Ciência sob ataque: a violência como forma de governo

Publicado em 21 de dezembro de 2019
O Faces da Violência abre espaço para as 4 (quatro) associações científicas de Ciências Sociais brasileiras (ABA, ABCP, ANPOCS e SBS) fazerem um balanço do ano de 2019 e analisarem a proliferação do discurso que demoniza a ciência e associa medo, violência e universidade no país. Contra os ataques que marcaram o ano, nós pesquisadores precisamos comunicar a importância do conhecimento científico para além dos nossos pares e mostrar para a sociedade, sem abrir mão do rigor analítico, o que está em jogo.
*
Por Miriam Pillar Grossi*; Maria Filomena Gregori*; Flávia Biroli*; e Jacob Lima*
Neste ano, alguns dos temas que são caros aos cientistas sociais ganharam grande destaque no Brasil.
Não foi, no entanto, porque houvesse no governo preocupação real com eles, no sentido de enfrentar os desafios existentes em um país tão diverso e desigual. Foi com violência e empregando o recurso ao medo que o governo de Jair Bolsonaro lidou com direitos das populações mais vulneráveis, com desafios ambientais, com o conflito social. Indígenas, negros e negras, pessoas LGBTQIs e as mulheres, em geral, viram crescer as ameaças, ao mesmo tempo que a desregulamentação acompanhou a legitimação das violências.
A estigmatização desses grupos, já antiga em nossa sociedade, se tornou parte do discurso de mandatários e do próprio Presidente da República. Ele tem estimulado pânicos morais e difundido mentiras, entre lives, fake news e postagens que pactuam com injustiças, exibem tendências autoritárias e desrespeitam tantas e tantos cidadãos.
O sistema de Ciência e Tecnologia e o ensino superior, institucionalizados historicamente e com efeitos positivos em todo o país, foram tratados de maneira particularmente irresponsável. A ameaça sistemática de retirada de bolsas fez parte de uma dinâmica que visa criar instabilidade e insegura. Também aqui, a zombaria e o desrespeito tornaram folclóricos os pronunciamentos daquele que esteve à frente do Ministério da Educação. Criado em 1951 e responsável pelo fomento de parte importante da pesquisa no Brasil, o CNPq foi sistematicamente tratado como uma espécie de “problema a ser eliminado”.
A Capes, cuja criação vem também dos anos 1950 e que ganhou em robustez nas décadas posteriores, teve não apenas recursos reduzidos, mas uma indefinição em algumas de suas tarefas fundamentais, como a das diretrizes para a avaliação da pós-graduação. O mesmo ocorreu com a Finep, importante agência de financiamento da pesquisa, cuja criação nos leva, aliás, para os anos de chumbo da ditadura militar, tão cara a alguns dos integrantes do atual governo.
Os recursos escassos precisam ser colocados em perspectiva histórica. Afinal, escolhas estão sendo feitas e elas não convergem, até o momento, na valorização da Ciência e da Educação. Por outro lado, a restrição de direitos e a redução do alcance das políticas públicas determinado pela PEC do “teto de gastos” levam à precarização, ao empobrecimento. De novo, a resposta é a violência, porque processos de privatização nesse caso são também uma forma de desalojar, desconstruir a chance de trajetórias, colocando em risco o futuro das novas gerações.
Como Cientistas Sociais, preocupa-nos as seguidas ameaças de restrições de recursos para a Ciência e o ensino superior e, em particular, para a pós-graduação de excelência desenvolvida no país. Cortes, parcialmente, revertidos graças a uma forte mobilização nacional, liderada pela SBPC e associações científicas, que articulou a sociedade civil aos parlamentares no Congresso Nacional.
Nós, professores/as e pesquisadores/as, temos assistido aos efeitos perversos desta política de descaso: o medo, a angústia e a depressão de nossos estudantes da graduação e pós-graduação face à propagação de falsas acusações contra temas de suas pesquisas e ameaças de cortes de bolsas que garantem sua permanência na universidade.
Como eles, nós também nos perguntamos a quem serve essa política. Quem ganha com a retirada de direitos e o desmonte do sistema de Ciência e Tecnologia, juntamente com o do ensino superior público? Certamente, não é o Brasil. Qualquer projeto de desenvolvimento, depende da formação de quadros para o futuro, de pessoas capazes de compreender o país em que vivem, de encontrar soluções. Nesse ponto, as Ciências Sociais têm muito a dizer. é verdade que são posicionadas. Têm sua história fortemente relacionada à interpretação de nossas mazelas e de nossas potências e a de mobilizar diferentes redes de produção de conhecimento, estimular entre elas o debate, gerar formas de visibilidade e dar suporte a instituições públicas estatais, governamentais e não-governamentais.
Assim, são ciências voltadas às problemáticas sociais e com alta participação na esfera pública. Essa dimensão política é valiosa no Brasil, sobretudo, depois da Constituição de 1988, quando os cientistas sociais foram convocados a decifrar e enfrentar os problemas estruturais resultantes de uma expressiva desigualdade social, através da formulação e avaliação de políticas públicas e formação de profissionais. A desigualdade social é uma abstração se não estiver sendo considerada a partir de evidências quantitativas e qualitativas que situam os grupos sociais em termos de classe social, gênero, raça, regionalidade, nacionalidade, escolaridade, orientação sexual.
Como toda a ciência, as Ciências Sociais dependem de liberdade de pensamento e crítica para que se desenvolvam. Por isso, seu ambiente é, por excelência, o da democracia. Quando a democracia está sob ameaça, estão também os cientistas, o pensamento crítico e o próprio combate à violência. Lutar contra ela exige conhecer os mecanismos que a produzem, contribuição inegável das Ciências Sociais.
Por exemplo, o aumento vertiginoso de feminicídios em 2019, colocando o Brasil em 5o lugar de assassinatos de mulheres por seus parceiros é uma consequência direta do desmonte de políticas públicas federais para mulheres. No mesmo sentido, na esteira da estigmatização e da homofobia, travestis continuam a ser dizimadas em todos os lugares do Brasil, na maior parte das vezes com extrema crueldade. Ao mesmo tempo, ataques de grupos conservadores aos estudos de gênero têm impedido maior formação e conscientização a respeito das desigualdades entre homens e mulheres, ações que abrem o caminho para a construção de relações sociais menos violentas.
E não é só nas relações de gênero que uma espécie de licença para humilhar e matar coincide com o rechaço à pesquisa. Dados divulgados pela Comissão Pastoral da Terra mostram que 2019 foi um ano recorde de assassinato de indígenas no Brasil, com 9 assassinatos até o presente momento. Também as populações negras têm sido alvo direto da violência institucional do Estado brasileiro como vimos em inúmeros casos de assassinatos de jovens e crianças negras por parte de agentes de segurança estatais. Enquanto isso, as preocupações do governo são com um suposto “marxismo cultural”. Há desafios muito importantes e com vidas em jogo.
Sim, nós das Ciências Sociais temos lado. Nosso compromisso é com a ciência, a educação, a democracia e a construção de um país mais justo.
* Presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais – ANPOCS
** Presidente da Associação Brasileira de Antropologia – ABA
* Presidente da Associação Brasileira de Ciência Política – ABCP
** Presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia – SBS

Blog SBS

Facebook SBS

6 days ago

Sociedade Brasileira de Sociologia
🔍🌍 O estudo dos impactos e a investigação sobre como as novas tecnologias afetam a estrutura social, as relações interpessoais e até mesmo a forma como construímos nosso próprio sentido sobre o mundo, tem sido algo fundamental para o campo científico da Sociologia.Para a sociologia, isso implica desenvolver novos métodos e teorias, incorporando os meios digitais na pesquisa e na disseminação do conhecimento. É essencial estabelecer diálogos interdisciplinares, considerando desde a pesquisa individual até a formação de redes globais. Além disso, é crucial repensar os meios de divulgação científica, indo além dos fóruns especializados, focando na formação de profissionais da sociologia.Todas essas reflexões farão parte do 1º Fórum Brasileiro de Sociologia, que acontecerá entre os dias 16 a 18 de julho de 2024, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).Venha participar deste momento!➡️ Saiba mais e faça sua inscrição em: www.forum2024.sbsociologia.com.br#forumbrasileirodesociologia #sociedadebrasileiradesociologia #ciencia #tecnologia #inovacao #sociologia #USP #fflch ... Ver maisVer menos
Veja no Facebook

1 week ago

Sociedade Brasileira de Sociologia
💬🌍 A Sociedade Brasileira de Sociologia, em parceria com a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - FFLCH-USP, realiza entre os dias 16 a 18 de julho de 2024, o primeiro Fórum Brasileiro de Sociologia.Com o propósito de debater o impacto das transformações contemporâneas sobre o campo científico da Sociologia, o Fórum Brasileiro de Sociologia traz em sua programação uma série de mesas redondas que irão discutir sobre os principais desafios da área nos dias atuais.Venha participar de mais este evento da Sociedade Brasileira de Sociologia!🌐 Acesse ao site do Fórum e confira toda sua programação: www.forum2024.sbsociologia.com.br/site/capa#sociedadebrasileiradesociologia #forumbrasileirodesociologia #fflch #USP #CNPq #capes ... Ver maisVer menos
Veja no Facebook
📢📚 Chamada de Submissões de artigos: dossiê “Mercados Transnacionais e suas Ferramentas: Materialidades, Regulações e Agenciamentos”🔍 Você tem pesquisas e estudos interessantes para compartilhar? Então, esta é a sua oportunidade! Estamos animados em anunciar a abertura de submissões para o próximo dossiê da Revista Brasileira de Sociologia.ℹ️ Processo de Avaliação em Quatro Etapas:1️⃣ Avaliação de Formato: Nossa equipe editorial revisará inicialmente a adequação do seu manuscrito às Diretrizes para Autores. Se não estiver de acordo, você será notificado e sua submissão será arquivada.2️⃣ Avaliação de Pertinência: Os organizadores do dossiê, com o apoio da equipe editorial da RBS, analisarão a pertinência do seu manuscrito à ementa do dossiê e ao escopo da revista. Se não se encaixar, um parecer editorial será elaborado e enviado a você.3️⃣ Avaliação por Pares Duplo-Cega: Os manuscritos aprovados nas etapas anteriores serão submetidos a uma avaliação rigorosa por pares, mantendo o anonimato tanto dos autores quanto dos revisores. Submissões com pareceres negativos serão rejeitadas, enquanto aquelas com recomendação de revisão poderão ser rejeitadas ou ter solicitada uma revisão, dependendo do critério dos organizadores do dossiê.4️⃣ Seleção Final: Dos trabalhos aprovados, dois serão selecionados para integrar o dossiê. Os demais, a critério dos editores da RBS, poderão ser considerados para publicação em outras edições da revista, na seção de submissões em fluxo contínuo, se for do interesse dos autores.🌟 Participe e Compartilhe seu Conhecimento! 🌟Envie sua contribuição até 30/06/2024. Para mais informações sobre as diretrizes de submissão, visite: rbs.sbsociologia.com.br/#RevistaBrasileiraDeSociologia #Pesquisa #RevistaRBS #SubmissõesAbertas #SociedadeBrasileiraDeSociologia ... Ver maisVer menos
Veja no Facebook
🌍🔍 "Os cientistas sociais têm questionado as visões simplistas da globalização, destacando a importância das mediações locais e os efeitos heterogêneos da produção simultaneamente “local” e “global”. Observar a “globalização” a partir de diferentes perspectivas, tais como “a partir de baixo” e através de “circuitos secundários”, revela complexidades instáveis e interessantes na criação de vidas frágeis, precárias e segregadas, interligadas numa trama de capitalismo com “cadeias de suprimento” em rede.Apesar das múltiplas propostas epistêmicas e metodológicas que abordam o “impasse urbano” imposto pela globalização, persiste um significativo vazio de investigação na compreensão das ferramentas, dispositivos técnicos, instrumentos, materialidades e composições que constroem, regulam e estruturam os mercados transnacionais."Confira a chamada de artigos para o dossiê “Mercados Transnacionais e suas Ferramentas: Materialidades, Regulações e Agenciamentos” na íntegra: rbs.sbsociologia.com.br/index.php/rbs/announcement/view/35🗓📌 Submeta seu artigo até 30/06/2024.#RevistaBrasileiraDeSociologia #DossiêRBS #MercadosTransnacionais #SociedadeBrasileiraDeSociologia ... Ver maisVer menos
Veja no Facebook

Twitter SBS

O feed do Twitter não está disponível no momento.