Por Bianca Freire-Medeiros (coordenadora geral do UrbanData), Bruno Vieira Borges, Isis Fernandes, Marcos Ratte Claro
Bianca Freire-Medeiros, Bruno Vieira Borges, Isis Fernandes e Marcos Ratte Claro compartilham neste post um pouco da história do projeto UrbanData Brasil, bem como suas principais ferramentas e alguns diagnósticos sobre a produção sobre o Urbano Brasileiro e suas transformações ao longo do tempo
O UrbanData-Brasil/CEM: banco de dados bibliográfico sobre o Brasil urbano é fruto da vontade visionária da socióloga Licia Valladares [ver: https://www.sbsociologia.com.br/project/licia-do-prado-valladares/]. No final dos anos 1980, no âmbito do antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), ela deu início ao projeto, guiada pela intenção de suprir a necessidade de acompanhamento, registro, classificação e difusão do conhecimento científico sobre as cidades brasileiras.
Ao longo dos anos 1990, graças ao financiamento do CNPq e de agências estrangeiras, bem como a parcerias tributárias das várias redes de que participava Valladares, o banco de dados foi se consolidando como uma central de pesquisas. Muito antes da popularização das ferramentas de busca online, o UrbanData-Brasil já disponibilizava informações sistematizadas sobre artigos de periódicos, livros, coletâneas, dissertações e teses, entre outros formatos editoriais.
Em 2015, o UrbanData-Brasil foi incorporado ao Laboratório de Pesquisa Social/LAPS, vinculado ao Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, sob a coordenação da Profa Bianca Freire-Medeiros. Três anos depois, o projeto vinculou-se ao Centro de Estudos da Metrópole (CEM), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID), da FAPESP. Com a acolhida do CEM, a equipe passou a contar com bolsistas de IC/FAPESP e apoio de especialistas da área de TI, responsáveis pela reconfiguração do sistema de armazenamento de dados[1].
Em 28 março de 2022, depois de vários anos de trabalho de uma equipe multidisciplinar, inauguramos o website do UrbanData-Brasil/CEM no domínio da FFLCH/USP (ver https://urbandatabrasil.fflch.usp.br). Como não poderia deixar de ser, o evento foi também uma homenagem à grandeza de Licia Valladares, falecida em novembro de 2021[2].
No site encontram-se reunidas, e devidamente classificadas, referências de mais de 8 mil artigos, 1.900 livros, 8 mil teses e dissertações que tratam das diversas dimensões do urbano brasileiro e que podem ser acessadas gratuitamente. Pesquisadora/es com publicações na área são estimulada/os a inserir suas próprias referências no banco de dados, em um sistema de colaboração coletivo de difusão do conhecimento. Também merece destaque a página “Acervo Digital”, onde é possível encontrar, para download gratuito, publicações anteriores do UrbanData-Brasil e vários textos de Licia Valladares, alguns já fora de catálogo ou de difícil localização.
Para além dos indexadores convencionais, a organização da base do UrbanData-Brasil/CEM é concebida por meio de outras variáveis que imprimem originalidade ao nosso trabalho classificatório e analítico: Disciplina (a que campo do conhecimento se refere o trabalho em questão?); Referência Temporal (a que período cronológico a pesquisa se refere?); Sexo da Autoria[3]; Referência Espacial (da escala do logradouro mais específico à escala global, onde a pesquisa aporta?); e Áreas Temáticas (ATs).
Ainda que sejam recortes limitadores, vez que respondem a campos semânticos previamente elencados, as ATs pretendem ser suficientemente flexíveis tanto para contemplar temas consolidados, quanto incorporar outros que surjam. Os campos semânticos advêm do nosso Tesauro de Áreas Temáticas, ferramenta que reúne, para cada AT, um conjunto específico de termos orientados à indexação e à recuperação das referências catalogadas na base. A cada referência bibliográfica podem ser atribuídas até cinco de um total de 35 ATs:
QUADRO 1: ÁREAS TEMÁTICAS
Estamos alinhados, portanto, a uma tradição, bastante consolidada e feita a muitas mãos, de reflexões críticas sobre a questão urbana enquanto objeto de investigação das ciências sociais. Ainda nos anos 1990, o UrbanData-Brasil publicou 1001 Teses sobre o Brasil Urbano e O Rio de Janeiro em Teses. No início da década seguinte, foi publicado um balanço da produção da sociologia urbana brasileira na coletânea Cidade: História e Desafios. Analisando 668 títulos, o livro Pensando as favelas do Rio de Janeiro: 1906-2000: uma biografia analítica tornou-se referência nos estudos sobre a pobreza urbana no país, obra incontornável no traçado de um “pensamento social-urbano” sobre as favelas cariocas[4]. Seguindo essa tradição de meta-análises, desde 2019, a equipe vem classificando um vasto material com vistas à publicação do catálogo eletrônico São Paulo em Teses: bibliografia analítica (1940-2015).
Com finalização prevista para fevereiro de 2023, o catálogo já contabiliza 8015 referências entre dissertações e teses defendidas em programas de pós-graduação das áreas de Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas, de instituições de pesquisa do Brasil e do exterior (em espanhol, francês e inglês). São trabalhos que tomam aspetos do urbano paulista como foco central de análise ou que, pela natureza de seu objeto de pesquisa, revelam dimensões importantes para a compreensão do espaço urbano ao qual estão empiricamente referidos.
GRÁFICO 2: TESES & DISSERTAÇÕES SOBRE SÃO PAULO: EVOLUÇÃO TEMPORAL DAS ATs
O gráfico 2 é uma representação desse material segundo o recorte classificatório das áreas temáticas (ATs) e permite visualizar sua evolução em três períodos: 1950 a 1980, com um total de 531 referências; 1981-1999, quando o número de trabalhos cresce significativamente, em paralelo à expansão dos programas de pós-graduação e alcança 2831 referências; 2000-2015, período em que testemunhamos a multiplicação dos PPGs Brasil afora e o número de trabalhos em apenas 15 anos chega a 4653.
“Estrutura econômica e mercado de trabalho” é a Área Temática (AT) que começa dominando o período de 1950 a 1980 (presente em cerca de ¼ dos trabalhos), mas perde relevância nas décadas seguintes. O caminho inverso pode ser observado com a AT “Políticas Públicas”, que mal chega a representar 5% dos trabalhos antes dos anos 1980 e, a partir de 2000 representa 25% do nosso banco de dados. Outra AT que segue padrão similar é “Espaço Urbano”, que ganha relevância nos anos mais recentes. “Poder local e gestão urbana” apresenta consistência, com pouco mais de 10% de presença ao longo de todos os períodos.
Já o gráfico 3 permite observar que não apenas incrementou-se o número de teses e dissertações produzidas em uma cadeia de disciplinas historicamente consagradas aos estudos urbanos – sociologia, arquitetura, geografia. Especialmente a partir dos anos 2000, outros campos do conhecimento foram se somando à empreitada de observação e análise de aspectos relativos ou próprios às cidades brasileiras. Essa produção encontra acolhida institucional em Programas de Pós-Graduação com perfis bastante diversos: podem estar em universidades públicas ou privadas, ser menos ou mais longevos, com tradição consolidada no campo dos estudos urbanos ou representando um movimento mais recente de ampliação da área.
GRÁFICO 3: TESES & DISSERTAÇÕES SOBRE SÃO PAULO: EVOLUÇÃO DAS DISCIPLINAS
Firmando parcerias, o UrbanData-Brasil/CEM também atua como uma agência de curadoria para outros pesquisadores, produzindo balanços críticos e propositivos a partir de demandas específicas. Em 2020-21, por exemplo, fizemos uma parceria com a Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais (RBEUR), um dos principais periódicos científicos da área, ligado à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ANPUR). Como universo empírico, tomamos os artigos publicados entre 2010 e 2020 cujo foco recaía sobre algum aspecto do urbano brasileiro[5], incluindo estudos comparativos com contextos urbanos internacionais. Naquela década, a RBEUR publicou um total de 279 artigos; desses, filtramos 150 artigos que nos eram pertinentes. Uma vez que trabalhamos com uma amostra não-aleatória, reduzida e restrita tematicamente, a meta não foi generalizar resultados para o campo dos estudos urbanos brasileiros como um todo. Em vez disso, oferecemos à Editoria da RBEUR um panorama de suas publicações na última década, subsidiando futuras discussões no âmbito de suas políticas editoriais[6].
Nosso trabalho mais recente de curadoria inclui parceiros de longa data do UrbanData-Brasil – Mauro Amoroso (UERJ), Mário Brum (UERJ) e Rafael Gonçalves (PUC-RJ)[7] – e envolve o levantamento analítico da produção sobre as favelas cariocas consolidada nas teses e dissertações. O recorte compreende o período entre 1987 e 2015 e um campo vasto de disciplinas (história, antropologia, sociologia, ciência política, ciências sociais, geografia, educação, serviço social, arquitetura/urbanismo, planejamento urbano, saúde pública, artes, letras/literatura), buscando-se teses e dissertações que tomam como Referência Temporal um “período histórico” diferente do seu tempo presente.
Estamos, ainda, colaborando com Rafael Gonçalves e sua equipe em um projeto que se volta especificamente para a Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, e que conta com apoio da FAPERJ. Ao UrbanData-Brasil/CEM cabem: a) coleta e catalogação da produção acadêmica nacional e internacional sobre a Rocinha; b) produção de cinco episódios, em parceria com o Museu Sankofa e trazendo lideranças da própria favela, que irão compor uma série especial do Urbanidades: o podcast do urbano brasileiro, principal projeto de extensão e cultura do UrbanData-Brasil/CEM realizado, desde 2019, com apoio do Programa Unificado de Bolsas (PUB-USP).
Em sua quarta temporada (incluindo uma série especial sobre Metodologia de Pesquisa, capitaneada pelos pesquisadores do CEM), o podcast Urbanidades já totaliza nada menos que 75 episódios, 23.000 streamings somente no Spotify e mais de 7300 ouvintes! Cada episódio traz entrevistas com autores de livros, artigos, teses e dissertações recém-publicados; com organizadores de dossiês e de eventos acadêmicos, e com representantes de organizações institucionais do campo dos estudos urbanos. Nosso anfitrião é João Freitas (pósdoc EACH/USP) e a equipe conta com bolsistas de vários cursos da FFLCH-USP, além de colaboradores de várias instituições. Estamos em todos os principais agregadores e nas redes sociais: Instagram (@urbanidadespodcast), Facebook (UrbanData-Brasil/CEM) e twitter (@urbanidadesfm).
Os cinco episódios mais ouvidos dão uma amostra da diversidade de disciplinas, temas e enfoques que caracterizam o Urbanidades desde a sua primeira temporada:
Na nuvem de palavras, feita a partir do título dos episódios, emerge a grande pluralidade de temas que caracteriza nossa produção como um todo:
Nosso outro projeto de extensão, o podcast sobre.vivências, foi produzido com o Prof. Alexandre Magalhães, do Departamento de Sociologia/UFRGS. Seguindo o formato de storytelling e narrado em primeira pessoa, sobre.vivências traz a história de quatro jovens de origem periférica em diferentes momentos de suas trajetórias acadêmicas — do pré-vestibular comunitário ao fim da graduação. A parceria com o artista digital Danilo de Souza Menezes (Pixaim Art) garantiu as capas que não apenas acompanham os episódios do podcast nas mídias digitais, mas também expressam a potência da reflexão sobre a entrada e permanência desses corpos racializados na universidade pública.
As agências de fomento reconhecem que a circulação do que é produzido nas universidades ainda é muito precária, que deveríamos gerar conhecimento de maneira mais cumulativa e menos dispersa. De fato, em um cenário onde os investimentos em ciência estão sempre aquém da demanda, é fundamental levar em conta o que já foi realizado antes de mobilizar recursos em pesquisas supostamente originais. Quando enfrentamos ataques sistemáticos à produção universitária no campo das ciências sociais e humanas, a necessidade de um trabalho de organização e divulgação das pesquisas acadêmicas torna-se ainda mais premente.
Não apenas docentes e pesquisadoras/es de instituições de ensino superior públicas e privadas, mas estudantes de graduação e pós-graduação, as agências de financiamento, os órgãos públicos de pesquisa, as ONGs e demais centros de produção de conhecimento, além de lideranças em todos os níveis de organização da sociedade civil, podem se beneficiar do UrbanData-Brasil/CEM. Mas para que o nosso trabalho de monitoramento, coleta, classificação e análise crítica da produção bibliográfica possa se realizar de maneira plena, precisamos do engajamento de toda a comunidade de estudiosos do urbano brasileiro. Por isso, não esqueçamos: o UrbanData-Brasil/CEM é de todas/os nós!
[1] Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo apoio financeiro para a realização desta pesquisa, que é vinculada ao Processo n° 2013/07616-7 (Processo n° 2022/00838-3 e 2020/08116-1) e ao Centro de Estudo da Metrópole (CEM).
[2] A gravação da live de lançamento está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=QUCtrih5lX8
[3] Seja por limites da própria heteroidentificação, seja por escolhas analíticas, o sexo da autoria assume dois valores (mulher ou homem), não havendo diferenciação entre identidades cis e transexual.
[4] Valladares, L.; Santanna, M. J.; Caillaux, A. (orgs.). (1991) 1001 Teses sobre o Brasil Urbano: catálogo bibliográfico (1940-1989). IUPERJ/Urbandata/ANPUR.; Valladares, L.; Santanna, M. J. (orgs.) (1992) O Rio de Janeiro em Teses: catálogo bibliográfico 1960-1990. CEPRio/UERJ; Valladares, L.; Freire-Medeiros, B. (2002). “Olhares sociológicos sobre o Brasil Urbano”. In: L. Lippi. (Org.). Cidade: História e Desafios. FGV/CNPq; Valladares, L.; Medeiros, L. (2003) Pensando as Favelas do Rio de Janeiro, 1906-2000: uma bibliografia analítica.Relume Dumará, FAPERJ.
[5] Ou seja: não foram considerados os artigos que analisavam contextos não-urbanos ou que não incluíam o Brasil.
[6] Acesse o relatório completo em: https://urbandatabrasil.fflch.usp.br/publicacoes-urbandata-brasil.
[7] Para conhecer o riquíssimo esforço de pesquisa que vem sendo realizado por esses três autores, recomenda-se a trilogia Pensando as favelas cariocas: história e questões urbanas (vol I, 2021; vol. II, 2022; vol III, no prelo).