Feminismo para os 99%: O Manifesto no contexto da obra de Nancy Fraser

Publicado em 16 de março de 2021

Por Enrico Bueno

Neste post, Enrico Bueno da Silva traz uma resenha sobre o livro Feminismo para os 99%, de Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser e traduzido por Heci Regina Candiani.

Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser, autoras do livro Feminismo para os 99%

Em 2019, a Editora Boitempo publicou no Brasil o manifesto Feminismo para os 99%, de autoria de Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser e traduzido por Heci Regina Candiani. O texto – como é típico do gênero – procura articular proposições teóricas de lastro profundo com uma escrita amplamente acessível, sob o propósito de convidar seus leitores (e principalmente suas leitoras) ao engajamento sociopolítico. Proponho, neste comentário, não apenas apresentar uma síntese geral do trabalho, mas também localizá-lo no interior da trajetória intelectual de Fraser, a mais conhecida no Brasil entre as autoras.

A filósofa política estadunidense possui uma obra tematicamente ampla e teoricamente heterodoxa. Desde a década de 1980, de quando datam suas primeiras publicações, Fraser formulou um modelo crítico para o estudo de políticas públicas, buscou construir pontes entre a Teoria Crítica e o pós-estruturalismo, discutiu os dilemas mais patentes dos chamados “novos movimentos sociais”, esboçou uma proposta de teoria crítica da justiça a partir das lutas por redistribuição e reconhecimento, e travou interlocuções e debates com grandes nomes da teoria social contemporânea: Jürgen Habermas, Axel Honenth, Seyla Benhabib, Judith Butler, Iris Young, Richard Rorty.

No que tange estritamente às questões de gênero, pode-se identificar em sua trajetória duas linhas de estudo. Uma diz respeito, de forma mais específica, ao problema da opressão de gênero e suas reconfigurações diante da crise do welfare state e do advento do neoliberalismo. Quanto a isso, identifica-se uma ênfase recorrente na crítica do caráter generificado da reprodução social – tema que se encontra em seu conhecido artigo acerca dos limites da teoria habermasiana para a questão (Fraser, 1985), no notável ensaio acerca do fim do “salário familiar” masculino, que caracterizara o período anterior (Fraser, 1994), e mesmo em trabalhos mais recentes (2016a).

A outra linha se refere ao estudo do movimento feminista, seus dilemas e suas ambivalências no mundo contemporâneo. Aqui, a autora formula uma análise da “afinidade eletiva perversa” (Fraser, 2009) entre certa perspectiva feminista em voga e a corroboração da ideologia neoliberal, consolidando o que ela denomina “neoliberalismo progressista” (2016b). A crítica se dirige, portanto, a como certa compreensão do feminismo participa da legitimação ideológica de estruturas e instituições que, na totalidade, constituem a matriz de formas de opressão e dominação incididas sobre a maioria das mulheres.

Nancy Fraser, uma das autoras da obra.

Não é difícil identificar o nó que articula as duas linhas: um dos principais limites do feminismo liberal se encontraria na ausência de uma crítica do caráter generificado da reprodução social, de modo a perder de vista “o papel indispensável desempenhado pelo trabalho determinado pelo gênero e não remunerado na sociedade capitalista” (Arruzza, Bhattacharya & Fraser, 2019, p. 33). Focalizando sobretudo em uma abordagem individualista para a ideia de “empoderamento”, esse feminismo liberal visaria “um mundo onde a tarefa de administrar a exploração no local de trabalho e a opressão no todo social seja compartilhada igualmente por homens e mulheres da classe dominante” (idem, p. 26). É esse nó que encerra um dos principais fios condutores do Manifesto. Mas o texto vai além disso, contribuindo com valiosas expansões analíticas para os argumentos que Fraser desenvolvera até então.

A obra é composta por 11 teses que articulam a injustiça de gênero com uma série de problemáticas estruturalmente entranhadas ao sexismo. As teses são precedidas por uma breve introdução denominada “Encruzilhada”, e retomadas em um longo posfácio, centrado nos dilemas neoliberais sobre a reprodução social. A edição brasileira acompanha também um excelente prefácio da ativista e deputada federal Talíria Petrone.

O conjunto das teses pode ser dividido em três grupos. O primeiro agrega as três primeiras e tem como objeto o contraste entre duas visões (estilizadas) de feminismo: o supramencionado feminismo liberal, o feminismo para o 1%; e um feminismo que tem combatido a injustiça de gênero concebendo-a como concatenada dinâmicas político-econômicas mais profundas. A primeira tese da obra destaca a emergência desse segundo campo, no qual a militância das mulheres estaria desafiando os ataques neoliberais à seguridade social, à educação e às condições de vida da classe trabalhadora e da classe média. A segunda tese sintetiza a crítica ao feminismo liberal, o qual, insensível à classe e à etnia, “terceiriza a opressão” e se recusa a atacar as “restrições socioeconômicas que tornam a liberdade e o empoderamento impossíveis para uma ampla maioria das mulheres” (idem, p. 37). A terceira tese, por sua vez, propõe uma caracterização inicial da proposta do feminismo para 99%, que articula as experiências de luta sintetizadas na primeira tese sob um “programa”. Trata-se de um feminismo que “abarca a luta de classes e o combate ao racismo institucional” (idem, p. 43); que concentra os interesses e experiências de mulheres alinhadas ou não às conformidades de gênero e sexualidade; que abriga trabalhadoras remuneradas ou não, subempregadas ou desempregadas, jovens ou idosas; que adquire caráter internacionalista e se opõe ao imperialismo. Um feminismo, em suma, que “não é apenas antineoliberal, mas também anticapitalista” (idem, p. 44).

Após essa localização inicial do projeto político do Manifesto, o segundo bloco de teses justifica o teor necessariamente anticapitalista de um feminismo para 99%. Aqui se encontra o cerne do diagnóstico de época proposto pelo texto, abrangendo as teses 4 a 10. Trata-se de articular problemáticas como a regulação da sexualidade, a violência racial e colonial, o imperialismo, a crise ecológica e a guerra não apenas com a opressão de gênero, mas com as dinâmicas sincrônicas e diacrônicas do capitalismo mundial. Realiza-se, assim, um movimento explicativo bastante rico, no qual essas diferentes partes – de uma totalidade social que articula formas heterogêneas de opressão e dominação – são tratadas com referências tanto ao processo histórico do capitalismo mundial quanto às configurações sócio-estruturais contemporâneas e suas dinâmicas contraditórias.

Algo aqui chama atenção a um leitor costumaz de Fraser. Em outros momentos de sua trajetória, as injustiças sociais foram interpretadas segundo a diferenciação proposta por Weber no texto “Classe, Estamento, Partido”. Nele é traçada uma distinção analítica entre as esferas econômica, social e política como ordens de lógicas distintas: na ordem econômica, os grupos sociais distinguem-se de acordo com a classe; na ordem social, os grupos distinguem-se de acordo com seu status; na ordem política, os indivíduos agrupam-se em partidos, os quais “podem representar interesses determinados através da situação ‘classista’ ou ‘estamental’” (Weber, 1982, p. 227). Assim, de acordo com Fraser (1997), as diversas modalidades de injustiça social poderiam ser interpretadas como questões decorrentes da opressão de classe, da hierarquia de status ou de uma imbricação entre as duas matrizes. É justo dizer que nunca se tratou para autora de uma diferenciação absoluta, sendo antes um espectro ideal-típico no qual a injustiça puramente econômica (de classe) e a injustiça puramente cultural (de status) seriam pontos extremos para uma classificação conforme o peso relativo dos elementos materiais e simbólicos. Seja como for, entre os meados das décadas de 1990 e 2000, predominou no pensamento da autora uma visão na qual as hierarquias de classe e status obedeceriam a lógicas distintas e suas imbricações seriam contingentes.

Nos textos mais recentes, porém, essa influência weberiana parece ser gradualmente substituída por uma perspectiva de totalidade, a partir da influência de um marxismo heterodoxo, das teorias da dependência, das teorias antirracistas e antimperialistas e do feminismo marxista. Não por acaso, têm figurado entre suas referências autores como Ruy Mauro Marini, Robin Blackburn, Cornel West, Angela Davis, Silvia Federici, dentre outros nomes que a impulsionam para além daquele quadro teórico. Assim, segundo essa abordagem, reforçada no Manifesto, o racismo institucional, a opressão de gênero, as diversas formas de controle da sexualidade e a crise ambiental são entendidos não apenas como imbricados entre si, mas também como intrinsecamente constitutivos da modernidade capitalista.

Desse modo, por exemplo, a Tese 5 enuncia que a opressão moderna de gênero foi estabelecida pelo advento do capitalismo, cujo “movimento fundamental foi separar a produção de pessoas da obtenção de lucro, atribuir o primeiro trabalho às mulheres e subordiná-lo ao segundo” (Arruzza, Bhattacharya & Fraser, 2019, p. 51). Essa atividade vital de reprodução social, indispensável para criar e manter não apenas as vidas humanas mas também sua capacidade de trabalhar e produzir, requer das mulheres uma série de habilidades e qualificações. Não obstante, é desvalorizada enquanto tal e subordinada a um mero meio (não pago) para a geração do lucro. Por isso, um feminismo para os 99% deve incluir na luta de classes as batalhas em torno da reprodução social: “por sistema de saúde universal e educação gratuita, por justiça ambiental e acesso a energia limpa, por habitação e transporte público” (idem, p. 55). Sobretudo, pela desgenerificação da reprodução social. Mas essas demandas estão matricialmente imbricadas às lutas políticas mais amplas contra a violência de gênero, o racismo, a xenofobia, a guerra e o colonialismo.

Essa ampla concatenação é amplamente abordada nas teses seguintes. A vulnerabilidade econômica, profissional e racial das mulheres é tratada em sua vinculação com as violências “irracionais” (decorrentes da “explosão” agressiva de homens que veem sua masculinidade ameaçada) ou “racionais” (assédio, estupro, agressão, estereótipos ideológicos e encarceramento como instrumentais institucionalmente respaldados de subjugação). As nuances normativas da regulação da sexualidade são compreendidas em sua articulação com as mudanças do modelo de acumulação no interior do próprio capitalismo, culminando em uma rica discussão sobre os limites e contradições do “liberalismo sexual” aceito sob o neoliberalismo, isto é, a significação liberal dada às demandas para a igualdade de gênero formal e os direitos LGBTQ+. A pauta do feminismo para os 99%, nesse caso, consiste em “libertar a sexualidade não apenas das formas de família procriadora e normativa, mas também das restrições de gênero, classe e raça das deformações do estatismo e do consumismo” (idem, p. 73).

Nas Teses 8 a 10 se encontram problemáticas em que o elemento geopolítico é mais evidente. Na primeira delas é trazida à evidência como a “expropriação de pessoas racializadas permitiu ao capital aumentar seus lucros por meio de recursos naturais e capacidades humanas por cuja renovação e reprodução ele nada paga” (idem, p. 78) – aspecto do capitalismo mundial que não apenas segue vigente como também encontra implicações abrangentes nas sociedades do Sul e do Norte Global, e se liga a questões como imperialismo, xenofobia e exploração do trabalho migrante. Questões que se configuram como “escoras fundamentais para a misoginia generalizada e o controle dos corpos de todas as mulheres” (idem, p. 80-81). Na tese seguinte, é apresentada a vinculação evidente entre capitalismo e crise ecológica, acompanhada de considerações sobre injustiça ambiental e o protagonismo das mulheres nas lutas a esse respeito. Finalmente, a última tese desse segundo bloco discute a tendência capitalista à produção de crises políticas e contradições imperialistas, que não raro resultam em conflitos bélicos e regimes autoritários. Nesse ponto, as autoras trazem não apenas as consequências incididas sobre as mulheres, como também o protagonismo feminino nas lutas por emancipação e paz.

A Tese 11, que compõe solitária a última parte do manifesto, parece aludir à 11ª tese marxiana sobre Feuerbach. Ela consiste em uma passagem do momento mais propriamente diagnóstico para uma convocação à “insurgência anticapitalista comum”. Em face do diagnóstico descrito, trata-se de construir alianças com outros movimentos anticapitalistas no mundo; de não apenas “interpretar o mundo”, mas também “transformá-lo”, em uma luta que não se dirija apenas ao “populismo reacionário” e o “neoliberalismo progressista”, mas capitalismo enquanto tal.

O posfácio da obra também merece atenção, realizando três movimentos argumentativos importantes. O primeiro consiste em defender uma noção ampliada de capitalismo, para além de seu caráter de “sistema econômico”, e discutir suas contradições múltiplas (referentes à ecologia, à política e à reprodução social), a fim de melhor compreender o “ponto de ebulição” encontrado por essas contradições sob o neoliberalismo. O segundo movimento é um aprofundamento do debate sobre a reprodução social, enfatizando que “a instituição capitalista do trabalho assalariado esconde algo além do mais-valor” (idem, p. 108): ela oculta sua marca de nascença, o processo social de “produção” de pessoas realizado no ambiente femininizado e sentimentalizado da família, mediante a sujeição das mulheres. O terceiro movimento, enfim, se encontra em uma breve discussão da crise da reprodução social sob o neoliberalismo, decorrente do esgotamento das capacidades sociais de que ela depende. Isso ocorre mediante uma retirada da sustentação pública à reprodução social e o engajamento de suas provedoras em jornadas de trabalho longas e extenuantes. Não se trata, claro, de retomar um ideário no qual a exploração do trabalho não remunerado das mulheres encontre maior equilíbrio sob um Estado social androcêntrico. Trata-se de superar a opressão em seus fundamentos.

O texto, em suma, é uma contribuição bem-vinda às lutas sociais anticapitalistas em geral, encontrando ecos para além do movimento feminista. Há críticas válidas que podem ser feitas, seja de perspectivas pós-coloniais (quanto a generalizações de experiências sociais do Norte), pós-estruturalistas (quanto à ideia de “mulher” que sintetiza a identidade do sujeito da luta feminista) ou marxistas (quanto à precariedade da discussão sobre as questões de gênero na exploração do trabalho “produtivo”). Por outro lado, sua pretensão totalizante, o desenho da concatenação entre as partes sem prescindir de considerações históricas acerca dos aspectos particulares e a análise da crise neoliberal da reprodução social são os pontos de maior destaque. A ambiciosa e abrangente pretensão emancipatória, articulada sob uma forma textual acessível, faz do Manifesto um passo importante não apenas para a trajetória intelectual de Fraser, mas sobretudo para a popularização de um pensamento feminista capaz de escapar às armadilhas do neoliberalismo progressista.

Referências bibliográficas

ARRUZZA, Cinzia; BATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy (2019). Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo.

FRASER, Nancy (1985). “What’s Critical about Critical Theory? The Case of Habermas and Gender”. New German Critique, n. 35, pp. 97-131.

______ (1994). “After the Family Wage: Gender Equity and the Welfare State”. Political Theory, vol. 22, n. 4, pp. 591-618.

______ (1997). Justice Interruptus: Critical Reflections on ‘Postsocialist’ Condition. New York: Routledge.

______ (2009). “O Feminismo, o Capitalismo e a Astúcia da História”. Mediações, vol.14, n.2, pp. 11-33.

______ (2016a). “Contradictions of Capital and Care”. New Left Review, n. 100. Disponível em: https://newleftreview.org/issues/ii100/articles/nancy-fraser-contradictions-of-capital-and-care. Acesso em: 10 mar. 2021.

______ (2016b). “Progressive Neoliberalism versus Reactionary Populism: A choice that feminists should refuse”. NORA – Nordic journal of feminist and gender research, vol. 24, n. 4, pp. 281-284.

WEBER, Max. “Classe, Estamento, Partido”. In: Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1982, pp. 211-228.

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