Carnaval e Religião em desfile: imagens como produções/ferramentas sociológicas

Publicado em 27 de setembro de 2021

Por Juliana Baptista Pereira, mestranda do Programa de Pós-graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGMS/ UNIRIO) e integrante do Observatório do Patrimônio Religioso da UNIRIO

Neste post, trazemos um pouco mais da série dos premiados no Sociólogos do Futuro do 20º Congresso de Sociologia. Juliana Baptista Pereira analisa os entrecruzamentos entre Cultura, Política e Religião a partir da proposta temática defendida pelo carnavalesco Leandro Vieira, no enredo A verdade vos fará livre para a estação primeira de Mangueira em 2020 e de outros episódios da história dos carnavais[1].

Figura 1: Religiosos desfilam pela Mangueira. Fonte: Riotur/ Gabriel Nascimento, 2020

Abordar as temáticas Religião e Carnaval é uma tarefa cheia de desafios. Principalmente quando se fala do carnaval das escolas de samba, cujo processo de consolidação é historicamente permeado por tensões, imerso em subversões, acomodações, além de negociações com o Estado e representantes das religiões. Nas últimas décadas os temas Religião e Política tem figurado cada vez mais no cotidiano e sendo o carnaval esse espelho do momento político e social, vemos tais temas refletidos na avenida. As turbulências da política brasileira que culminaram na ascensão de um presidente eleito sob a logo: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, não podiam ficar de fora desse espaço de debate. Leandro Vieira, carnavalesco da Estação Primeira de Mangueira, causou frisson na opinião pública ao questionar quem seria esse “Deus” mobilizado pela propaganda eleitoral exposta acima, ao afirmar: “Favela, pega a visão não tem futuro sem partilha e nem Messias de arma na mão”, uma das frases mais singulares do samba-enredo de autoria de Luiz Carlos Máximo e Manu da Cuíca. Esses grandes intérpretes da realidade brasileira, trouxeram para avenida o “Jesus da Gente”, que segundo o carnavalesco estaria bem distante da figura “intolerante” defendida por alguns religiosos.

O carnaval constantemente protagoniza episódios controversos quando se trata da presença de símbolos religiosos em desfiles. Essas tensões se acirram principalmente nos usos e referências a imagens da iconografia religiosa cristã. Ao pensar “Jesus na avenida”, meu imaginário foi quase automaticamente transportado para a polêmica envolvendo a Beija-Flor, em 1989 quando o carnavalesco Joãosinho Trinta com seu enredo “Ratos e Urubus, larguem minha fantasia”, se imortalizou na história do carnaval através da alegoria do Cristo Mendigo. Proibida de desfilar em sua configuração original por conta de uma interdição da Arquidiocese do Rio de Janeiro, a alegoria acabou sendo apresentada enrolada em um grande plástico preto, semelhante a um saco de lixo. Esse elemento alegórico se constituiu, assim, como uma imagem dialética talvez ainda mais potente do que seria originalmente. A alegoria também trazia uma faixa em que se lia: “Mesmo proibido, olhai por nós”. Essa mesma frase apareceu quase 30 anos depois, em 2018, durante um desfile de Leandro Vieira para a Mangueira. Em Com dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco, o carnavalesco criticou a retirada de investimentos do carnaval pelo prefeito e bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcelo Crivella. Sob a proposta de “investir o dinheiro do carnaval em creches”, o então prefeito causou controvérsia, reavivando debates sobre a laicidade do Estado, o secularismo e sobre a função social do carnaval das Escolas para além dos desfiles. Vale lembrar que no ano anterior Leandro Vieira apresentou o enredo Só com a ajuda do santo em que um tripé alegórico foi interditado para o desfile das campeãs por “sugestão” da Arquidiocese do Rio de Janeiro. O “pecado” do carnavalesco? Produzir uma imagem que segundo a igreja se posicionava no limiar entre blasfêmia e homenagem. Coube então à diretoria da escola impedir a aparição do tripé na semana seguinte como forma de “evitar polêmicas”.

Figura 2: Face de Senhor do Bonfim – Tripé “Santo e Orixá”.


Fonte: Riotur / Sofie Mentens, 2017

A interdição de uma imagem de Cristo, em seu momento de ascese, associada a um orixá, é uma das muitas questões postas ao analisarmos esse caldeirão de simbologias e significados que constitui o Carnaval das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Em certo sentido, tanto a alegoria proibida de Joãosinho Trinta quanto a alegoria “O calvário”, sobre a qual discorreremos a seguir, também parecem referenciar um certo imaginário “de Brasil” colocado pela referência à estátua do Cristo Redentor. Um monumento que conjuga simultaneamente os papéis de patrimônio cultural, ponto turístico e santuário, em si, já demonstra como em se tratando de religião se faz necessária uma análise transdisciplinar.

Quando em 2019, Leandro voltou a atiçar o mundo do carnaval dizendo que levaria “Jesus para a avenida”, não faltaram reações à proposta do artista e especulações sobre os contornos visuais do desfile. Sobretudo por conta de seus enredos anteriores considerados “políticos”, “críticos”, e da tradicional utilização de símbolos religiosos por parte do carnavalesco (os enredos de 2016, 2017 e 2018 também apresentam referências religiosas). O artista soube utilizar essa efervescência e a centralidade que os enredos ganham nos períodos anteriores ao carnaval para fermentar ainda mais as especulações em torno do seu “Jesus da Gente”. Em meados de outubro, quando a letra do samba-enredo foi escolhida, esse termo se cunhou de maneira singular e passou a representar o Jesus que Leandro gostaria de mostrar. Ancorado também em uma proposta decolonial de visualidade religiosa, e discursos progressistas de teólogos como Leonardo Boff e Ronilso Pacheco, como demonstrado pelo livro abre-alas[2] daquele ano, o artista levou diferentes formas de representar Jesus para a avenida. Leandro Vieira, é um artista oriundo da Escola de Belas Artes da UFRJ, berço de muitos carnavalescos do grupo especial, atualizado nos debates políticos contemporâneos e suas reflexões apareceram monumentalmente refletidas na alegoria “O calvário”. A alegoria desfilou exibindo de forma monumental, o corpo do menino negro cravejado de balas como um Jesus-Redentor (BAPTISTA, 2021a). 

Figura 3: Alegoria “O calvário” no desfile das campeãs.


Fonte: Riotur/ Fernando Grilli, 2020

Para além dos debates políticos, teológicos e raciais que a imagem provoca, uma das principais polêmicas com as quais o enredo se deparou foi da própria utilização de imagens em desfiles, uma briga antiga em termos de carnaval na Apoteose. Desde os primeiros desfiles televisionados, as Escolas de Samba precisam negociar os termos da entrada de imagens na Sapucaí. Em 2007, foi inclusive promulgada uma lei (Art. 1° Lei n° 4483/07) que proibia a veiculação de imagens sacras como alegorias. Mas não é a cultura uma forma de expressão da religião? A presença de tais elementos em uma festa popular se mostra como uma afronta à sacralidade das imagens? Por que a arquidiocese aparece como o agente que legitima ou não a presença de elementos do cristianismo e o direito de usá-los? As recorrentes maneiras como a religião aparece em desfiles de escola de samba e a criatividade dos carnavalescos, muitas vezes faz com que esse aparente controle se desmobilize, pois, imagens consideradas sagradas na iconografia católica não aparecem sendo vilipendiadas ou deflagradas, pelo contrário, há usualmente uma exaltação, inclusive devocional no que diz respeito a presença de tais figuras em desfiles.

Uma das grandes alegrias durante meu trabalho de campo, foi perceber a comoção dos componentes ao cantarem Do céu deu pra ouvir/ O desabafo sincopado da cidade / Quarei tambor, da cruz fiz esplendor / E ressurgi no cordão da liberdade, durante os ensaios técnicos. A emoção de participar daquela festa era potencializada pela devoção dos fiéis. Religião e Carnaval não são campos antagônicos. Os ‘enredos afro”, por exemplo, relacionados principalmente à figura do carnavalesco Fernando Pamplona, e da Acadêmicos do Salgueiro, mostram que contar a história do povo negro de forma efusiva, ressaltando as potencialidades, a beleza da multiplicidade de formas de experimentar a religião que aportaram no Brasil, nunca foi tarefa simples num páis que preserva em sua gênese um projeto de dizimação de tais pessoas e de suas crenças. Ao “impor” à diretoria do Salgueiro o enredo Quilombo dos Palmares o carnavalesco instituiu uma nova modalidade temática nos desfiles que se consagrou e foi gradualmente abrindo espaço para a presença de variadas formas de devoção.

Carnavalescos como Pamplona, Joãosinho Trinta e Leandro Vieira, investem nos desfiles como um lugar de resistência, veiculação de novos discursos e memórias. Produzem complexas pedagogias sociais que borram os limites da “História Oficial”, contando as histórias do povo que construiu e constrói o Brasil. Como nos mostrou Leandro Vieira, no enredo História para Ninar Gente Grande que arrebatou os jurados conquistando o soberano primeiro lugar da competição naquele ano: Brasil chegou a vez/ de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês.

Figura 4: Bandeira em desfile da Mangueira, 2019.


Fonte: Riotur / Richard Santos

O carnaval é essa festa que congrega múltiplas possibilidades dentro e fora da avenida. Conjugando fazeres ancestrais, propostas epistêmicas e visualidades. Um espaço cada dia mais profícuo de produção de ideais e ideias sobre o Brasil. Uma importante ferramenta para nós, os que nos debruçamos a analisar e descrever a realidade.

Atualmente, é preciso pensar nas formas de produção do real que se encontram para além do registro escrito, formal, presente nos cotidianos. Vivemos em um tempo em que a realidade vem sendo produzida cada vez mais por e pelas imagens. Nesse sentido, nos valemos da proposta de imagem dialética de Didi-Huberman, pois traduz um pouco dessa dinâmica circular de produção em que nada se produz espontaneamente, nem mesmo a arte. E onde é preciso perceber o processo imaginativo como em constante relação com o contexto em que é produzido. Conceitos e teorias sociais produzem imaginários, objetos, narrativas, espetáculos carnavalescos, e por que não? São também produzidos por eles. Uma articulação entre visíveis e invisíveis, dizíveis e indizíveis. Os carnavalescos têm mostrado maestria como produtores de novas epistemologias, visualidades, e anualmente nos presenteiam durante o carnaval com esse espetáculo de possibilidades de contar, imaginar e re-contar o Brasil.. 

Referências Bibliográficas:

BAPTISTA, Juliana. Um Jesus no Carnaval: considerações sobre Política e Religião no enredo da Mangueira em 2020. Orientadora: GOMES, Edlaine de Campos. 2021. 60. Trabalho de conclusão de curso – Licenciatura em Ciências Sociais, Faculdade de Ciências Sociais, Unirio, Rio de Janeiro, Rj. 2021ª
 _________; Não existe messias de arma na mão: O Jesus da gente no samba da Mangueira em 2020. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, 20. 2021b. Belém (PA). Comunicação. Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Sociologia. Disponível em: https://youtu.be/umUMRxg09Dg Acesso em 19 jul. 2021.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.

MENEZES, Renata de C.; BÁRTOLO, Lucas. Quando devoção e Carnaval se encontram Dossiê Artes em festas, 2018. proa – revista de antropologia e arte | unicamp | 9 (1) | pp. 96 – 121 | jan – jun | 2019.

Sites visitados:

RIOTUR. Religiosos desfilam pela Mangueira, 2020. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/riotur/49577171818/in/album-72157713234695833/> Acesso em 14 de setembro, 2021.

RIOTUR. Face de Senhor do Bonfim – Tripé “Santo e Orixá” , 2017. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/riotur/33166043295/in/album-72157677323417794/> Acesso em 14 de setembro, 2021.

RIOTUR. Alegoria “O calvário” no desfile das campeãs, 2020. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/riotur/49602028723/in/photostream/> Acesso em 14 de setembro, 2021.

RIOTUR. Bandeira com o dizer: “Indíos, negros e pobres” em desfile da Mangueira. 2019. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/riotur/32345329187/in/album-72157707153142075/> Acesso em 14 de setembro, 2021.


[1] O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).

[2] “Trata-se de uma espécie de dossiê ou libreto explicativo, entregue anualmente aos jurados com informações detalhadas acerca da proposta e das justificativas do desfile de cada agremiação, quesito a quesito, como subsídio ao julgamento que será feito, o que revela a sua vinculação à dimensão competitiva da festa. Pelas informações que contém, o livro Abre-Alas permite o entendimento das muitas dimensões que perpassam o desfile, à medida em que destaca, de forma textualizada, os itens a serem avaliados.” (MENEZES, 2019, p.104)

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