Por Rodrigo Constante Martins (UFSCar)
Wendell Ficher Teixeira Assis (UFAL)
Beatriz Medeiros de Mello (IFAL)
Tainá Reis (UFSCar)
Neste post, os autores revelam como na esteira de expansão da monocultura, diferentes regiões do país tiveram a história política e agrária marcadas pela força social da casa grande, do latifúndio canavieiro, das usinas e, contemporaneamente, do setor sucroalcooleiro.
Na historiografia brasileira, a cultura da cana-de-açúcar já foi abordada de diversas maneiras. Sistemas próprios de relações e hierarquias marcaram tanto o “ciclo da cana-de-açúcar”, no contexto colonial do século XVI ao XVIII, quanto a plantation açucareira do século XIX e a chamada “modernização conservadora” da agricultura nacional, da segunda metade do século XX. Na esteira de expansão da monocultura, diferentes regiões do país tiveram a história política e agrária marcadas pela força social da casa grande, do latifúndio canavieiro, das usinas e, contemporaneamente, do setor sucroalcooleiro.
O foco do estudo “Nas franjas do progresso: efeitos socioambientais da produção canavieira nos estados de Alagoas e de São Paulo” é o debate sobre as continuidades e as transformações recentes no universo canavieiro no Brasil. Mais precisamente, o projeto tem como objetivo investigar as consequências sociais e ambientais da atuação do setor sucroalcooleiro nos estados de São Paulo e Alagoas, com ênfase nas situações de vulnerabilidades socioambientais. O estudo observa, sobretudo, as consequências dos efeitos socioambientais produzidos pelo agronegócio canavieiro para a saúde, relações e reprodução social dos camponeses e trabalhadores assalariados rurais, atentando, também, para a questão de gênero. Ademais, a atuação do Estado é abordada em termos de resultados das recentes reformas (Trabalhista e Previdenciária) e alterações em políticas públicas para a população que trabalha/vive no campo. A pesquisa articula-se em torno de três eixos: a) as transformações na estrutura agrária e suas consequências para a reprodução social camponesa; b) as transformações na dinâmica de realização do trabalho assalariado rural; e, c) as consequências ambientais da produção sucroalcooleira, com ênfase nos impactos sobre a diversidade dos usos e acessos aos recursos naturais.
A proposta foi gestada no biênio 2019-2020, tendo sido implantada em 2021, graças aos financiamentos obtidos junto à Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (FAPESP) e da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de Alagoas (FAPEAL). O projeto envolve grupos de pesquisa de diferentes instituições. Integram a equipe pesquisadoras e pesquisadores do Departamento de Sociologia, do Programa de Pós Graduação em Sociologia e do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar); do Instituto de Ciências Sociais e do Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL); do Instituto Federal de Alagoas (IFAL), e; do Departamento de Ciências Geográficas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Além disso, vem contribuindo para formação de quadros técnicos e expertise acadêmica no campo das ciências sociais rurais, com destaque para a realização de teses, dissertações e monografias conduzidas por estudantes de graduação e de pós-graduação nas diferentes instituições vinculadas à pesquisa.
O projeto está voltado para dois importantes cenários de conflitos agrários entre o setor sucroalcooleiro e as comunidades camponesas em São Paulo e em Alagoas. O Estado de São Paulo mantém, desde a década de 1970, o maior volume de produção de cana de açúcar no país, sendo atualmente responsável por cerca de 60% do cultivo desta cultura em território nacional. O estado de Alagoas, cujos volumes de cultivo de cana-de-açúcar se aproximavam dos números do estado de São Paulo até a década de 1990, enfrentou retração da produção desde o início dos anos 2000, mas ainda mantém grande relevância na contração de usinas da região nordeste do país.
Figura 1. Localização e concentração das usinas de cana-de-açúcar e bioetanol no Brasil
Os territórios de estudo abrangem duas das principais regiões de atuação do setor sucroalcooleiro destes estados: a zona da mata alagoana (região leste) e a região administração de Ribeirão Preto (região centro-leste). As regiões destacam-se enquanto espaços significativamente apropriados e transformados pela lógica do setor e possuem algumas características comuns, produto do contexto econômico aproximado, bem como particularidades que expressam o modo como capital e trabalho se organizam no território.
Figura 2. Regiões de estudo nos estados de Alagoas e São Paulo
Do ponto de vista metodológico, a pesquisa adota procedimentos mistos de pesquisa social, com técnicas qualitativas e quantitativas de investigação. O levantamento e a análise de dados secundários de diferentes fontes (IBGE, IPEA, DIEESE, Secretarias de Meio Ambiente, Comitês de Bacias Hidrográficas, entre outras) são combinados com a realização de entrevistas semiestruturadas com representantes de usinas-agroindústrias, proprietários de terras, camponeses e representantes de assentamentos rurais e da agricultura familiar, bem como de movimentos sociais rurais e de movimentos ambientalistas. Além disso, o estudo ainda compreende a realização de um amplo levantamento documental, que alcançará bases com informações sobre estrutura agrária, trabalho rural, economia e meio ambiente.
Nesta primeira etapa do estudo, iniciada em fevereiro último, o confronto de algumas variáveis relativas à estrutura agrária e ao meio ambiente sinaliza no território paulista, ao longo dos últimos vinte anos, níveis importantes de vulnerabilidade da agricultura familiar fixada em assentamentos rurais do estado, com repercussões particularmente sensíveis nas relações deste grupo social rural com as políticas públicas e as condições de sustentabilidade ambiental. Conflitos entre os assentamentos rurais e a agroindústria canavieira se intensificaram neste período, com tentativas de arrendamento pelas usinas de terras destinadas à reforma agrária e a pressão de movimentos de campo pela integridade socioambiental deste territórios – integridade ainda mais comprometida no atual contexto pandêmico.
Como resultado desta primeira incursão, o controle social do acesso e da gestão das águas regionais pelas usinas também pôde ser identificado. No debate público-ambiental do estado de São Paulo, este controle mobiliza gramáticas de justificação baseadas em imperativos da importância econômica do setor, com a mobilização recursiva de seu papel para a produção de riqueza nacional. Outrossim, esta gramática da justificação mercantil também é mobilizada para relativizar os impactos das queimadas nos canaviais – efeitos colaterais classificados como necessários em um momento em que o setor busca se adequar a protocolos ambientais pactuados nacional e internacionalmente.
No eixo sobre as transformações do mundo do trabalho, a análise em curso de processos judiciais trabalhistas do período de 2015 a 2020 em dois municípios do estado de São Paulo revela a frequência de temas da legislação desrespeitados no espaço produtivo canavieiro (não pagamento de horas-extra, hora in itinere, adicional de insalubridade, dano moral, doença ocupacional etc.). Cabe observar os impactos da Reforma Trabalhista de 2017 no conteúdo das ações judiciais, dada a alteração em pontos fundamentais sobre o acesso à Justiça do Trabalho. Os meandros da Reforma da Previdência também revelam o enfraquecimento da proteção social de trabalhadores rurais. Com a modificação das regras previdenciárias, a aposentadoria rural só se aplica a casos de trabalhadores rurais não assalariados. A contribuição previdenciária por parte do empregador enquadra o trabalhador rural assalariado nas mesmas regras do trabalhador urbano. De modo preliminar, entende-se que as reformas contribuíram sobremaneira para a maior vulnerabilidade do trabalhador rural.
Em Alagoas, as entrevistas conduzidas com empresários do setor agropecuário e agentes do Estado evidenciaram que a produção de cana-de-açúcar vem dividindo cada vez mais o território com a expansão do gado e do eucalipto, reduzindo o espaço social do trabalho assalariado rural e do campesinato, bem como transformando as dinâmicas de acumulação no setor. O cenário de conflitos fundiários é ainda tensionado por algumas políticas em tramitação que caminham no sentido de ampliação da atuação da grilagem de terras (PL 510/2021) e o Programa Titula Brasil, que avança pelo Estado dividindo opiniões entre movimentos e sindicatos rurais.
Outro foco de análise no contexto alagoano tem sido as repercussões e os efeitos negativos dos pesados cortes realizados nas políticas de compras públicas (particularmente, na Política de Aquisição de Alimentos – PAA; e na Política Nacional de Alimentação Escolar – PNAE) na renda familiar e nas condições de reprodução social no campo. Ademais, as respostas erráticas do Estado ao contexto da pandemia de COVID-19 têm acentuado a situação de vulnerabilidade, na medida em que não há garantia de renda mínima e condições de trabalho e financiamento para manutenção da produção da agricultura. Nesse contexto, novas questões estão sendo enfrentadas no âmbito da pesquisa, sobretudo, as que dizem respeito ao aumento das tensões nos acampamentos, assentamentos e comunidades rurais, que reverberam no incremento dos índices de violência doméstica, feminicídio, suicídio e tentativas de suicídios.
No emprego dos instrumentos de pesquisa, a situação de pandemia demandou o uso de novas estratégias nas duas regiões de estudo, reorientando as entrevistas para o universo de interação virtual. Contudo, optou-se por não se empregar esse mesmo procedimento no que concerne às populações rurais, mantendo-se, assim, o adiamento dos trabalhos de campo nos assentamentos, acampamentos e comunidades.
É fato que os desafios a serem enfrentados na condução da pesquisa são grandes e se avolumaram em virtude do turbilhão pandêmico. No entanto, há a motivação ímpar de se captar in loco e no calor dos acontecimentos, os desdobramentos e efeitos combinados das crises econômicas, política e de saúde pública, que recaem sobre contingentes populacionais já altamente subalternizados e vulneráveis, mas que ainda ousam ser o bastião de resistência às práticas expropriatórias e monoculturais.