“Chama o Uber”: Uma pesquisa sobre as representações dos trabalhadores que atuam como motoristas de aplicativo

Publicado em 14 de outubro de 2021

Por Ana Cláudia Bessa (UFF)

Neste post, que integra a série em que apresentamos os trabalhos premiados na modalidade Sociólogos do Futuro do 20º Congresso Brasileiro de Sociologia, Ana Cláudia Bessa apresenta os resultados da pesquisa sobre as representações da atividade por aplicativo para trabalhadores que atuam como motoristas, revelando dados sobre o perfil socioeconomico dos trabalhadores, as condições da atividade e a influência da pandemia na no exercício desta modalidade de trabalho.

Figura 1: Acervo próprio 

O trabalho por aplicativo e as empresas de plataforma são uma inovação que vem ocupando um espaço cada vez maior no mercado de trabalho. Esta modalidade apresenta novos processos de gerenciamento, controle e remuneração que impacta os modelos tradicionais de trabalho, ao mesmo tempo que atrai grande número de trabalhadores. Deste modo, desenvolvi meu trabalho de conclusão de curso nas áreas de Sociologia do Trabalho e Sociologia Econômica tendo com o objetivo investigar o trabalho dos motoristas de aplicativo e suas representações sobre a atividade. Este é um tema relevante, pois a modalidade de trabalho por aplicativo levanta questões fundamentais entre o futuro do trabalho e o desenvolvimento da economia em nossa sociedade.

A pesquisa começou a ser desenvolvida em  2020, tendo seu início ocorrido juntamente com a decretação da pandemia de Covid-19. A ocorrência da pandemia ocasionou uma necessidade de repensar os métodos de pesquisa em função da imposição de isolamento social. Desta forma, visando superar esta dificuldade de aproximação com o campo e manter a viabilidade da pesquisa, a coleta de dados foi levada para o ambiente virtual e a população-alvo foi acessada através de grupos de motoristas de aplicativo na rede social Facebook. Concomitante ao planejamento da pesquisa – elaboração de cronograma, questionário, metodologias e pesquisa bibliográfica –, participei de cursos remotos sobre pesquisa digital oferecidos por universidades públicas, como UFF e UNICAMP. Meu objetivo foi aprender sobre a netnografia e sobre metodologias online e esses cursos foram fundamentais para fornecer um conhecimento técnico e ético sobre essa modalidade de pesquisa.

Levar a pesquisa para o ambiente digital permitiu dar prosseguimento à elaboração do meu projeto monográfico, possibilitando a continuidade da minha formação. Além disso, a coleta de dados feita remotamente apresentou outro importante ganho para a pesquisa: o aumento do recorte, o que permitiu maior robustez ao resultado, pois foram alcançados trabalhadores de todas as regiões do território nacional, o que seria impossível presencialmente e no tempo limitado de uma pesquisa de trabalho de conclusão de curso.

Minha pesquisa intitulou-se “Chama o Uber”: As representações do trabalho por aplicativo para os/as trabalhadores/as brasileiros/as” (BESSA, 2020) e teve como objetivo analisar as representações a respeito da prática da atividade em todas as regiões do país. A relevância da pesquisa se dá pelo fato de que há um crescimento significativo das empresas de plataforma digital – tanto no Brasil como no mundo – causando impactos profundos nas relações trabalhistas e no modo de vida dos trabalhadores, afetando também as condições econômicas dos indivíduos e de suas famílias. Somando-se a isso, há a necessidade de analisarmos os fenômenos sociais que se relacionam com a tecnologia. No caso da referida pesquisa, a tecnologia se conecta com o tema em dois pontos importantes: o objeto de pesquisa é uma atividade laboral que os trabalhadores exercem através do uso da tecnologia e a pesquisa foi realizada em ambiente digital. Como Castells (1999) pontua, é urgente a necessidade de entendermos essas transformações tecnológicas, considerando os momentos históricos e os impactos sociais que elas representam.

A coleta de dados foi realizada entre 09 de abril e 01 de junho de 2020 – por meio de um formulário digital – com 40 perguntas – distribuído nos grupos de Facebook voltados para motoristas de aplicativo. As perguntas foram divididas em três seções que buscaram auferir dados sobre o perfil socioeconômico dos trabalhadores, sobre as condições da atividade e sobre a interferência da pandemia no exercício do trabalho. Nestes 54 dias, as postagens de divulgação do questionário foram aceitas em 63 grupos de motoristas que abrangeram 97 cidades em todas as regiões do país, tendo obtido um número significativo de 766 respostas (BESSA, 2020).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura 2: Alguns dos gráficos construídos com os dados da pesquisa

A quantidade de informações obtida foi muito significativa, tanto pela quantidade de respondentes, como pela quantidade de perguntas do questionário. Os dados obtidos revelaram que o perfil da atividade se concentra em homens, brancos, casados, com filhos, com boa escolaridade e provedores principais em suas famílias. O que nos leva a pensar em como uma atividade baseada em incertezas, que se opõe ao que seria desejável – ou necessário – para ter estabilidade atrai tantos trabalhadores? A resposta não é simples. O desemprego, certamente. Mas, não somente. Para se ter uma melhor visão do contexto, a observação a este fenômeno também passa pelas percepções dos trabalhadores referentes à concepção de carreira e estabilidade no trabalho. A burocracia rígida dos velhos modelos empresariais, se modificaram no capitalismo flexível fazendo com que a insegurança seja, cada vez mais, parte integrante das histórias de trabalho (SENNETT, 2009). Além dessa realidade do mundo do trabalho ter se modificado ao longo das gerações, é importante observar que a instabilidade também é uma realidade do cenário do trabalhador brasileiro, mesmo tendo havido algumas mudanças pontuais nas décadas passadas (VARGAS, 2014). Essas vivências se mostram como estímulo para que esses trabalhadores busquem ser donos de seus próprios destinos, atraídos a um modelo sem mediação de um poder patronal ou mesmo por parte do Estado.

Em termos de condições da atividade, a mesma representa a renda principal dos motoristas, sem que haja outra fonte complementar. Deste modo, o que motiva esses trabalhadores é, diante do desemprego, obter renda para sua sobrevivência. Isso significa, de fato, que a questão primordial é resolver necessidades urgentes. Para isso, os trabalhadores exercem a atividade em jornadas de trabalho extenuantes, sem que hajam vínculos empregatícios e sem a proteção de leis trabalhistas, onde assumem gastos e riscos por conta própria. Diante destas circunstâncias, a atividade é temporária e exercida, na maioria dos casos, até que outra ocupação melhor remunerada seja encontrada. Outra informação importante é que os trabalhadores revelaram que não se sentem empreendedores e ainda preferem buscar trabalhos com carteira assinada. Com isso, podemos intuir que a aceitação da flexibilidade no trabalho por aplicativo tem a ver com uma forma de enfrentamento de uma realidade social, configurada pela ausência de outras alternativas de sobrevivência. Este contexto precário contribui para conduzir os trabalhadores a uma tomada de decisão consciente – das perdas e comprometimentos representados pelos aplicativos – mas que se mostra como decisão necessária ao sustento de si e de suas famílias. Sendo assim, pode-se considerar que os trabalhares apresentam relativa agência sobre suas escolhas e protagonizam, em alguma medida, a forma como conduzem suas vidas e não apenas são conduzidos pelas circunstâncias (GAGO, 2018).

No que se refere ao impacto da pandemia, no momento da realização da pesquisa, as respostas também evidenciaram outros valores que se mostraram importantes. Esses valores, que podemos categorizar como valores mais humanos, se referem à preservação da vida e da saúde da família, considerando o momento em que a Covid-19 começou a fazer parte da nossa sociedade. É importante contextualizar que, naquele momento, a pandemia se encontrava em seu estágio inicial, marcado por muito medo, insegurança, falta de informação e até falta de produtos básicos de proteção, como o álcool em gel e máscara. Desta forma, a renda foi muito afetada com a determinação do isolamento social pois levou à redução da quantidade de clientes. Contudo, a necessidade de renda não foi suficiente para justificar manter-se numa atividade que exige muito contato social e pressupõe muita exposição aos riscos. Com isso, os trabalhadores deixaram de exercer a atividade por medo da pandemia e informaram que concordavam com as restrições sociais, mesmo diante do que isso representava em termos financeiros. Esse fato mostra uma perspectiva muito importante sobre este trabalhador informal, sobre o qual a racionalidade do pensamento neoliberal poderia exercer grande influência, levando este trabalhador a priorizar o ganho financeiro (DARDOT; LAVAL, 2016). A lógica neoliberal não atuou exatamente como o senso comum nos leva a acreditar. E mais uma vez, vemos que os trabalhadores possuem, em alguma medida, agência sobre suas decisões, mesmo diante de um cenário hostil.

Para os trabalhadores brasileiros, a escolha pela atividade por aplicativo dá indicações de que a mesma é feita de forma consciente diante da falta de perspectiva. O trabalho temporário ajuda a amenizar as faltas urgentes de trabalho e renda até que outra oportunidade melhor seja possível. Uma questão que se relaciona diretamente com o mundo do trabalho moderno que leva os trabalhadores a acatarem a flexibilização como enfrentamento de uma realidade que os pressiona de cima para baixo, sem opção momentânea e sem muitas alternativas. Ou seja, ao mesmo tempo em que são pressionados por uma estrutura que se sobrepõe às suas possibilidades dentro do mercado de trabalho, ainda assim, eles escolhem atuar na atividade temporariamente, com consciência sobre as perdas e comprometimentos representados por essa modalidade. Essa ambiguidade permeia todo o contexto da prática do trabalho por aplicativo e explica o que leva esses trabalhadores a se dividir entre o desejo por maior liberdade e autonomia – sem controle patronal – ao mesmo tempo em que declaram dar ainda a preferência às proteções garantidas pelo trabalho formal.

Por fim, a pesquisa online, com presença dentro de grupos de motoristas e nas redes sociais, revelou uma grande riqueza de material, apresentando outros dados, além dos relatados neste texto, e que foram mais detalhados no corpo da própria monografia. Sendo assim, a pesquisa feita pela Internet com os motoristas de aplicativo apresentou resultados muito satisfatórios sobre essa importante atividade que se desenvolve no mundo do trabalho moderno. Os resultados obtidos, cruzando o perfil socioeconômico dos motoristas, as condições da atividade e o contexto da pandemia, revelaram a complexidade que envolve a prática desta nova modalidade de trabalho. A atividade representa significados de diversificadas fontes que contribuem para o entendimento sobre a lógica que envolve as decisões dos trabalhadores, a influência deste modelo informacional em seus modos de vida e as consequências das questões estruturais que afetam a realidade social trabalhista. Uma conjunção de fatores que se mostra como incentivadora para o crescimento e o desenvolvimento de novos modelos de empresas plataformizadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BESSA, Ana Cláudia. Chama o Uber: as representações do trabalho por aplicativo para os/as trabalhadores/as brasileiros/as. 2020. 90f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Sociologia) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2020.

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Redes. Volume 1. 2ª ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1999.

DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal.; tradução Mariana Echalat. – 1. ed. – São Paulo: Boitempo, 2016.

GAGO, Verónica. A razão neoliberal: economias barrocas e pragmática popular. Tradução de Igor Peres. São Paulo: Editora Elefante, 2018.

SENNETT, Richard. A Corrosão do Caráter: as consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Tradução: Marcus Santarrita. 14ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2009.

VARGAS, Francisco Eduardo Beckenkamp. O mercado de trabalho e a questão do emprego no brasil: integração precária e desenvolvimento desigual. Revista Brasileira de Sociologia / Sociedade Brasileira de Sociologia – SBS. – Vol. 02, n. 04 (jul./dez. 2014). Sergipe: SBS, 2013.

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Próximo dia 06/11, às 13h, o Comitê de Pesquisa "Movimentos Sociais" da Sociedade Brasileira de Sociologia, com o apoio do CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), o Núcleo de Democracia e Ação Coletiva, a Universidade Federal de Pelotas e o INCP Participa, realiza a Mesa de Triálogo "Movimentos Sociais, ataques e resistências - Argentina e Brasil".Os encontros “Mesas de triálogo”, promovidos pelo Comitê de Pesquisa Movimentos Sociais da SBS, são uma oportunidade de reflexão conjunta para pesquisadoras e pesquisadores preocupados com democracia, ação coletiva e desdemocratização. Neste primeiro encontro, vamos discutir dois cenários de ataques à sociedade civil aproximando Argentina e Brasil. Como os movimentos e coletivos têm resistido a esses cenários? Quais as inovações e táticas podem ser notadas nos repertórios de ação coletiva? E qual o papel das alianças partidárias e governamentais nas dinâmicas de desdemocratização? É ao redor de questões como essas que daremos início à primeira edição da “Mesa de triálogo”, reunindo Jonas Medeiros (Cebrap), Alana Moraes (UFRJ) e Francisco Longa (Universidad Nacional de General Sarmiento; Conicet –Argentina).A atividade é híbrida e acontece presencialmente no CEBRAP e remotamente no canal da SBS no YouTube.Link para atividade: www.youtube.com/watch?v=O2qM4skyyWI#CPMovimentosSociais #SociedadeBrasileiraDeSociologia #CEBRAP ... Ver maisVer menos
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