O Assassinato de Moïse e as expressões do racismo no Brasil

Publicado em 18 de abril de 2022

Por Andrea Lopes da Costa (UNIRIO/Coordenadora do CP Sociologia das Relações étnico-raciais da SBS)

Neste post, Andrea Lopes discute como o assassinato de Moïse, em um dos metros quadrados mais caros do Rio de Janeiro, faz parte das estatísticas recorrentes de assassinatos de jovens negros, ao mesmo tempo em que gera comoção pela sua brutalidade.

Fonte: arquivo pessoal da autora

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

No final de janeiro de 2022, as redes sociais de organizações vinculada ao ativismo negro denunciavam que, alguns dias antes, Moïse Mugenyi Kabagambe, um imigrante congolês radicado no Brasil, havia sido assassinato na Praia da Barra da Tijuca (RJ), sem que nenhuma notícia houvesse sido divulgada oficialmente pela grande mídia.

Em 24 de Janeiro, mais precisamente, ao cobrar por 200 reais referentes a duas diárias não pagas por serviços prestados como atendente no quiosque Tropicália, Moïse foi imobilizado e, sem que houvesse possibilidade de defesa, agredido até a morte com pedaços de madeira e um taco de beisebol.

De acordo com relatos de testemunhas, a guarda municipal se recusou a atender ao chamado para impedir as agressões. A polícia militar, por sua vez, chegou somente depois que o Serviço de Atendimento Médico Urgência (SAMU) se encontrava no local[1]. Conforme imagens das câmeras de vídeo divulgadas posteriormente, entre o assassinato e a chegada do atendimento de emergência, o corpo ficou abandonado por horas ao lado do quiosque, que manteve-se funcionando normalmente.

A informação, sobre a morte, a princípio circunscrita às redes do ativismo digital, circulou rapidamente, levando à ampla veiculação do caso pela grande imprensa, com repercussão nacional e internacional. Como reação, no dia 05 de fevereiro foram realizadas, em vários estados, manifestações para a conclamação por justiça para Moïse, a principal delas ocorrendo na orla da Barra da Tijuca, em frente ao quiosque Tropicália.

Foto: manifestação após assassinato de Moise. Fonte: arquivo pessoal da autora.

 

 

Durante as manifestações, várias organizações do ativismo negro, representantes da política institucional e movimentos religiosos, além de familiares de Moises, denunciavam práticas sistemáticas de racismo, enquanto lembravam nomes de outras pessoas igualmente vítimas da violência letal. Entre esses, um em específico: Durval Teófilo Filho. Em 02 de fevereiro, dois dias antes das manifestações, Durval, ao chegar em casa, vindo do trabalho, em um condomínio no município de São Gonçalo (RJ), foi alvejado por um vizinho, sargento da marinha, enquanto tentava abrir seu portão[2],. O vizinho, que em um primeiro momento foi indiciado por homicídio culposo (posteriormente modificado para homicídio doloso), afirmou ter acreditado se tratar da iminência de assalto.

Moïse e Durval são nomes em uma longa lista de mortes, cujos personagens centrais têm como principal característica a cor da pele. Os dados são inequívocos: as chances de que uma pessoa negra seja vítima de homicídio no Brasil são 2,6 vezes maiores que as dos brancos. Somente em 2020, os negros foram 76,2% das vítimas de homicídio no país[3]. Na mesma direção, a literatura que se dedica ao estudo do fenômeno da violência letal tende a mostrar que, a partir de uma perspectiva de gênero, as mulheres negras são as maiores vítimas de feminicídio, enquanto homens negros são as maiores vítimas da violência de Estado, impetrada por agentes de segurança pública, em um racismo institucional.

Os casos de Moïse e Durval explicitam que a violência contra pessoas negras excede as esferas do mundo doméstico ou da ação institucionalizada do Estado, ainda que nem sempre seja assumida como uma expressão do racismo: na delegacia, um dos acusados pelo homicídio de Moïse afirmou ter a mesma cor da vítima, e não seria, portanto, racista; outro declarou-se candomblecista, religião de pessoas pretas, o que de acordo com ele, justificaria não ter sido um crime motivado por raça[4]. O sargento da marinha que atirou em Durval, foi categórico: “a localidade é perigosa e costuma ter muitos assaltos”[5]. Reportagem publicada pelo jornal “Folha de São Paulo”, em 04 de Abril de 2022, ao apresentar dados do levantamento realizado em parceria por Aláfia Lab e Zygon AdTech, revelou que menos de 10% das postagens analisadas no Twitter e no Youtube associaram o crime ao racismo[6].

Assim, mortes violentas de pessoas negras são frequentemente associadas à trágicos equívocos, circunstancialidade, vulnerabilidade da vida nas periferias, exposição à criminalidade, condições socioeconômicas, entre outros, em uma estratégia que oblitera a raça como um determinante estrutural para todos esses fatores. Neste sentido, a morte de Durval por ter ocorrido em um município considerado um dos mais violentos do estado do Rio de Janeiro, pôde ser apresentada como reflexo das condições de insegurança vivenciadas cotidianamente.

Moïse, por outro lado, não foi morto em uma favela ou periferia da cidade, mas sim na Barra da Tijuca, bairro localizado na Zona Oeste do município que, desde a década de 1970, vem sendo alvo de grande especulação imobiliária. A Barra, informalmente chamada, é frequentemente apresentada como uma alternativa ao crescimento desordenado da Zona Sul do Rio, aliando qualidade de vida a um alto padrão econômico, o que é evidenciado nos nomes de seus primeiros condomínios: “Nova Ipanema” e “Novo Leblon”.

No bairro que abriga uma série de empreendimentos superlativos, como shoppings, casas de shows e condomínios fechados com mansões e onde se estabeleceu uma elite chamada de “emergente” (LEMOS, 2004), formada sobretudo por “executivos, por pequenos e médios empresários do setor formal e informal, atletas de destaque, artistas de televisão, dirigentes esportivos etc.” (LEMOS, 2004, P.06), a morte de um imigrante congolês expôs a densidade com a qual o racismo se estrutura no Brasil.

É o racismo que informa a hierarquização do estrangeiro e a produção de xenofobia seletiva (FAUSTINO E OLIVEIRA, 2021) direcionada para indivíduos vindos, sobretudo, dos países localizados em África. Assim, o caso de Moïse, não obstante o fato de viver no Brasil desde os 14 anos, mostra como o tratamento diferenciado ao imigrante foi mantido como uma das heranças do projeto colonial sob o qual a nação se constituiu.

Se no pós-abolição as políticas de imigração adotadas, ainda sob a égide do racismo científico, prestavam-se à eleição de um padrão de imigrante desejável que atendesse a um projeto de embranquecimento da população (RAMOS, 1996; SEYFERTH, 1996), o xeno-racismo ou a xenofobia racializada (FAUSTINO E OLIVEIRA, 2021), vivenciados contemporaneamente, revelam que a hierarquização e distinção entre os que fizeram os fluxos sul-sul e norte-sul mantém-se, e são observáveis, sobretudo, no tratamento dispensado aos diferentes grupos de imigrantes, nas ofensas preferenciais dirigidas à tipos específicos de estrangeiros, nas piores condições de vida e de sub-empregabilidade enfrentadas.

Neste sentido, também é o racismo que justifica a vulnerabilidade estrutural de pessoas negras diante da precariedade das relações de trabalho. Moïse foi agredido ao cobrar 200 reais referentes a duas diárias atrasadas a serem pagas pela realização de um trabalho sem estabilidade, sem direitos e insuficientemente remunerado. Negros formam a maior parte dos trabalhadores com maior situação de precariedade e vulnerabilidade Mulheres negras, em especial, encontram desvantagens específicas: sub-representadas nos processos de inserção e ascensão no mercado de trabalho formal e super-representadas como empregadas domésticas, desempenhando atividades simbolicamente desvalorizadas e subalternizadas

Tal situação estrutural tende a ser agravada por fatores conjunturais, como crises econômicas e, mais recentemente, pela pandemia de covid-19 que contrapôs a urgência do isolamento à necessidade de manutenção de emprego e ocupação. A nota técnica 46, de Novembro de 2020, intitulada “Trabalho, população negra e pandemia: Notas sobre os primeiros resultados da PNAD Covid-19”, elaborada pela Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (DIEST), do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), confirmou que negros foram os que mais sofreram com a impossibilidade de procurar emprego e com a “desocupação” verificadas durante o isolamento social (SILVA E SILVA, 2020, P. 53); concomitantemente, foram os que menos se beneficiaram do trabalho remoto (SILVA E SILVA, 2020).

Também foi o racismo que viabilizou que Moïse fosse agredido e que seu corpo fosse abandonado sem nenhum tipo de comoção imediata, expondo a desumanização promovida pelo racismo: agressão sem interferência ou contenção, a permissão para o exercício da violência como prática corretiva e punitiva; o abandono sem empatia e a banalização da morte de pessoas negras, tão frequentes e comuns nas periferias e favelas.

Mbembe (2018), ao definir como necropolítica a ação letal do Estado direcionada às pessoas negras, reforçou a ideia de que o racismo, produzindo a desumanização, tornara vidas descartáveis: um não-ser como, ainda antes, havia decretado Sueli Carneiro (2005). Assim, “sem precisar institucionalizar raça” (CARNEIRO, 2005, p. 76), a violência letal é imposta, naturalizada e banalizada a partir de pertencimento racial.

Neste sentido, não foi a morte em si que gerou surpresa, já que os registros e notícias de violenta letal contra de mulheres, homens, jovens e criança negras são recorrentes. Na comoção geral reside o choque provocado por um brutal assassinato na orla de um dos metros quadrados mais valorizados do Rio de Janeiro. Mas, para os que acompanham o quadro de vulnerabilidade e precariedade relativos à violência letal, o assassinato de Moïse, traz a confirmação de que não há local seguro para negros no Brasil.

Referências:

Atlas da Violência 2021 / Daniel Cerqueira et al., — São Paulo: FBSP, 2021 https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/12/atlas-violencia-2021-v7.pdf

CARNEIRO, Aparecida Sueli; FISCHMANN, Roseli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005.Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005, p.96 – 124.

FAUSTINO, Deivison Mendes e OLIVEIRA, Leila Maria de. Xeno-racismo ou xenofobia racializada? Problematizando a hospitalidade seletiva aos estrangeiros no Brasil. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana [online]. 2021, v. 29, n. 63 [Acessado 9 Março 2022], pp. 193-210. https://doi.org/10.1590/1980-85852503880006312.

LEMOS, Luiz Henrique. Reprodução das elites, consumo e organização do espaço urbano: questões comparativas entre a Barra da Tijuca e a Zona Sul do Rio de Janeiro. Cadernos EBAPE.BR [online]. 2004, v. 2, n. 2 [Acessado 01 Março 2022] , pp. 01-10. https://doi.org/10.1590/S1679-39512004000200005.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção e política de morte. sãoPaulo: n-1 edições, 2018.

RAMOS, J. S. Dos males que vêm com o sangue: as representações raciais e a categoria do imigrante indesejável nas concepções sobre imigração da década de 20. In: MAIO, M.C., and SANTOS, R.V., orgs. Raça, ciência e sociedade [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ; CCBB, 1996, pp. 59-82. ISBN: 978-85-7541-517-7.

SEYFERTH, Giralda. Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização. In: MAIO, M.C., and SANTOS, R.V., orgs. Raça, ciência e sociedade [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ; CCBB, 1996, pp. 59-82. ISBN: 978-85-7541-517-7.

SILVA, Tatiana Dias e SILVA, Sandro Pereira. Nota Técnica n. 46 (Diest): Trabalho, população negra e pandemia: notas sobre os primeiros resultados da PNAD Covid-19. IPEA, novembro de 2020.

_____________________

[1] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/02/veja-o-que-se-sabe-sobre-a-morte-do-congoles-moise-kabagambe.shtml?origin=uol

[2]https://www.brasildefato.com.br/2021/09/22/pesquisa-aponta-cidade-de-sao-goncalo-como-a-mais-perigosa-para-adolescentes-do-estado-do-rio

[3] Atlas da viol6encias 2021, disponível em https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/publicacoes

[4] https://oglobo.globo.com/rio/caso-moise-acusados-negam-racismo-contra-congoles-um-deles-afirma-que-preto-como-vitima-25378521

[5] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/02/03/morador-e-morto-por-vizinho-na-porta-de-casa.ghtml

[6]https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/04/menos-de-10-das-postagens-sobre-moise-mencionavam-racismo-diz-estudo.shtml?origin=uol

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Próximo dia 06/11, às 13h, o Comitê de Pesquisa "Movimentos Sociais" da Sociedade Brasileira de Sociologia, com o apoio do CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), o Núcleo de Democracia e Ação Coletiva, a Universidade Federal de Pelotas e o INCP Participa, realiza a Mesa de Triálogo "Movimentos Sociais, ataques e resistências - Argentina e Brasil".Os encontros “Mesas de triálogo”, promovidos pelo Comitê de Pesquisa Movimentos Sociais da SBS, são uma oportunidade de reflexão conjunta para pesquisadoras e pesquisadores preocupados com democracia, ação coletiva e desdemocratização. Neste primeiro encontro, vamos discutir dois cenários de ataques à sociedade civil aproximando Argentina e Brasil. Como os movimentos e coletivos têm resistido a esses cenários? Quais as inovações e táticas podem ser notadas nos repertórios de ação coletiva? E qual o papel das alianças partidárias e governamentais nas dinâmicas de desdemocratização? É ao redor de questões como essas que daremos início à primeira edição da “Mesa de triálogo”, reunindo Jonas Medeiros (Cebrap), Alana Moraes (UFRJ) e Francisco Longa (Universidad Nacional de General Sarmiento; Conicet –Argentina).A atividade é híbrida e acontece presencialmente no CEBRAP e remotamente no canal da SBS no YouTube.Link para atividade: www.youtube.com/watch?v=O2qM4skyyWI#CPMovimentosSociais #SociedadeBrasileiraDeSociologia #CEBRAP ... Ver maisVer menos
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