Migrações e Circularidade: Teoria, Políticas de Estado e Realidades Migrantes

Publicado em 19 de novembro de 2020

Por Leonardo Cavalcanti
Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UNB)

Marcelo Ennes
Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS)

Márcio de Oliveira
Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Neste post, os organizadores do dossiê Migrações Internacionais Contemporâneas: novas abordagens e novos recortes empíricos e temáticos realizam um balanço dos temas e problemas tratados pelos artigos reunidos no v. 8, n. 19 de 2020, da Revista Brasileira de Sociologia.

Não é mais preciso insistir sobre a atualidade dos fluxos migratórios em qualquer continente que seja. Da mesma forma, não é mais necessário ressaltar o crescente número de deslocados – forçados ou refugiados – que faz a manchete dos principais meios de comunicação mundo afora.  A realidade de cada migrante espelha sua forma de organizar sua vida; é em função de seus sentimentos, de suas redes e capitais e do contexto social, político e econômico que ele modula as sociedades nacionais de onde parte e para onde se instala. Aí reside a grande diversidade do fenômeno migratório. A discussão sobre a mobilidade humana de que trata esse dossiê apresenta-se, portanto, variada, e essa é a tese que o sustenta: os móbiles da migração são múltiplos e só se revelam quando deles nos aproximamos. Da mesma forma o são as realidades criadas nas sociedades de origem e de chegada, para os que migram e para os que permanecem.

À guisa de referência à atualidade desse pandêmico ano de 2020, vale dizer que não foram tratados aqui os efeitos decorrentes do novo coronavírus sobre as populações migrantes. Contudo, convidamos o leitor a ler e analisar cada um dos artigos também sob esse prisma. Imaginem assim que a pandemia está agora na realidade cotidiana de cada um dos artigos trabalhados. Dada a vulnerabilidade dos migrantes, o impacto das restrições de circulação entre países os atinge mais fortemente, em especial os fronteiriços, em especial aqueles que recebem ou enviam remessas, em especial aqueles que sonhavam em organizar novos projetos migratórios. Além disso, o fechamento das fronteiras revela que circular internacionalmente à procura de trabalho fazia parte do cotidiano de centenas de milhares de pessoas, por exemplo, na América do Sul, como o atesta a situação de bolivianos no Chile que ficaram impossibilitados de voltar para casa.

Esse dossiê, contudo, tem outras pretensões. Problematizar o complexo contexto migratório, dizíamos ao lançar a convocatória para a chamada de artigos, era o objetivo almejado. Para isso, mais do que selecionar, tivemos por princípio acolher trabalhos que abordam o contexto dos processos migratórios e das realidades que estão na alma dos migrantes. De maneira específica e sem concertação prévia, é interessante observar como cada um dos artigos desse dossiê procurou responder às questões: quantas faces têm hoje as migrações internacionais? Quais os grupos que se põem em evidência e em que direções circulam? Quais as políticas que os atraem, quais são aquelas que os rechaçam?

Como era de se esperar, os leitores encontrarão no dossiê reflexões de caráter teórico sobre questões de política internacional e migratória ao lado de análises particulares. Enquanto as primeiras mostram o peso das injunções macroestruturais sobre o ato migratório, as segundas o visibilizam, revelando seu lado humano, corpóreo. No geral, foram analisadas situações no mundo da vida e do trabalho, em torno de alguns dos mais importantes grupos de migrantes tanto na América Central quanto no Brasil de hoje – guatemaltecos, hondurenhos, salvadorenhos, nicaraguenses, haitianos, venezuelanos e bolivianos. Não obstante a diversidade das nacionalidades e situações, cada um dos artigos transita entre a pergunta e o desafio: Quem migra? Por que migra? Qual o custo humano e social do ato migratório para quem parte e para quem permanece? Entre o sonhado e o realizado, valeu-continua valendo a pena migrar?

No primeiro artigo do Dossiê temos o texto O “O corpo-migrante e Bourdieu: corpo e incorporação no contexto migratório” de Marcelo Ennes, professor na Universidade Federal do Sergipe e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Processos Identitários e Poder. Nesse artigo, aborda-se a materialidade de todo processo migratório: afinal, como se possível fosse esquecer, migrantes são seres humanos, corpóreos, distintamente corpóreos.

 O segundo artigo do dossiê, “Migrantes Centro-americanos no México. Entre a solidariedade, a violência e os abusos das políticas de controle fronteiriço nos Estados Unidos”, das pesquisadoras, mestre e doutora respectivamente, em direito internacional, Lahys Barbosa e Paolla Rodriguez, é um excelente exemplo do que ocorre, mesmo em países terceiros, em decorrência das injunções políticas que pesam sobre os corpos-migrantes rejeitados e estigmatizados nos EUA.

A situação mexicana serve de espelho para o que está acontecendo no Brasil nesse instante mesmo: uma lei migratória com avanços em confronto com uma prática migratória seletiva e ideologicamente alinhada com uma agenda de abandono de acordos internacionais (definida pelo atual governo Trump) que nunca fez parte da tradição diplomática brasileira. O artigo de Rodolfo Uebel, professor da Escola Superior de Marketing (Porto Alegre) e pesquisador do Laboratório Estado e Território (CNPq/UFRGS), dando sequência à sua tese de doutorado e a outros trabalhos seus no campo das migrações, é excelente oportunidade para observar as reações de outro Estado, o brasileiro, diante dos novos fluxos. Inicialmente, é possível perguntar: estamos diante de uma Política Externa Migratória Brasileira lastreada ou de ações, entre improvisadas e urgentes, cujo objetivo seria apenas fazer frente à crescente entrada de migrantes, sobretudo venezuelanos?

O artigo de Érica Sarmiento, professora de História da América na Universidade Estadual do Rio de Janeiro,  sobre o caso do acolhimento de venezuelanos em Roraima (2018-2019), ilustra como as atuais ações espelham e fundamentam o modus operandi do governo Bolsonaro: a securitização da política migratória e a militarização de suas operações.

O artigo “A migração haitiana e a construção de seus ‘Nortes’: Brasil um ‘Norte’ alternativo e temporário”, da professora da Universidade de Brasília Tânia Tonhati e dos pesquisadores do Observatório das Migrações Internacionais (Obmigra/UnB) Lorena Pereda e Kassoum Dieme, é fruto da pesquisa “Imigração e crise econômica: as táticas migratórias de retorno e circularidade dos haitianos”.

Completando  o dossiê, temos três artigos que se complementam e ilustram talvez a mais importante das dimensões da vida dos imigrantes em território nacional: o mercado e as condições de trabalho. O primeiro artigo dessa série final, de autoria da professora da Universidade Federal de Minas Gerais, Elaine Vilela, e da doutora em Sociologia pela mesma universidade, Cláudia Ayer, versa sobre as diferenças de gênero e de nacionalidade no mercado de trabalho formal. Quem tem mais possibilidade de ascender em termos sociais e econômicos, homens ou mulheres? Paraguaios, bolivianos, chineses ou espanhóis?

O artigo é de longo fôlego e dialoga com rigor com a literatura específica, trabalhando dados que vêm sendo compilados anualmente pelo Observatório das Migrações Internacionais da Universidade de Brasília[1], sem dúvida hoje um dos mais importantes centros de pesquisas voltado à análise do mercado de trabalho imigrante no Brasil.

Os dois últimos artigos do dossiê podem indicar possíveis respostas ao questionamento acima feito. Em primeiro lugar, temos o artigo de Patrícia Freitas, professora da Universidade Federal de Lavras, sobre bolivianos e bolivianas inseridos no setor de confecção localizadas nas cidades de São Paulo e de Buenos Aires, em empresas controladas por seus conterrâneos.

Fechando o dossiê, trazemos o artigo de Joel Marin, professor da Universidade Federal de Santa Maria, e de Laila Drebes, professora da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, sobre emigrantes brasileiros oriundos do meio rural. O fato de jovens brasileiros emigrarem pode parecer, à primeira vista, banal. Afinal, há mais brasileiros no exterior do que estrangeiros no Brasil. Contudo, como o leitor perceberá, há, nesse grande contingente de emigrantes, jovens filhos de agricultores que são essenciais para a reprodução da agricultura familiar.

O artigo tem como lócus de pesquisa o município goiano de Itapuranga, distante 160 km da cidade de Goiânia, capital do estado de Goiás. A escolha é feliz porque trata-se de município que reúne algumas das características gerais que impactam a agricultura familiar Brasil afora: expansão da monocultura (no caso em particular, da cana-de-açúcar), falta de perspectivas econômicas (emprego rural declinante), pequeno tamanho da propriedade etc.

Eis, assim, o conjunto dos artigos que compõem esse dossiê. Ao final dessa apresentação, pode-se retornar às questões iniciais: quantas faces têm hoje as migrações internacionais? Quais os grupos que se põem em evidência e em que direções circulam? Quais as políticas que os atraem, quais são aquelas que os rechaçam?

As migrações internacionais têm tantas faces quanto o contingente dos próprios migrantes latino-americanos, como se pode compreender através de cada um dos artigos que se lerá. Em síntese, cada homem ou mulher, jovem ou idoso, que deixa seu país, o faz à sua maneira. O denominador comum a todos os migrantes, pode-se dizer de maneira simples, reside no próprio ato migratório, uma opção dentre outras de custo e sacrifício similares, mesmo quando forçada. Sob qualquer prisma que se analise, contudo, partir nunca é ato simples; migrar é um ato que se reinventa (como no caso das caravanas centro-americanas) e gera consequências imprevisíveis, como mostram venezuelanos, bolivianos e brasileiros, homens e mulheres emigrantes. Cada indivíduo que parte impacta de alguma maneira alguns dentre os que ficam; na sociedade de destino, modificam-se os que permanecem e se integram; modificados tornam-se os que retornam e/ou que circulam. À guisa de palavras finais, pode-se dizer que há uma realidade que perpassa cada um dos artigos comentados e, talvez, todos e cada um dos migrantes:  os projetos migratórios se apresentam sempre como o resultado de um conjunto de anseios, de sonhos e de problemas, mas raramente são uma solução a eles.


[1] Para maiores detalhes da produção do Observatório, ver o sítio https://portaldeimigracao.mj.gov.br/pt/observatorio.

Como citar este post

CAVALVANTI, Leonardo; ENNES, Marcelo; OLIVEIRA, Márcio de. Migrações e Circularidade: Teoria, Políticas de Estado e Realidades Migrantes. Blog da SBS, publicado em dia.mês.ano. Disponível em: [linkdapublicação]

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