O crescimento do desalento no Brasil: reflexões sobre a juventude no atual mundo do trabalho

Publicado em 26 de novembro de 2021

Por Aline Suelen Pires (UFSCAR)

Neste post, Aline Pires discute como a categoria desalento tem sido mobilizada para descrever as novas dinâmicas do mundo do trabalho e como elas atingem de modo específico e intenso os mais jovens.

Fonte: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2019/03/ibge-desemprego-sobe-brasil-bolsonaro.html / Imagem: Mídia Ninja.

Na canção de Chico Buarque e Vinicius de Moraes, sofre de “desalento” o homem apaixonado que, arrependido e desorientado, clama pela volta da mulher amada[1]. No dicionário, a palavra “desalento” é definida como “estado de quem se mostra sem alento”; “desânimo”, “abatimento”, “esmorecimento”. Outros sinônimos seriam ainda: “prostração”, “consternação”, “melancolia”.

No entanto, esse termo tem sido muito presente no noticiário nos últimos tempos, particularmente quando são apresentados os dados sobre desemprego. Neste caso, a palavra não se refere a um “estado de espírito” – embora guarde alguma relação com este sentido na prática –, mas trata-se de uma categoria utilizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), segundo o qual os desalentados

são pessoas que gostariam de trabalhar e estariam disponíveis, porém não procuraram trabalho por acharem que não encontrariam. Vários são os motivos que levam as pessoas de desistirem de procurar trabalho, entre eles: não encontrar trabalho na localidade, não conseguir trabalho adequado, não conseguir trabalho por ser considerado muito jovem ou idoso, ou não ter experiência profissional ou qualificação.[2]

O IBGE, ao produzir as estatísticas de emprego/desemprego, divide a população em idade de trabalhar (14 anos ou mais), em dois grupos: 1) pessoas na força de trabalho; 2) pessoas fora da força de trabalho. Faremos algumas considerações a partir disso (ver figura 1).

Figura 1 – Divisões do mercado de trabalho, segundo o IBGE

Fonte: Site do IBGE.[3]

No primeiro bloco, estão os ocupados e os desocupados. Os desocupados, que popularmente entendemos como “desempregados” são as pessoas que não estão trabalhando, mas estão procurando trabalho e disponíveis para assumir uma vaga ou oportunidade. Já os ocupados incluem todas as pessoas que estão trabalhando de alguma forma (empregados com ou sem carteira assinada, trabalhadores por conta própria, empregadores, trabalhadores domésticos com ou sem carteira e trabalhadores familiares auxiliares sem remuneração). Assim, o grupo dos “ocupados” comporta situações de trabalho muito distintas, incluindo trabalho formal, informal e até não remunerado. Apenas para ilustrar, do total de 89 milhões de pessoas ocupadas atualmente no país, 36,3 estão em atividades informais[4]. Grande parte daqueles que estão trabalhando possuem rendimentos baixos, enfrentam condições muito precárias de trabalho e não realizam uma atividade que traga satisfação pessoal.

No segundo bloco, isto é, no grupo das pessoas fora da força de trabalho, está incluída a força de trabalho potencial – mulheres que cuidam da casa e não trabalham fora, adolescentes em idade escolar e outras pessoas que não têm condições de trabalhar – e o grupo de pessoas fora da força de trabalho potencial, formada por aqueles e aquelas que buscaram trabalho no período pesquisado, mas não estavam disponíveis, e, o oposto, pessoas que não buscaram trabalho, mas estavam disponíveis. Nesta última condição é que estão inseridos os desalentados, ou seja, estamos falando de um grupo que sequer consta nas estatísticas de desocupação. Mas, afinal, quem são essas pessoas? Por que são cada vez mais numerosas nos levantamentos e hoje alcançam o número de cerca de 5,6 milhões no Brasil? Por quais razões deixam de procurar trabalho?

Em primeiro lugar, devemos lembrar que, nas últimas décadas, tem ocorrido um intenso processo de precarização do trabalho e retirada de direitos sociais. Cada vez mais, condições de trabalho estáveis e protegidas dão lugar a atividades temporárias, de tempo parcial, terceirizadas e marcadamente informais. A desregulamentação do trabalho, uma das orientações e efeitos do neoliberalismo, faz com que os riscos sejam transferidos para os trabalhadores, que assumem o peso e os custos das oscilações econômicas. O desemprego é uma condição crescente e, cada vez mais, enfrentada em diversos momentos da vida pelos sujeitos, que são responsabilizados por sua empregabilidade e devem “se virar”, de acordo com uma lógica que estimula a responsabilidade individual e o empreendedorismo de si.

Os mais jovens são, em geral, o grupo mais afetado pelo desemprego, pela informalidade e estão mais presentes em atividades instáveis e inseguras. Segundo relatório da OIT publicado no início de 2020, portanto antes da pandemia do coronavírus, já havia 9,4 milhões de jovens desempregados na América Latina e no Caribe, 23 milhões de jovens não estavam estudando ou trabalhando e para mais de 30 milhões só era possível se inserir em empregos informais[5]. Segundo o IBGE, a taxa de desocupação no segundo trimestre de 2021 atingiu 14,1% no Brasil. De acordo com a OIT, no início do mesmo ano, a taxa de desemprego juvenil atingiu 23,8% na América Latina e no Caribe. O número de trabalhadores com até 24 anos que desistiram de procurar emprego passou de 600 mil, em 2014, para 1,8 milhão em 2018 no Brasil[6].

Entre as razões para desistir de procurar um emprego, estariam a dificuldade de conseguir um trabalho adequado, não ter experiência profissional ou a qualificação solicitada, ser considerado muito jovem ou muito idoso ou acreditar que não há trabalho na localidade. Porém, é preciso contextualizar o fenômeno e compreender que o chamado “desalento” se agrava com a intensificação e alargamento do trabalho precário, em especial para os mais jovens (Silva, 2016). Nesse sentido, como aponta Krein (2018, p. 98), grande parte das atividades oferecidas são pouco edificantes, “desprovidas de conteúdo que dê sentido à vida”, e, portanto, tão somente um meio para obter renda. Percursos marcados por tentativas frustradas e experiências de discriminações sofridas no mercado de trabalho e por parte de empregadores também aparecem nos relatos de jovens que desistiram de procurar trabalho (Jardim, 2011).

Jardim (2011) aponta que há um desencontro entre os sentidos atribuídos pelos adultos e pelos jovens ao avaliarem o trabalho. Enquanto os mais jovens ressaltam valores de realização pessoal, aprendizado constante, possibilidade de crescimento (pessoal e na carreira) e qualidade do ambiente de trabalho, entre os mais velhos prevalecem as noções de dignidade e provisão das necessidades familiares. Essa mudança nos valores e nas representações do trabalho vão justamente ao encontro de uma significativa mudança na cultura do trabalho que tem ocorrido nas últimas décadas, caracterizada pela individualização crescente e pelo mercado como balizador das relações sociais (Lima, 2010).

Como uma parcela significativa dos jovens só vai conseguir acessar trabalhos em condições precárias, com baixos rendimentos, repetitivos e/ou temporários – isso quando consegue uma oportunidade –, muitos acabam desistindo de procurar emprego, considerando também que essa busca envolve custos, sobretudo em termos de deslocamento para aqueles que vivem em periferias e/ou distantes dos centros urbanos. Apenas a título de exemplo, alguns dias antes da aprovação da Reforma Trabalhista de 2017, um importante grupo empresarial, ao qual pertencem franquias restaurantes e lanchonetes, já anunciava vagas de trabalho por um salário de 4,45 reais por hora para trabalhar aos sábados e domingos, o que resultaria em um ganho de R$ 31,90 em um final de semana, descontados os custos médios de deslocamento[7], possibilidade aberta com a nova regulamentação do trabalho intermitente. Essa situação de frágil proteção social poderia ter sido ainda agravada, especificamente para os jovens, caso o texto da Medida Provisória 1045 tivesse sido aprovado[8].

Ao mesmo tempo, nas últimas décadas, a juventude passa a representar o modelo cultural do presente. Mais que uma classe de idade, passa a ser mais reconhecida a partir de valores e estilos de vida a ela associados e menos enquanto um grupo etário específico (Peralva, 1997). Assim, no que se refere ao mundo do trabalho, valores tradicionalmente associados ao universo juvenil, como o gosto pelo risco, a criatividade, a flexibilidade, a inovação, sobretudo incorporados e difundidos em categorias como “geração Y” e “millennials”, vão justamente ao encontro do perfil do trabalhador ideal dos tempos flexíveis, e, nesse sentido, todos devem ser como os jovens, a despeito da idade (Lima; Pires, 2017). No entanto, é uma fatia minoritária da juventude, aquela que dispõe de meios materiais, capital social e cultural, que consegue alcançar esse ideal e se inserir em atividades de trabalho verdadeiramente criativas e valorizadas.

Embora o contexto, de forma geral, seja muito desfavorável para os trabalhadores, sobretudo os mais jovens, estes são, muitas vezes, estigmatizados, como se se recusassem ao trabalho, o que se aplicaria essencialmente aos mais pobres. A ampla utilização da categoria “nem nem”, por exemplo, acaba por reforçar tais preconceitos. A juventude nem nem seria formada por aqueles que nem estudam, nem trabalham. No entanto, esta categoria se constrói a partir de um referencial importado de outros contextos e carrega um julgamento moral, como se os jovens que estão nessa condição, em geral mais pobres e menos escolarizados, com destaque para as mulheres, não quisessem trabalhar, o que responsabiliza exclusivamente os indivíduos e oculta desigualdades estruturais de acesso à educação e trabalho (Corrochano; Abramo H.; Abramo L., 2017).

Essas representações, atravessadas pelo recorte de classe, também são reforçadas em algumas declarações recentes de membros do atual (des)governo. Por mais de uma vez, Bolsonaro defendeu publicamente a ideia de que as crianças não deveriam ser impedidas de trabalhar[9]. Já Paulo Guedes, em uma reunião do Conselho de Saúde Suplementar, ao comentar o programa Fies, tratou como absurda a entrada do filho de um porteiro no Ensino Superior[10]. Assim, fica muito evidente que, aos olhos parte da sociedade que apoiou e continua apoiando o grupo no poder, crianças e jovens pobres não devem prosseguir nos estudos e devem entrar no mercado de trabalho o mais cedo possível, em atividades precárias, de baixos rendimentos e pouco valorizadas socialmente.

Portanto, a questão que fica é: o que acontecerá, sobretudo para os mais jovens, se as condições de trabalho no país continuarem a seguir as atuais tendências, incluindo os crescentes níveis de desalento? Assim, é necessário visibilizar e refletir criticamente sobre as condições estruturais que geram esse estado de coisas e, principalmente, sobre os discursos em torno do empreendedorismo, da meritocracia e do individualismo que marcam a ordem atual, fornecendo ferramentas úteis para a pensarmos em saídas, tanto em termos de políticas públicas, quanto para a elaboração de visões de mundo alternativas.

Referências 

CORROCHANO, Maria Carla; ABRAMO, Helena Wendel; ABRAMO, Laís Wendel. O trabalho juvenil na agenda pública brasileira: avanços, tensões, limites. Revista Latinoamericana de Estudios del Trabajo, v. 22, n. 36, p. 135-169, 2017.

JARDIM, Fabiana A. A. Chaves inúteis? Transformações nas culturas do trabalho e do emprego da perspectiva de experiências juvenis de desemprego por desalento. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 16, n. 31, p. 493-510, 2011.

KREIN, José Dari. O desmonte dos direitos, as novas configurações do trabalho e o esvaziamento da ação coletiva: consequências da reforma trabalhista. Tempo social, São Paulo, v. 30, n. 1, p. 77-104, abr. 2018.

LIMA, Jacob Carlos. Participação, empreendedorismo e autogestão: uma nova cultura do trabalho? Sociologias, Porto Alegre, v. 12, p. 158-198, n. 25, dez. 2010.

LIMA, Jacob Carlos; PIRES, Aline Suelen. Youth and the new culture of work: considerations drawn from digital work. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 7, n. 3, p. 773-797, 2017.

PERALVA, Angelina. O jovem como modelo cultural. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n. 5/6, p. 15-24, 1997.

SILVA, Mariléia Maria da. Geração à deriva: jovens nem nem e a surperfluidade da força de trabalho no capital-imperialismo. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 25, n. 58, p. 119-136, jan./abr. 2016.

[1] Canção de Chico Buarque e Vinícius de Moraes, que foi composta em 1970 e lançada no álbum “Construção”, de Chico Buarque, em 1971.

[2] Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php> Acesso em: 05/11/2021.

[3] Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php> Acesso em: 05/11/2021.

[4] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/10/emprego-informal-dobra-e-ioio-na-renda-empobrece-brasileiro.shtml?origin=folha Acesso em: 13/11/2021.

[5] Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_738633/lang–pt/index.htm Acesso em: 11/11/2021.

[6] Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,desalento-triplica-entre-os-mais-jovens,70002773749 Acesso em: 24/04/2021.

[7] Notícia de outubro de 2017, disponível em: https://veja.abril.com.br/economia/reforma-permite-contratacao-de-funcionario-por-r-426-a-hora/. Acesso em 17 jul. 2018.

[8] Sobre este tema, ver texto de Maria Carla Corrochano publicado em 27 de agosto neste blog: https://www.sbsociologia.com.br/pandemia-e-condicao-juvenil-o-futuro-tambem-e-o-agora Acesso em 18/11/2021.

[9] Disponível em: https://exame.com/brasil/deixa-a-molecada-trabalhar-diz-bolsonaro-ao-defender-trabalho-infantil/ Acesso em 10/11/2021.

[10] Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2021/04/30/paulo-guedes-critica-o-fies-e-diz-que-filho-de-porteiro-tirou-zero-na-prova-e-conseguiu-financiamento.ghtml Acesso em: 10/11/2021.

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