Por Tânia Mara Campos de Almeida (UnB)
Desde seu nascimento, o percurso realizado por Lourdes Bandeira mostrou-se transgressor àquele destinado às mulheres brasileiras nascidas em famílias tradicionais no ano de 1949. Do interior do Rio Grande do Sul, município de Ijuí, graduou-se em Ciências Sociais na UFRGS em 1973 e logo buscou novos horizontes acadêmicos e geográficos, ingressando no mestrado em Sociologia da UnB em 1975. Um ano antes de finalizar esse curso de pós-graduação, tornou-se professora da UFPB em 1977. De lá, seguiu para mais longe, tendo como paradeiro a Université de Paris V – René Descartes, onde desenvolveu o doutorado de 1978 a 1984, sob a orientação de uma das primeiras mulheres sociólogas da França, a expoente Viviane Isambert Jamati.
Em meio ao ambiente feminista francês e ao desenvolvimento da tese Force de Travail et Scolarité; le cas du Nord-Est Brésilien (1975-1979), Lourdes teve a oportunidade de adentrar em discussões que problematizavam a divisão sexual do trabalho e o nível de escolaridade, trazendo à tona reflexões sobre os constrangimentos sociais, educacionais, econômicos e ideológicos que designam as mulheres ao status inferior no mundo laboral e as confinam às atividades domésticas. Conhecimentos estes que, com ela, desabrocharam no seu retorno ao Brasil em tempos de abertura democrática.
Na Paraíba, dedicou-se às lutas travadas pelos movimentos sociais e sindicatos, em especial, dos trabalhadores rurais e, dentre as Ligas Camponesas Nordestinas, voltou-se à participação das mulheres nesses espaços políticos. Foram várias as produções e orientações de pesquisa nessa temática, iniciada no fim dos anos 1980. Destaca-se a história da líder Elisabeth Teixeira, a qual resultou no livro Eu marcharei na tua luta! A vida de Elizabeth Teixeira, organizado por Lourdes, Neide Miele e Rosa Maria Godoy Silveira, em 1997. Décadas depois, o material de campo se desdobrou em entrevistas, em uma iniciativa inovadora do fazer sociológico, realizada por Lourdes nos anos 2000 e registrada em Maternidade e Cidadania: uma mulher marcada para (sobre)viver (2007).
Transferida para a UnB em 1991, atuou na Saúde Coletiva na chegada. Sua atenção às representações e relações sociais na área da saúde contribuíram para abrir-lhe outras portas e qualificar ainda mais sua expressiva bagagem intelectual. Desenvolveu importantes conhecimentos nos temas dos cuidados e cuidadoras, saúde pública, bioética e corpo como lócus de poder, particularmente os corpos femininos. Não foi difícil, portanto, sua rápida afinidade com o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (NEPeM) da UnB, agregando a ele sua práxis pedagógica feminista de caráter interdisciplinar, em rede e articulada com a extensão. Era notável o fato do vigor teórico e metodológico de Lourdes ser mantido pelo seu engajamento na luta pelos direitos das mulheres à vida digna e sem violência, dentro e fora da universidade. Nutria-se de aprendizados e sabedoria que só a vinculação direta com as pessoas e suas experiências empíricas poderia lhe oferecer, estabelecendo interlocuções de parceria, afeto e colaboração de quem se aproximava.
No NEPeM, Lourdes mergulhou em investigações pioneiras sobre a violência contra as mulheres, justiça, direitos humanos e segurança pública, sempre com colegas, estudantes de diversos níveis de formação e saberes disciplinares, outras universidades, instituições multilaterais e organizações governamentais e não-governamentais. Foi nessa época que nos conhecemos e, pela primeira vez, assinamos juntas um texto, capítulo da coletânea do núcleo que se tornou referência, Violência, Gênero e Crime no Distrito Federal (1999), organizada por ela e Mireya Suárez. Na sequência, tive a grata satisfação de partilhamos publicações, cursos, bancas, eventos e períodos da editoria na prestigiosa revista Sociedade e Estado, onde ela esteve à frente por dez anos.
No exercício dos cargos de Secretária de Planejamento e Gestão (2008 – 2011) e Secretária Adjunta (2012 – 2015) da Secretaria de Políticas para Mulheres -SPM/Presidência da República, produziu crítica competente e rigorosa das desigualdades de gênero, interseccionadas ao racismo, à LGBTfobia e outras formas de discriminação, contribuindo para lançar o Brasil à vanguarda internacional na implantação da Lei Maria da Penha e políticas públicas para a equidade de gênero, na consolidação das Delegacias de Atendimento Especial às Mulheres e no fortalecimento das Casas Abrigo. Com o intuito de promover mudanças substantivas na responsabilização de agressores, Lourdes foi uma das idealizadoras da Lei do Feminicídio (2015), sendo este o tema do seu último pós-doutorado, na Universidade do Porto (2018) e que resultou no livro, agora póstumo, Crimes de feminicídio no enquadramento midiático: o que não é nominado não existe (Brasil 2015-2018).
Em setembro de 2021, Lourdes faleceu, quase um ano depois de se aposentar como professora titular do Departamento de Sociologia e pouco antes da outorga de seu reconhecimento como emérita da UnB. Seu compromisso com a universidade, a academia e a institucionalização das Ciências Sociais são marcas de sua trajetória, tanto que se tornou pesquisadora 1B do CNPq e estava, novamente desde 2020, envolvida com a ativação de Comitê de Pesquisa da SBS – Gênero e Sexualidade. Sua ausência fará muita falta à Sociologia brasileira, embora siga presente na imensidão do seu legado intelectual e ativista feminista pelas futuras gerações.
Sugestões de obras da autora:
BANDEIRA, Lourdes M.; MIELE, Neide e SILVEIRA, Rosa Maria G. (orgs). Eu marcharei na tua luta! A vida de Elizabeth Teixeira. João Pessoa: Ed. Universitária/UFPB, 1997.
BANDEIRA, Lourdes M. e SUÁREZ, Mireya. Violência, Gênero e Crime no Distrito Federal. Brasília: EDUnB, 1999.
BANDEIRA, Lourdes M. Maternidade e Cidadania: uma mulher marcada para (sobre)viver. In STEVENS, Cristina (org.) Maternidade e Feminismo Diálogos Interdisciplinares. Florianópolis: Editora Mulheres/EDUNISC. 2007.
BANDEIRA, Lourdes M. Crimes de feminicídio no enquadramento midiático: o que não é nominado não existe (Brasil 2015-2018). Brasília: EDUnB, no prelo.
Sobre a autora:
PORTO, Rozeli e TEIXEIRA, Analba B. “Lourdes Bandeira”. In GROSSI, Míriam Pilar et alii. Depoimentos trinta anos de pesquisas feministas brasileiras sobre violência. Florianópolis: Editora Mulheres. 2006.