Ciências Humanas e a Regulamentação da Ética em Pesquisa
As questões éticas estão presentes na ciência há muito tempo, embora elas sejam vistas em perspectivas diferentes ao longo do tempo. Na Sociologia, por exemplo, Max Weber há um século se voltava contra a militância política em sala de aula e defendia como imperativo ético a separação da atividade de professor da do cidadão. Também em outras disciplinas desenvolveram-se sensibilidades que diferenciam entre procedimentos tidos como aceitáveis e aqueles considerados não recomendáveis ou mesmo inaceitáveis. Em anos recentes, em especial com o aumento de testes clínicos, o foco da questão está dirigido preponderantemente para o “objeto” da pesquisa: o participante em quem a experimentação será aplicada. A preocupação com animais objeto de experimentações, embora mais recente, é um corolário desse deslocamento da preocupação.
Foi nesta perspectiva da proteção do “objeto” da pesquisa, e especificamente no contexto das pesquisas das áreas biomédicas, que se desenvolveu uma regulamentação desta problemática no Brasil, especialmente a partir dos anos 1990. O Conselho Nacional de Saúde, uma instância de controle social vinculada ao Ministério da Saúde, elaborou um conjunto de resoluções para regrar o tema. A resolução mais conhecida foi a 196/96, que definia que todas as pesquisas que envolvessem seres humanos deveriam ser previamente aprovadas por um comitê de ética em pesquisa. A atividade desses comitês é voluntária e foi estruturada nos moldes de um controle social.
Houve muitas controvérsias sobre o que exatamente significaria envolver seres humanos; da amplitude dessa interpretação dependeria quais projetos deveriam ser submetidos à análise prévia dos comitês de ética e quais não. Como a submissão envolve procedimentos burocráticos, leva tempo e, como um controle externo, pode suscitar constrangimentos em uma atividade muito ciosa de sua autonomia, como o é historicamente a pesquisa, não foram poucos os conflitos, em especial em áreas das ciências humanas que fazem experimentação ou que têm uma interface intensa com a área biomédica.
Recentemente aquela regulamentação foi substituída pela resolução 466/2012, que contém algumas mudanças, mas segue em linhas gerais toda a lógica da anterior. Uma novidade relevante é a previsão de que “as especificidades éticas das pesquisas nas ciências sociais e humanas e de outras que se utilizam de metodologias próprias dessas áreas serão contempladas em resolução complementar, dadas suas particularidades”. Essa previsão contribuiu para catalizar discussões e resultou, em meados de 2013, na criação de um Grupo de Trabalho vinculado à Comissão Nacional de ética em Pesquisa (Conep) destinado a propor uma regulamentação para a questão para as áreas humanas e sociais. A SBS, junto com outras 17 entidades nacionais, está representada nesse GT, que vem se reunindo em torno de duas vezes por mês.
A nossa participação ali não é de todo pacífica. De saída há uma questão de competência: aparentemente não compete ao Conselho Nacional de Saúde essa atividade. Foi tentado por alguns colegas, em especial da Antropologia, dialogar com o Ministério da Ciência e Tecnologia, para ancorar ali alguma forma de equacionar o tema para nossas áreas, mas as tratativas não progrediram. Permanecer distante seria uma possibilidade, mas ela não evitaria que essa regulamentação fosse elaborada. Por isso a SBS se faz representar e busca influir no resultado.
Como fonte de orientação e inspiração têm servido regulamentações de países como Grã-Bretanha, Canadá e Austrália, e também discussões acadêmicas. Isso tem ajudado a fortalecer a lógica específica das áreas humanas e sociais em substituição à preponderância anterior das preocupações advindas de pesquisas biomédicas.
As discussões e negociações seguem e têm, por ora, caráter de proposição. Mesmo assim, algumas questões polêmicas já foram equacionadas. Ficou esclarecido que a resolução em elaboração será específica para as áreas humanas e sociais e não apenas complementar àquela das áreas biomédicas; será o conteúdo e a metodologia do projeto e não a área do conhecimento dos pesquisadores que definirão qual legislação se aplica. O marco geral mais amplo permanece como está, pelo que não se amplia o escopo dos projetos obrigados a uma aprovação prévia por comitê de ética em pesquisa.
Os projetos que forem submetidos ao sistema serão avaliados imediatamente on line quanto ao seu potencial de risco para as pessoas envolvidas; dessa avaliação dependerá o rito que o projeto seguirá. Estima-se que mais de 90% dos projetos submetidos terão sua liberação em questão de algumas horas, desde que toda a documentação necessária esteja anexada ao processo. Outros serão encaminhados a um parecerista membro do Comitê de ética pertinente e poderão ter sua apreciação concluída em poucos dias. Quando o projeto envolver riscos mais sérios para qualquer dos participantes, se envolver populações com restrições de sua autonomia ou protegidas por normas específicas, como a população indígena, então haverá análise mais detalhada em plenário ou mesmo por um comitê mais especializado. Também está sendo explicitado que os comitês de ética não terão competência para interferir em questões metodológicas dos projetos, deixando esta apreciação para as comissões científicas de cada organização.
Atualmente trabalha-se com uma previsão de que até final de outubro esteja pronta a minuta da resolução. Ela será discutida tanto pelas entidades representadas no GT como pelos atuais membros do sistema Conep, para então ser disponibilizada para consulta pública.
No encontro anual da Anpocs está sendo previsto um espaço para a discussão desta questão. Lá – ou mesmo através de outros canais – as pessoas interessadas podem expressar-se sobre a questão.
Emil A. Sobottka
Professor Adjunto da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Secretário Geral da SBS
Carlos Benedito Martins
Professor Titular da Universidade de Brasília, Vice-Presidente da SBS
Regulamentação da Ética em Pesquisa
Os textos abaixo tratam de nossa participação no debate que vem sendo travado junto à Comissão Nacional de ética em Pesquisa (Conep), instância do Conselho Nacional de Saúde sobre a regulamentação da ética em pesquisa na área de humanidades. Durante a maior parte da história da ciência as questões relativas à ética em pesquisa foram pouco reguladas. A situação veio a se alterar somente a partir dos últimos vinte anos do século passado, quando grupos de pesquisadores passaram a denunciar de forma sistemática o uso de seres humanos em pesquisas que colocavam vidas em risco, sem que os participantes ao menos fossem informados sobre os perigos a que eram submetidos.
A institucionalização de órgãos e regras normatizadoras de pesquisas com seres humanos assumiu trajetórias diversas em diferentes países, mas, assim como no Brasil, ela esteve frequentemente ligada à área de ciências da vida e, particularmente, às ciências da saúde. No Brasil a Conep foi criada em 1996. Sua localização institucional fez com que o regramento construído fosse direcionado principalmente para as questões éticas envolvidas em pesquisas da área médica. Isso criou dilemas importantes para os pesquisadores da área de ciências humanas. Pesquisamos seres humanos, mas nossas pesquisas, à exceção daquelas que utilizam certos tipos de métodos experimentais, raramente colocam em risco os informantes pesquisados. No entanto, o regramento e as instâncias de regulação criadas para fazê-lo efetivo tornaram-se um obstáculo desnecessário à pesquisa social. Em muitos casos pesquisadores de nossas áreas são obrigados a se submeter à avaliação de investigadores das áreas de ciências da vida, que chegam a questionar até mesmos os métodos utilizados e aprovados nos órgãos acadêmicos do campo das humanidades.
A SBS ao lado de outras entidades representativas de profissionais da área de humanidades vem discutindo com a Conep e com o Ministério de Ciência e Tecnologia formas de desvincular-se desse modelo de regulação institucional da ética em pesquisa. Isso porque o mesmo é dominado pelos padrões construídos no âmbito da pesquisa em saúde e não considera adequadamente as diferenças fundamentais entre os dois tipos de investigação, no que tange a seus objetivos e limites de intervenção sobre corpos e mentes humanas. Nunca é demais lembrar, que não defendemos a ausência de parâmetros morais e éticos em pesquisas na área de humanidades. Pelo contrário, advogamos que se tornem mais claros e rígidos, mas em acordo com a natureza de nossas pesquisas e desde que sejam estabelecidos por nossos pares.
Os dois textos aqui apresentados discutem os limites e os avanços até agora conquistados por esse esforço de modificação do regramento sobre ética em pesquisa com seres humanos. Assim, esperamos estimular o engajamento dos colegas nessa luta, pois o enquadramento inadequado de nossas pesquisas em modelos teórico-epistemológicos e metodológicos estranhos à área de humanidades já está produzindo efeitos deletérios para a criatividade, liberdade e capacidade crítica de muitas investigações.