra: a Companhia Cinematográfica Maristela e o Cinema Industrial Paulista nos anos 50. Dissertação de Mestrado. USP. Sociologia, 1983.
CATANI, Afrânio Mendes. Cogumelos de uma só manhã: B. J. Duarte e o cinema brasileiro (ANHEMBI: 1950-1962) (revista de crítica de cinema).Tese de Doutorado. USP. Sociologia, 1992.
CATANI, Afrânio Mendes. “A Sociologia de Bourdieu (ou como um autor se torna indispensável a nosso regime de leituras)”. Educação & Sociedade, ano 23, no 78, Abril/2002a.
CATANI, Afrânio Mendes. A sombra da outra: a cinematográfica Maristela e o Cinema Industrial Paulista nos anos 50. 1. ed. São Paulo: Panorama, 2002b. v. 1.
CATANI, Afrânio Mendes. Origem e Destino – Pensando a sociologia reflexiva de Bourdieu. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2013.
CATANI, Afrânio Mendes. “Borboleteando na biblioteca”. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica, v. 6, n. 17, p. 34-46, 30 maio 2021.
CATANI, A.M.; NOGUEIRA, M. A.; HEY, A.P.; MEDEIROS, C. Vocabulário Bourdieu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
LIMA, Licinio C.; AZEVEDO, M.L. N.; CATANI, A.M. “O Processo de Bolonha, a avaliação da Educação Superior e algumas considerações sobre a Universidade Nova”. In: AVALIAÇÃO: Revista de Avaliação da Educação Superior. Campinas SP:RAIES; Sorocaba, SP: Uniso, v. 17, n.1, p. 7-37, mar. 2008.