Por Andréa Zhouri, professora do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG e coordenadora do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA/UFMG).
Neste post, o Blog da SBS aproveita a Semana do Meio Ambiente e convida Andrea Zhouri para uma discussão sobre a Nova Lei do Licenciamento Ambiental e sua contribuição para o avanço do desmonte ambiental no Brasil contemporâneo.
Há poucas semanas, o Congresso Nacional aprovou uma nova lei geral para o licenciamento ambiental. Por iniciativa de grupos empresariais fortemente articulados com representantes do legislativo, sobretudo setores do agronegócio e da mineração, uma proposta de mudança nas regras do licenciamento ambiental já circulava no congresso desde 2004. Sob o argumento de que a morosidade do licenciamento dificulta a atração de investimentos no país, a nova lei propõe ‘desburocratizar’ o rito e ‘destravar’ projetos. Entre as inúmeras mudanças, a lei aprovada desobriga do licenciamento 13 modalidades de empreendimentos e prevê novas modalidades de licenças, como as simplificadas e concomitantes e o auto-licenciamento. Além disso, prevê licenciamento ambiental somente para territórios indígenas homologados e terras quilombolas declaradas, o que abre caminho para ataques à maioria das terras indígenas e quilombolas ainda em trâmite para reconhecimento e regularização. Como chegamos a esse contexto de verdadeiro desmonte ambiental? Na propalada reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, o Ministro do Meio Ambiente convocou à prática de políticas que aproveitassem as atenções do país em torno da pandemia do Coronavírus para ir ‘passando a boiada’, por meio de expedientes do tipo ‘relatório, caneta’. A nova Lei do Licenciamento Ambiental tem sido considerada a ‘mãe das boiadas’.
Ora, posições anti-ambientais e anti-indígenas sempre tiveram lugar na história do país (ZHOURI, 2010), embora sua presença nos espaços de governo se faça notar de maneira programática na atualidade. Neste texto, argumento que as atuais políticas de desmanche ambiental são uma manifestação da “violência nua” (ZHOURI 2020), uma espécie de recrudescimento da “violência lenta” (NIXON 2011) que marcou as políticas neodesenvolvimentistas de períodos anteriores. Na forma da violência lenta, sobretudo a partir dos anos 1990, o país vivenciou a abertura de novos territórios para o avanço da soja, da mineração e demais commodities em detrimento de uma consistente política de reconhecimento territorial para indígenas e quilombolas. O avanço do neoextrativismo fez emergir conflitos em contextos de Unidades de Conservação, enquanto grandes obras de infra-estrutura eram construídas, a exemplo das hidrelétricas na Amazônia. Projetos licenciados com crescentes pendências, são elementos que compõem um gradativo processo de desregulação ambiental. Sob a égide do Estado Democrático de Direito e do princípio do desenvolvimento sustentável, a violência lenta em operação, mesmo em governos ditos progressistas (LASCHEFSKI E ZHOURI 2019) foi pavimentando o caminho para a emergência do anti-ambientalismo, antes contido em determinados nichos políticos, agora ativo, como ‘violência nua’, no centro do poder de Estado.
Façamos uma breve digressão no tempo para compreender este caminho. A emergência de dois regimes políticos globais, aparentemente distintos, mas complementares, marcaram a década de 1990. A realização da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento Sustentável, em 1992, sob os auspícios da ONU, simboliza um ‘regime ambiental’, enquanto a rodada do GATT em 1993, cria a Organização Mundial do Comércio (OMC) e sela o Consenso de Washington. As agendas se convergem na medida em que o ‘regime da OMC’ passa a encapsular a ‘agenda ambiental’ já bastante gerida àquela altura pelo Banco Mundial e suas condicionalidades para empréstimos aos países ‘em desenvolvimento’. A racionalidade ambiental do capital colocou a gestão ambiental como cerne do desenvolvimento sustentável.
As demandas por equidade e justiça ambiental, elementos que pressupõem, entre outros, o debate sobre a destinação territorial, permaneceram marginalizadas nas abordagens ambientais institucionalizadas, principalmente nos procedimentos de licenciamento ambiental. Sob um aparente formato participativo, um jogo entre a ‘violência lenta’ e a ‘violência nua’ foi marcado pela violação de direitos humanos, seja por meio dos deslocamentos físicos forçados, seja pelos deslocamentos in situ (OLIVEIRA, ZHOURI e MOTTA 2020). A violência lenta compreendeu ainda a sistemática desregulação ambiental, observada na introdução de expedientes não previstos nos marcos regulatórios, a exemplo da concessão de licenças parciais e/ou fracionadas e o aumento significativo de condicionantes atreladas às licenças ambientais, tais como as centenas de condicionantes listadas no licenciamento da hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu, a maioria não cumprida até os dias atuais.
O movimento de desregulação alçou voos mais amplos, com uma agenda de propostas para a revisão sistemática de inúmeras leis e normas erigidas a partir da Constituição de 1988 e, em muitos casos, em épocas anteriores, a exemplo do Código Florestal, do Código da Mineração, do Código das Águas, das leis sobre agrotóxicos e transgênicos, dos conflitos em torno das Unidades de Conservação, das Terras Indígenas, e das terras de povos tradicionais – todos envolvendo os interesses do agronegócio, das indústrias extrativas minerais e agrícolas. Tudo isso no seio do Estado Democrático de Direito, que manteve o princípio da participação operante na forma de uma ampla gama de conselhos sociais, a exemplo daqueles extintos ou reduzidos em 2019.
Com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, as forças econômicas em torno do agronegócio, da mineração e do armamento desnudaram a violência sem disfarces. De forma significativa, o primeiro ato do governo foi um decreto que retirava da Fundação Nacional do Índio, a FUNAI, a competência para identificação e demarcação de terras indígenas. No segundo dia de governo, outro decreto transferia da FUNAI para o Ministério da Agricultura – sob controle do lobby ruralista – a tarefa do licenciamento ambiental de empreendimentos que poderiam atingir povos indígenas. No rearranjo dos ministérios, a FUNAI foi ainda transferida do Ministério da Justiça para o da Mulher, Família e Direitos Humanos, completamente esvaziada das suas funções histórica e constitucionalmente estabelecidas. A partir de forte mobilização de grupos indígenas e apoiadores, a FUNAI retornou para o Ministério da Justiça em 2019. Mas um vertiginoso processo político-institucional envolvendo desregulamentações e re-regulamentações nas áreas indígena e ambiental foi instituído, com efeitos de desregulação e escalada de violência nos territórios.
O número de lideranças indígenas mortas em 2019 foi o maior em onze anos, enquanto o processo de vulnerabilização dos povos indígenas diante da Covid-19 foi objeto de denúncias na Corte Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos (CIDH), em 2020. No mesmo diapasão, ataques ao ativismo ambiental, assim como às autarquias IBAMA e ICMbio, chamadas de ‘fábricas de multa’, fomentaram um ambiente de desrespeito às leis ambientais vigentes. A redução da fiscalização ambiental fez intensificar o desmatamento, o aumento de invasões às terras tradicionalmente ocupadas e o acirramento de conflitos armados, como os ataques de garimpeiros aos Yanomamis e Mundurukus. Uma sucessão de atos e decretos resultou nos investimentos contra o aparato jurídico, institucional e administrativo constituído para inibir crimes ambientais, proteger os ecossistemas e os povos da floresta.
Fazendo uso de uma ação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), o presidente retirou a autonomia dos órgãos de proteção ambiental no combate ao desmatamento, submetendo a fiscalização à tutela dos militares (decreto no 10.341). A medida vale dentro e fora de unidades de conservação, terras indígenas e outras áreas federais na Amazônia Legal. Outro Decreto (nº 10.239), de 11 de fevereiro de 2020, transferiu o Conselho Nacional da Amazônia Legal do âmbito do Ministério do Meio Ambiente para a Vice-Presidência da República, sob o comando do general Hamilton Mourão. Em meio à pressão internacional de investidores e à pressão nacional de empresários, as forças militares se tornaram protagonistas das metas governamentais voltadas para a Amazônia, anunciando sua competência para compatibilizar os interesses ambientais com a dita ‘regularização fundiária’. A essa última estão atrelados os interesses da mineração em terras indígenas e da União, o aumento na disponibilidade de terras para o agronegócio, grandes empreendimentos de infraestrutura, em suma, a ocupação da Amazônia para fins do interesse neoextrativista (BRONZ, ZHOURI e CASTRO 2020). A nova lei do licenciamento ambiental foi então aprovada em maio de 2021 no Congresso Nacional, em meio a contestações de entidades ambientalistas, indígenas e científicas.[1] Ainda, as políticas anti-ambientais se fazem acompanhar de sucessivas denúncias de crimes atribuídos ao próprio Ministro de Estado do Meio Ambiente.[2]
Em meio a essa conjuntura, o Brasil participou da Cúpula de Líderes sobre o Clima, convocada por Joe Biden em abril de 2021. As posições anti-ambientais de Donald Trump resultaram na retirada dos EUA do Acordo de Paris, compromisso firmado em 2015 entre países para a redução das emissões de gases de efeito estufa. Ao contrário de Trump, Biden parece disposto a resgatar os rumos do ambientalismo liberal, sobretudo com vistas aos mercados voltados para o tema da sustentabilidade climática, com ênfase na indústria de produção de energias rotuladas como tecnicamente limpas. A partir de mudanças na política diplomática do Brasil, e sob pressão de segmentos da economia receosos de prejuízos nas exportações por causa de eventuais retrações no mercado internacional em função das políticas anti-ambientais do país, o presidente Bolsonaro muda o discurso proferido na ONU, no final de 2020, visando alinhamento aos novos rumos dados pelo governo norte-americano em 2021. A mudança discursiva compreendeu o reconhecimento de compromissos internacionais assumidos pelo país e as metas atingidas por governos anteriores. Ao propor o alcance da neutralidade climática do Brasil até 2050, antecipando em 10 anos a proposta anterior, Bolsonaro se comprometeu a eliminar o desmatamento ilegal até 2030.
Entretanto, as palavras do governante brasileiro foram recebidas com ceticismo, tendo em vista o cenário de denúncias que recaem sobre o ministro do meio ambiente, as próprias posições políticas anti-ambientais e anti-indígenas do presidente desde a campanha eleitoral e, sobretudo, frente às ações contrárias ao discurso, como a dramática queda orçamentária para as políticas de proteção ambiental anunciadas no dia seguinte, de fato, o menor orçamento da pasta em 21 anos.
Após dois anos de governo Bolsonaro, evidencia-se uma mudança nos quadros de poder por meio do aparelhamento das instituições estatais por agentes representantes de setores como o agronegócio, a mineração, as Forças Armadas, os quais antes defendiam suas agendas em posições minoritárias no Congresso. As relações entre o Estado e as populações indígenas e tradicionais estão, portanto, sujeitas a redefinições, a exemplo das propostas de lei que pretendem rever a posição do Brasil diante da Convenção 169 da OIT, contexto que faz indagar sobre o papel do Estado na atualidade e os rumos da democracia no Brasil.
Se o ambientalismo liberal fez emergir a ‘violência lenta’ escamoteada na performance da participação como encenação democrática e os mecanismos sutis de disciplinamento da crítica via instâncias de negociação de conflitos (NADER, 1994), sua escalada pavimentou o caminho para a ´violência nua´ que ora se apresenta. Esta incrementa a dívida ecológica, aprofunda o fosso da desigualdade socioambiental e ameaça, de fato, não apenas os direitos constitucionais, mas a própria existência de indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. A retomada da agenda ambiental por Joe Biden pode representar uma tentativa de resgate do ambientalismo liberal, pois a ‘violência nua’ não parece oferecer um ambiente seguro para os negócios entre países que sustentam valores como modernidade, civilização e democracia ainda caros ao sistema de dominação ocidental. De todo modo, permanecerão os desafios para a construção de uma sociedade com equidade socioambiental e respeito pela diversidade étnica e cultural.
Bibliografia
BRONZ, D., ZHOURI, Z. e CASTRO, E. Introdução Dossiê Estado, Desregulação Ambiental e Luta por Direitos no Brasil. Revista Antropolítica. No. 49, UFF, 2020.
LASCHEFSKI, K. e ZHOURI, A (2019). Povos indígenas, comunidades tradicionais e meio ambiente a “questão territorial” e o novo desenvolvimentismo no Brasil. Revista Terra Livre, v. 1, n. 52.
NIXON, Rob – Introduction In: Rob Nixon, Slow Violence and the Environmentalism of the Poor. Cambridge, Massachusetts and London: Havard University Press, 2011, pp. 01-44
OLIVEIRA, R., ZHOURI, A. e MOTTA, Luana. Os Estudos de Impacto Ambiental e a Economia de Visibilidades do Desenvolvimento. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 36, No. 105, Junho de 2020.
ZHOURI, A. ”Adverse Forces” in the Brazilian Amazon: Developmentalism Versus Environmentalism and Indigenous Rights. The Journal of Environment Development 2010 19: 252.
ZHOURI. A. Da Desregulação à Desconstrução Ambiental: Violências e Lutas Territoriais. In: Rubens Alves da Silva et al (org.). Patrimônio, informação e mediações culturais – Belo Horizonte, SC: Universidade Federal de Minas Gerais, 2020, pp. 527-550.
[1] Para acesso ao parecer técnico elaborado pelo Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos da Associação Brasileira de Antropologia, consultar http://www.abant.org.br/files/20210511_609a75f281579.pdf, acessado em 21 de maio de 2021.
[2]Ver, entre outros, https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2021/06/carmen-lucia-do-stf-determina-abertura-de-inquerito-contra-ricardo-salles.shtml. Acesso em 03, de jun. de 2021.