Por Henrique Carmona Duval (UFSCar)
Dulce Consuelo Andreatta Whitaker nasceu em Curitiba/PR, em 21 de dezembro de 1934. Seus pais foram a segunda geração de imigrantes europeus no Brasil. Ainda criança se mudou com a família para Pirapozinho/SP, na região do Pontal do Paranapanema, onde ficaram por um ano antes de se mudarem definitivamente para Presidente Prudente/SP. Seu pai era alfaiate e tinha um perfil mais rural. A mãe, por outro lado, dona de casa, era uma pessoa urbana.
Ambos a incentivaram ao conhecimento, propiciaram um ambiente fértil para a aquisição de capital cultural e para a formação de seus esquemas de assimilação, especialmente por meio da leitura. O contexto era a segunda guerra mundial. Na região, sua família vivenciou o avanço da derrubada da mata virgem e o desenvolvimento urbano puxado pelos setores têxtil e comercial. Apesar disso, a infância vivida nessas cidades, sobretudo Pirapozinho, foi importante para a formação de memórias de vida rural, que seriam decisivas nas escolhas de seus temas de pesquisa.
Casou-se aos 19 anos de idade com Mario e tiveram duas filhas, Marisa e Valéria. Nessa época Dulce tocava e dava aulas de piano e teoria musical no conservatório local. Aos 29 anos decidiu prestar o vestibular. Era uma época na qual foram abertas várias faculdades de Filosofia no interior do estado de São Paulo, que depois viriam a se tornar os campi da Unesp (Universidade Estadual Paulista). Cursou Ciências Sociais na faculdade de Presidente Prudente e passou a lecionar História em escolas públicas, privadas e cursinhos pré-vestibulares.
Cursou o mestrado em Sociologia na USP, sob orientação de Aparecida Joly Gouveia, entre os anos de 1977 e 1979. Realizava viagens “bate e volta” entre Presidente Prudente e a capital, nas quais virava a noite lendo a bibliografia do curso. Chegou a viajar de trem, mas nesse período as ferrovias e trens de passageiros foram completamente substituídos pelas rodovias e ônibus. Ainda em 1977, iniciou como professora em tempo parcial na Unesp em Araraquara, então ela e sua família se mudaram para essa cidade.
Em seu mestrado, fez a crítica à educação escolar como reprodução do sistema capitalista e, especialmente, ao vestibular como uma barreira desse sistema para impedir a entrada dos mais pobres nas universidades. Com base em Bourdieu e Passeron, desmontou a meritocracia atribuída a quem ingressava nas universidades e, com o conceito de capital cultural, de Bourdieu – seu grande farol, como costuma dizer – analisou como os vestibulares promoviam uma seleção de privilegiados. Alguns anos mais tarde sua dissertação foi publicada como livro.
No doutorado Dulce aprofundou uma de suas principais contribuições intelectuais ao distinguir os conceitos de ideologia e cultura. Analisou como o processo de industrialização da agricultura impôs uma ideologia urbana nas usinas de álcool e açúcar. Demonstrou como essa ideologia dominante se apropriava da cultura rural para destruí-la, ao passo que o trabalhador da cana era proletarizado e controlado, especialmente pelo serviço social. O intenso esvaziamento do rural como moradia e trabalho, por meio da expropriação da terra e da migração das pessoas para as cidades no período, bem como da transformação de agricultores em trabalhadores volantes, foi a materialização da imposição ideológica engendrada pela produção capitalista, que rebaixou e suplantou boa parte da cultura rural.
No entanto, em seus achados de pesquisa, utilizando redações de crianças rurais como técnica de investigação, analisou como elas negavam tudo o que o senso comum falava sobre o rural: de que as pessoas no meio rural não davam valor e não tinham interesse na Educação, apresentavam mais dificuldade ou que essas crianças não escreviam bem. O uso dessa técnica já indicava sua imensa criatividade e sensibilidade para a apreensão dos fenômenos sociais pesquisados.
Entre 1985 e 1986, Dulce fez pós-doutorado na universidade de Oxford, onde morou por um ano. Lá vivenciou o crescimento da liberdade das mulheres e sua presença em vários espaços sociais: as mulheres dirigiam ônibus e trens, eram juízas e presidiam importantes sindicatos de abrangência nacional. Inspirada por essa experiência, no seu retorno ao Brasil escreveu o livro “Mulher – Homem: o mito da desigualdade”, participou de projetos sobre violência doméstica e de eventos na área de relações de gênero a convite de Heleieth Saffioti.
Também durante a estadia na Inglaterra, suas orientandas brasileiras lhe enviaram por correio recortes de jornais que noticiavam as greves de trabalhadores rurais em Guariba/SP, a efervescência da luta pela terra e a criação de assentamentos rurais na região de Araraquara. Este passaria a ser seu grande tema de pesquisa: a recriação da ruralidade nos assentamentos de reforma agrária. Ao retornar, Dulce se somou a um grupo de pesquisa capitaneado por mulheres que reuniu as professoras Vera Botta, Sonia Bergamasco, Maria Aparecida Moraes, Vera Mariza Costa e Teresinha D’Aquino em torno dos estudos agrários e rurais. Manteve profícuos diálogos também com as professoras Maria Helena Antuniassi e Maria Conceição D’Incao.
Especialmente com Vera Botta, formou o Núcleo de Pesquisa e Documentação Rural (Nupedor) e a revista Retratos de Assentamentos, que se tornaram referência nos estudos rurais brasileiros no interior da Pós-Graduação em Sociologia da Unesp. Desde meados dos anos 2000, o grupo passou a ter sua sede na Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente, na Universidade de Araraquara, onde Dulce mantém vínculo ativo.
Dulce se debruçou especialmente sobre os estudos em educação no grupo de pesquisa e coordenou vários projetos auxílio-integrado e bolsa produtividade CNPq. Porém esta não foi a única área em que empreendeu seus esforços de pesquisa. Passou também aos estudos sobre família, relações de gênero, envelhecimento, infância, memória, meio ambiente e metodologia científica. Nesta área, publicou o seu livro mais importante: “Sociologia Rural: questões metodológicas emergentes”, no qual combate os preconceitos (científicos inclusive) contra o rural e a construção de caricaturas das pessoas do campo nas práticas de pesquisa.
Um de seus ensinamentos mais marcantes é o exercício de construir registros sociológicos em diários de campo: uma lição sobre métodos e técnicas de pesquisa para a compreensão do rural. Sem dúvidas um exercício de reflexividade para os pesquisadores, que implica no cuidado com as formas de se registrar o lugar, as situações e as práticas sociais do outro. Dulce ensina que é necessário um olhar interdisciplinar para se compreender as diferentes dimensões dos agentes e suas posições em um campo social. O livro discute ainda a superação do paradigma cartesiano que separa natureza e sociedade como uma questão central nos estudos rurais.
Dulce orientou inúmeros estudantes de graduação, mais de 45 dissertações e teses em Sociologia, em Educação Escolar e em Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente. Sempre manteve diálogo e colaborou efetivamente com a política local, deu assessoria a movimentos sociais e, especialmente, a filhos de assentados em relação à orientação profissional e escolha da carreira. Em 2014 recebeu o título de Cidadã Araraquarense e, em 2018, o título de Professora Emérita na Faculdade de Ciências e Letras da Unesp/Araraquara.
Faleceu em em 29/01/2023.
Sugestões de obras da autora:
WHITAKER, D. C. A. Sociologia Rural: Questões Metodológicas Emergentes. Presidente Venceslau: Letras a Margem, 2002.
WHITAKER, D. C. A.; BEZZON, L. A. C. A Cultura e o Ecossistema. Reflexões a partir de um diálogo. Campinas: Alínea Editora, 2006.
WHITAKER, D. C. A. Mulher – Homem: O Mito da Desigualdade. São Paulo: Moderna, 1988.
WHITAKER, D. C. A. A Escolha da Carreira e Globalização. São Paulo: Moderna, 1997.
WHITAKER, D. C. A. Ideologia x Cultura: Como Harmonizar esses Conceitos tão Antagônicos? In: SOUZA, E. M. M.; CHAQUIME, L. P.; LIMA, P.G.R. (Orgs.). Teoria e prática nas Ciências Sociais. São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2003, p.13-35.