8 de Março de 2022: um dia de lutas e muitos desafios

Publicado em 8 de março de 2022

Por Rossana Marinho (UFPI)
Marcela Amaral (UFG)
Regimeire Maciel (UFABC)
Daliana Antonio (UNIMONTES)
Fernanda Santos (PPGSOL/UNB)

Neste post, pesquisadoras do Comitê de Pesquisa Gênero e Sexualidades da Sociedade Brasileira de Sociologia debatem sobre a celebração, reconhecimento e desafios enfrentados pelas mulheres na luta por direitos e representatividade no século XXI.

Foto: Lela Beltrão, Fonte: El País.

 

Um dos desafios de escrever sobre o 8 de março, Dia Internacional de Lutas das Mulheres, é de, sendo mulheres, lidarmos com a celebração de todo o reconhecimento e conquistas até aqui, e, ao mesmo tempo, com todas as desigualdades, violências e retiradas de direitos que ainda nos ameaçam e fazem parte da nossa realidade mais cotidiana. Os últimos dois anos e a pandemia no Brasil demonstraram com transparência a vulnerabilidade das mulheres, com o aumento do desemprego e das violências, aumento das cargas de trabalho doméstico, com o ganho de responsabilidades de cuidado sobre familiares, mas também na linha de frente do enfrentamento das condições de adoecimento impostas pela COVID-19. As experiências da pandemia, sejam decorrentes do isolamento social, do luto, do adoecimento ou das vulnerabilidades econômicas e sociais, em uma sociedade que ainda coloca as mulheres em lugares de subordinação, seriam, certamente, muito difíceis para elas em qualquer contexto.

A reflexão sobre os desafios do atual contexto também nos permite, por outro lado, resgatar a própria experiência do Comitê de Pesquisa Gênero e Sexualidades e dos debates que perpassam as temáticas de gênero no âmbito da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS). Escrever neste dia passa por pensar também em como essas questões têm se colocado em nosso campo de atuação. Ao longo dos últimos 15 anos, os Grupos de Trabalho Violência, corpo e sexualidades: estudos feministas de gênero e/ou raça (2017 e 2019) e Corporalidades, sexualidades e transgressões (2015, 2013, 2011, 2009, 2007 e 2005), no interior da SBS, têm contribuído para o debate no campo dos estudos de gênero, sexualidades e feminismos, ao produzir reflexões sobre diferentes nuances da realidade das mulheres e da população LGBTQIA+ no Brasil e no mundo. O campo acadêmico sociológico brasileiro, certamente, tem se expandido a partir das inúmeras produções oriundas dos Congressos Brasileiros de Sociologia e dos desdobramentos das mesmas. De modo semelhante, essa produção tem se articulado com as lutas feministas mais amplas, contribuindo inclusive com a formulação de políticas públicas nas últimas décadas.

Entre as ações ocorridas nos Congressos da SBS, vale destacar a realização do Circuito Lilás de Sociologia, que teve sua primeira edição no 19º Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado em 2019, em Florianópolis, a partir da iniciativa de pesquisadoras do Instituto de Estudos de Gênero (IEG), que já promoviam no âmbito da UFSC o Circuito Lilás nas Ciências. O mapeamento de trabalhos integrados ao Circuito Lilás apontou a importante produção na área da Sociologia, mesmo diante de todos os ataques direcionados à deslegitimação dos estudos feministas, de gênero e sexualidade, que temos vivenciado nos últimos anos. Ainda com relação a este importante espaço criado no Congresso da SBS, é importante mencionar a realização da plenária intitulada “Por uma Rede de Sociologia Feminista”, ocorrida em 2019 e também em 2021.

No entanto, esse avanço experimentado em algumas áreas do campo acadêmico e no interior das lutas feministas esbarra na desafiadora realidade vivenciada por mulheres e pela população LGBTQIA+ no Brasil nos últimos anos, considerando o contexto de retrocesso instaurado. Tendo em vista a conjuntura política do Brasil, tornou-se muito mais difícil e ameaçador pertencer a esses grupos. No âmbito da elaboração de políticas públicas voltadas para mulheres, há um evidente desmonte, a exemplo da extinção da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), que sinalizou a ascensão de um projeto androcêntrico de retrocessos na afirmação de direitos das mulheres e de outros grupos minoritários. Se considerarmos que as conquistas das mulheres no Brasil têm sido vivenciadas de forma desigual, principalmente se combinarmos raça, classe social, orientação sexual, território, torna-se um desafio muito maior pensar na promoção da equidade de gênero; seja se pensamos nas desigualdades entre homens e mulheres, seja observando as próprias desigualdades entre as mulheres.

Foto: Cris Faga/NurPhoto, Fonte: Hypeness.

 

Nos debates críticos produzidos nos últimos anos, tem emergido a necessidade de considerar os contextos de desigualdades historicamente produzidos, problematizando uma suposta condição universal de ser mulher. Feminismos de várias vertentes têm contribuído para a produção de estudos que deem conta dessa complexidade e de enfrentamentos que considerem tais assimetrias históricas. A exemplo, a perspectiva da interseccionalidade (COLLINS, BILGE, 2021) tem contribuído para a percepção de que as opressões e desigualdades são produzidas relacionalmente e contextualmente, de modo a refletir criticamente sobre como apreender essas realidades sociais, evitando universalismos, essencialismos, ou mesmo uma simples constatação descritiva que acabe por reforçar desigualdades. No Brasil, podemos considerar um avanço a difusão desses debates, que nos provoca perceber quem somos nós, enquanto mulheres, atravessadas por diferentes marcadores sociais. Se hoje levamos em conta a polissemia do termo mulheres, isso é certamente um dos impactos dos feminismos críticos, dentro e fora dos espaços acadêmicos.

Esses avanços, entretanto, se situam no contexto de um projeto político conservador, que acaba atingindo as mulheres de várias formas. No enfrentamento da violência de gênero, apesar dos instrumentos normativos criados e aperfeiçoados nos últimos anos, os desafios ainda são muitos para garantir a proteção da vida das mulheres. Os dados referentes à letalidade que incide sobre as mulheres têm demonstrado a necessidade de observar a combinação entre categorias, que evidenciam quais mulheres têm sido mais alvo da violência letal. Segundo o Atlas da Violência de 2021 (CERQUEIRA ET AL., 2021), na série histórica 2009-2019 o Brasil apresentou uma redução de 12,4% nos homicídios de mulheres. Porém, quando observados os números a partir de um recorte de gênero e raça, se verifica que na mesma série histórica, houve aumento de 2% de homicídios de mulheres negras, enquanto entre mulheres não-negras houve redução de 26,9%. O Atlas também indicou que na referida série histórica houve um aumento de 10,6% de homicídios de mulheres nas residências e redução de 20,6% fora das residências, dado que indica uma relação entre os assassinatos e o aumento da violência doméstica. Os dados relativos aos feminicídios, publicados pelo Anuário da Violência 2021 (Fórum Brasileiro de Segurança), também revelam a desigualdade racial nas mortes provocadas em virtude do gênero. O relatório aponta que, no ano de 2020, ocorreram 1350 feminicídios no Brasil. Deste total, 61,8% das vítimas eram negras, 36,5% brancas, 0,9% amarelas e 0,9% indígenas. Ainda com relação ao ano de 2020, as mulheres negras representavam 71% das vítimas de homicídios de mulheres, evidenciando que é fundamental uma perspectiva da questão racial para compreender a realidade da violência de gênero no Brasil.

A ausência de uma política nacional consistente de enfrentamento da violência contra as mulheres potencializou o enfraquecimento das ações nos âmbitos estaduais e municipais, especialmente aquelas que pudessem considerar os marcadores sociais vivenciados pelas mulheres em situação mais vulnerável. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), criado em 2019, tem se caracterizado muito mais por mobilizar uma agenda conservadora, de forma emblemática, do que sinalizar uma política de promoção de direitos humanos, especialmente considerando as vulnerabilidades aguçadas pela pandemia. Os termos “mulher”, “família” e “direitos humanos”, nesta perspectiva, acabam por se esvaziar e ofuscar que sujeito de direito efetivamente estaria representado por este projeto político. No âmbito dos direitos reprodutivos das mulheres, os retrocessos também foram notáveis, prejudicando não só o avanço de debates públicos importantes – que têm sido protagonizados em outros países, a exemplo da recente descriminalização do aborto, na Colômbia -, quanto nas tentativas de criação de Projetos de Lei (PLs) que visavam extinguir direitos até então garantidos, criando barreiras para a interrupção da gravidez, mesmo em casos assegurados pela legislação (SILVA, 2021).

Na educação, vivenciamos ataques frontais ao acúmulo produzido em torno dos debates sobre gênero, sexualidade, diversidade e questões étnico-raciais na escola, sintetizados na pauta conservadora do “combate à ideologia de gênero”, que expressava, na verdade, uma concepção autoritária de sociedade, fundada na cisheteronormatividade. Os ataques se manifestaram na difusão de informações distorcidas sobre gênero e sexualidade, além do patrulhamento e práticas de perseguição a profissionais que se dedicam seriamente ao estudo destes temas. Em termos de investimentos na educação, os prejuízos têm sido tantos, que são sentidos em todos os segmentos. No caso das universidades, a retração no investimento tem prejudicado não só o funcionamento adequado das instituições, quanto reverberou no fomento às pesquisas, seja no financiamento de projetos, no constante corte de bolsas na pós-graduação, o que, consequentemente, coloca em xeque o recente processo de democratização desses espaços e do próprio desenvolvimento da ciência no país.

Apesar de todos os reveses do atual cenário, escrever na ocasião do 8 de março é também uma oportunidade para falar sobre resistências e ressaltar a importância de nos mantermos firmes na caminhada. A história dos feminismos e da própria Sociologia é permeada por contextos adversos, que exigiram em cada época a coragem de prosseguir, especialmente daquelas pessoas que escolheram dedicar suas vidas à possibilidade de pensar e criar novas formas de viver em sociedade, às lutas pela emancipação das mulheres e pela superação de todas as formas de opressão e exploração.

Referências:

CERQUEIRA ET AL, Daniel. Atlas da Violência 2021. São Paulo: FBSP, 2021.

COLLINS, Patricia Hill, BILGE, Sirma. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Ano 15, 2021. ISSN 1983-7364.

SILVA, Vitória Régia da. Aborto legal na mira: 100% dos projetos de lei na Câmara dos Deputados em 2021 são contrários à interrupção da gravidez. Disponível em: https://www.generonumero.media/aborto-legal-na-mira/. Acesso em mar 2022.

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