Boletim n. 6 – A produção do social em tempos de pandemia

Publicado em 27 de março de 2020

A produção do social em tempos de pandemia

Por grupo de pesquisa Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade – TEMAS

Se não é novidade que no noticiário as editorias de ciência, economia e política se embaralhem – ao discutirmos a exploração de campos de petróleo ou a liberação de sementes transgênicas, por exemplo – durante uma pandemia a forma como nossa vida em sociedade depende e está entrelaçada a elementos não humanos fica ainda mais clara. No entanto, como a teoria social tem entendido o papel de um agente tão poderoso, como o Covid-19, na produção e alteração das nossas formas societárias modernas? E qual a sua contribuição para pensarmos e agirmos no mundo contemporâneo?

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Fonte: Pixabay

Existem alguns caminhos interpretativos possíveis para essas respostas. No grupo de pesquisa TEMAS (Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), temos nos dedicado a produzir pesquisas, dissertações de mestrado e teses de doutorado, que investigam a formação do social atravessada constitutivamente pelas práticas científicas, pelas tecnologias e por tudo aquilo que costumamos ver como o externo à sociedade – mas que, se olharmos atentamente, veremos o quão escorregadia é essa separação – que é a natureza. Grandes projetos de desenvolvimento (como a construção de usinas hidrelétricas e rodovias), desastres sociotécnicos (como o rompimento das barragens de mineração em Minas Gerais), iniciativas de modernização da agricultura, políticas ambientais e de regulação de alimentos, e efeitos sociais das mudanças climáticas têm sido nossos loci de pesquisa. Contudo, frente à pandemia que, ao mesmo tempo em que impõe uma parada compulsória nas formas de trabalho e vida cotidiana ao redor do mundo, nos mobiliza a refletir sobre os modos como vivemos, esboçamos aqui algumas das pistas de análise oferecidas pelo campo dos Estudos Sociais em Ciência e Tecnologia e da Sociologia dos Conflitos Ambientais com os quais vimos trabalhando. Uma situação de emergência como esta expõe as arenas de negociação, poder e recursos diversos que estão sendo mobilizados para enfrentar uma pandemia. A ciência, como há muito tempo já nos alertavam a ficção e a literatura especializada, não está desconectada das sociedades que a produzem.

Um primeiro aspecto que chama atenção é o fato de que, interrompidas as atividades em função do isolamento social demandado como medida de contenção ao avanço do vírus, foi interrompida também a emissão cotidiana de toneladas de gases de efeito nocivo à camada de ozônio. As medidas sanitárias indicadas por profissionais da saúde e garantidas por chefes de Estado nos apontam uma alteração drástica dos alicerces sob os quais a Modernidade se firmou. A redução da circulação de pessoas, bens e serviços nas cidades – ou seja, uma desaceleração do ritmo econômico cotidiano dos grandes centros urbanos – tem deixado claros os efeitos da forma que vivemos sobre os demais seres e a natureza. Quais outras possibilidades de arranjos entre sistemas vivos surgem quando somos obrigados a nos transformar?

Um segundo aspecto a ser considerado diz respeito ao nexo entre as dimensões de injustiça ambiental e recomendações médicas que nos incentivam a mudar nossas rotinas. Desigualdades estruturais agravam ainda mais as dificuldades para enfrentar a transmissão do coronavírus e ainda não são suficientemente levadas em conta e problematizadas em recomendações médicas. Um olhar sociológico nos leva a questionar quais concepções de “pessoa” e “hábitos cotidianos” estão implícitas em recomendações médicas que encontramos na TV, jornais e redes sociais, e quem é invisibilizado por tais definições. Quem tem condições de trabalhar na modalidade home office e evitar aglomerações, por exemplo? Em um país no qual água encanada não é um direito universalmente consolidado, recomendações de saúde pública vistas como simples – por exemplo, lavar as mãos por cerca de vinte segundos com água e sabão a todo momento, utilizar álcool em gel – são restritivas ou até inviáveis para parte da população. Mais ainda, podemos falar em racismo ambiental quando em uma doença disseminada pela circulação de pessoas, capas de jornais estampam moradias populares alertando para o perigo das aglomerações, desviando para as classes baixas a responsabilidade pela propagação do vírus. De fato, com o agravamento da crise epidemiológica, o que temos visto é o acirramento e a legitimação ainda maiores da abissal desigualdade social brasileira. Isso ocorre, quando, por exemplo, se opõe a economia às recomendações de quarentena e seus efeitos, ou quando se propõem medidas de cortes de salários de trabalhadores, justificadas por um pretensamente necessário sacrifício de “todos”.

O terceiro aspecto é de que os contornos cada vez maiores da biopolítica serão sentidos nas formas de gestão desigual das populações, assim como nos demais seres vivos e culturas. Temos um aumento do uso de tecnologias de vigilância e controle (e.g. rastreamento das pessoas em quarentena), além da criação de novas, direcionadas ao enfrentamento da epidemia. Sob a justificativa de que vivemos um momento de exceção, isto sugere que teremos um aumento ainda maior da vigilância e controle como um novo “normal”. Um dos horizontes de análise que isto abre é o que governos, organizações e corporações farão com essas possibilidades – sobretudo aqueles com visões de mundo autoritárias e preconceituosas. Nessa linha argumentativa, a comunidade científica deve estar atenta aos rumos que estes processos assumem.

Por fim, importa também destacar que a pandemia que enfrentamos joga luz ao modo como produzimos a confiança na ciência. Ou, em outras palavras, evidencia o esgotamento de produzir confiança a partir da defesa de sua “neutralidade”. Quando um conjunto importante da sociedade minimiza as recomendações de prevenção ao vírus ou afirma que o vírus é “criado em laboratório”, expressa-se uma tentativa de deslegitimação das instituições científicas, a partir do argumento de que a ciência, sendo envolvida em “interesses econômicos e políticos” é “impura” e, portanto, não deve ser “levada a sério”.

A ciência, como já mencionamos, é indissociável da sociedade na qual é produzida. Isto implica que não há um lugar de pureza intelectual – fora da sociedade – a partir do qual o conhecimento possa ser produzido. Em um planeta mundializado, a escolha das melhores respostas sobre como enfrentar o avanço do vírus percorrem continentes e mobilizam diferentes sujeitos e visões de mundo. Reconhecer o caráter situado da ciência é rastrear as práticas que criaram tais respostas para que possamos atentar para a sua localidade e parcialidade.

Atentar para o lugar das entidades não humanas, das práticas científicas, das desigualdades ambientais e das políticas sobre a vida em meio à pandemia é fornecer pistas sobre para quais formas de viver em sociedade são privilegiadas – e, simultaneamente, quais são “esquecidas” – nessa nova ordem pretendida. é, enfim, refletir sobre ciência e democracia, em um mundo em que, com isolamento social ou não, precisamos estar conectados para produzir redes de coexistência.

O grupo de pesquisa Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade – TEMAS está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) e ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR), ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Integra professores, pesquisadores, estudantes de mestrado e de doutorado interessados nos fenômenos que estão no nexo entre meio ambiente, ciência e sociedade, a partir de uma perspectiva sociológica.

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FONTE: ANPOCS

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