Sociologia econômica e interpretações institucionalistas sobre as transformações do capitalismo

Publicado em 17 de setembro de 2021

Por Paulo André Niederle (PPGS UFRGS)
Rodrigo Salles Pereira dos Santos (PPGSA UFRJ)
Cristiano Fonseca Monteiro (PPGS UFF)

Há duas semanas, Bernard Lahire publicou um artigo[1] de opinião conclamando os cientistas sociais a tratar dos problemas fundamentais enfrentados pela humanidade e a colocar questões de sociologia geral que atravessam todas as ciências humanas. Pois bem, em alguma medida é isso o que busca fazer o mais recente dossiê da Revista Brasileira de Sociologia: Interpretações institucionalistas sobre as transformações do capitalismo[2].

Apesar da análise do(s) capitalismo(s) ter ocupado o centro das preocupações dos autores clássicos da sociologia, muitos sociólogos e sociólogas desistiram de tal ambição ao longo do século XX.  Não apenas voltaram suas atenções às dinâmicas microssociais, mas abandonaram qualquer intenção de generalizar as conclusões de suas pesquisas para explicar a grande transformação. Ao mesmo tempo, respeitando excessivamente as fronteiras disciplinares, afastaram-se dos fenômenos econômicos. Em muitos cursos de ciências sociais, a economia se tornou apenas mais uma disciplina básica dos semestres iniciais, geralmente ofertada por um(a) economista que desconhece os fundamentos do pensamento sociológico.

Felizmente, a partir dos anos 1980, vários sociólogos e sociólogas compreenderam que a economia (e o capitalismo) é muito importante para ser deixada apenas aos economistas. A sociologia econômica voltou a se interessar pelo tema e produziu um novo conjunto de ferramentas conceituais e metodológicas para compreender o(s) capitalismo(s). Essas ferramentas permitiram questionar o individualismo metodológico da economia utilitarista sem, no entanto, regressar aos funcionalismos e estruturalismos que outrora afugentaram sociólogos e sociólogas dessa discussão.

Uma parte desse ferramental analítico advém do diálogo com a própria economia heterodoxa, mas também com a ciência política e a antropologia. Ele se expressa em um amplo e variado campo teórico que tem sido identificado como neoinstitucionalismo. Entretanto, o que se chama de institucionalismo sociológico em muitas disciplinas de graduação e pós-graduação – a abordagem construída nos anos 1970 por Meyer, Rowan, DiMaggio e outros, a qual focaliza o modo como regras culturais definem estruturas organizacionais e padrões de ação –, ainda está muito longe de fazer justiça ao que realmente é o debate institucionalista contemporâneo em sociologia.

O dossiê que tivemos a honra de organizar para a Revista Brasileira de Sociologia sumariza alguns dos tópicos desse debate. No artigo que introduz o dossiê, discutimos a produção política de mudanças institucionais que ensejaram novas dinâmicas de acumulação em três setores-chave da economia brasileira: agricultura, mineração e transporte aéreo (Niederle, Santos e Monteiro, 2021) A partir do exemplo desses setores, demonstramos não apenas a coexistência da racionalidade neoliberal com as políticas de cunho neodesenvolvimentista, sugerindo pluralismo institucional, mas também o reforço institucional que vem sendo conferido a lógicas predatórias de acumulação. Ao final, defendemos a necessidade das abordagens institucionalistas prestarem mais atenção ao modo como as corporações passaram a atuar como um elemento disruptivo não apenas da regulação estatal e do controle social, mas também do pretenso equilíbrio de mercado.

Em seguida, Moises Balestro e Antonio Junqueira Botelho discutem como diferentes modelos de crescimento marcaram a trajetória de desenvolvimento no Brasil. Segundo os autores, as oscilações das elites econômicas entre modelos liberais e não liberais fragilizou as repetidas tentativas de formar uma coalizão desenvolvimentista. Em virtude disso, os autores apontam para a inadequação de leituras que tentam situar o país de maneira muito estrita em modelos de crescimento orientados pela exportação, pelo consumo ou pela demanda. Outro argumento saliente no artigo está associado à ideia de que “O capitalismo é baseado em empresas, não em decisões de política microeconômica de governos e bancos centrais” (Balestro e Botelho, 2021, p. 68), por meio da qual, a nosso ver, os autores vão ao encontro do que apresentamos acima quando reivindicamos um olhar mais atento para o modo como as corporações estão tomando para si a responsabilidade de redesenhar as lógicas institucionais.

O artigo subsequente, assinado por Fabiano Escher, aporta uma contribuição interdisciplinar inovadora, a partir do cotejamento crítico de diferentes literaturas especializadas sobre capitalismos comparados e regimes alimentares. A inovação apresentada consiste no reposicionamento da questão agroalimentar e do regime agroalimentar internacional no centro da análise institucional histórico-comparada da economia, convertendo-as em foco privilegiado de entendimento da diversidade institucional do capitalismo contemporâneo (Escher, 2021). Se, de um lado, essa pretensão anuncia uma promissora trajetória de aplicações empíricas, considerando a emergência e pluralidade de agências nesse mundo social, de outro, ela sugere grande potencial teórico quanto à redefinição da própria noção de desenvolvimento e, consequentemente, à tipologia do Estado desenvolvimentista.

Enquanto uma das intenções manifestas do nosso artigo é destacar a preocupante diluição das corporações na noção de mercado em boa parte das análises sobre as dinâmicas capitalistas contemporâneas, em Arquitetura de mercados como processo social: o direito e as lacunas da sociologia econômica institucionalista, Pedro Salomon Bezerra Mouallem e Diogo Rosenthal Coutinho destacam a necessidade da sociologia econômica, que até agora se concentrou principalmente em mostrar como Estados arquitetam mercados, dar mais atenção ao papel do direito. Neste sentido, os autores defendem que o fenômeno jurídico, entendido como parte da disputa social que cerca a definição dos arranjos institucionais, é constitutivo da ação estatal e, mais amplamente, dos mercados. Além disso, argumentam que, na medida em que o fenômeno jurídico é profundamente dependente do contexto social, o direito torna-se um elemento central à explicação das “variedades institucionais” do capitalismo (Mouallem e Coutinho, 2021).

Finalmente, Sandro Ruduit Garcia retoma um dos dilemas centrais da sociologia contemporânea, qual seja a relação entre ação social e instituições econômicas. Em diálogo com a tradição weberiana de análise das instituições, o autor destaca como, recentemente, determinadas abordagens institucionalistas sobre as transformações do capitalismo têm incorporado uma atenção mais evidente com os “choques e negociação de interesses entre os atores do que com a coesão alcançada pela obediência e compartilhamento de valores que sustentariam sistemas sociais.” (Garcia, 2021, p. 164). Em alguma medida, esse argumento pode ser encarado como uma crítica ao modo como, para contrapor vertentes utilitaristas, uma parte do institucionalismo se desviou do tema da ação social interessada, o que seguramente é uma fragilidade quando vários setores se reorganizam em resposta ao crescente domínio corporativo.

Somando-se aos esforços mais amplos do Comitê de Pesquisa Sociologia Econômica da SBS[3] e do Grupo de Trabalho Sociedade e Vida econômica da ANPOCS[4], esperamos que esse dossiê contribua para esse esforço de reintroduzir o debate sobre o capitalismo, suas dinâmicas e variedades, na agenda da sociologia brasileira. Afinal, frente à profunda crise em que o país se encontra, agora mais do que nunca, a economia se tornou excessivamente importante para ser deixada apenas aos economistas ortodoxos, os quais têm se mostrado particularmente incapazes de compreender as lógicas institucionais subjacentes à dinâmica do capitalismo e, mais importante, de conceber formas de ação que contribuam para a deliberação pública e seu controle social.

Referências

Balestro, M.; Botelho, A.J. Em busca de instituições de capitalismo desenvolvimentista: resgatando modelos de crescimento em países emergentes. Revista Brasileira de Sociologia, v. 9, n. 22, p. 45-74, 2021.

Escher. F. Variedades de capitalismo nos BRICS: uma perspectiva agroalimentar. Revista Brasileira de Sociologia, v. 9, n. 22, p. 75-110, 2021.

Garcia, S.R. Ação Social e Instituições Econômicas: conquistas para a pesquisa sociológica. Revista Brasileira de Sociologia, v. 9, n. 22, p. 145-168, 2021.

Mouallem, P.S.B.; Coutinho, D.R. Arquitetura de mercados como processo social: trazendo o direito para a sociologia econômica institucionalista. Revista Brasileira de Sociologia, v. 9, n. 22, p. 111-144, 2021.

Niederle, P.A.; Santos, R.P.S.; Monteiro, C. F. Interpretações institucionalistas sobre as transformações dos capitalismos brasileiros: da pretensão neodesenvolvimentista à predação. Revista Brasileira de Sociologia, v. 9, n. 22, p. 9-44, 2021.


[1] https://aoc.media/analyse/2021/09/01/manifeste-pour-la-science-sociale/

[2] https://rbs.sbsociologia.com.br/index.php/rbs/issue/view/36 

[3] http://www.sbsociologia.com.br/economica/

[4] https://www.anpocs2021.sinteseeventos.com.br/simposio/view?ID_SIMPOSIO=109

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Próximo dia 06/11, às 13h, o Comitê de Pesquisa "Movimentos Sociais" da Sociedade Brasileira de Sociologia, com o apoio do CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), o Núcleo de Democracia e Ação Coletiva, a Universidade Federal de Pelotas e o INCP Participa, realiza a Mesa de Triálogo "Movimentos Sociais, ataques e resistências - Argentina e Brasil".Os encontros “Mesas de triálogo”, promovidos pelo Comitê de Pesquisa Movimentos Sociais da SBS, são uma oportunidade de reflexão conjunta para pesquisadoras e pesquisadores preocupados com democracia, ação coletiva e desdemocratização. Neste primeiro encontro, vamos discutir dois cenários de ataques à sociedade civil aproximando Argentina e Brasil. Como os movimentos e coletivos têm resistido a esses cenários? Quais as inovações e táticas podem ser notadas nos repertórios de ação coletiva? E qual o papel das alianças partidárias e governamentais nas dinâmicas de desdemocratização? É ao redor de questões como essas que daremos início à primeira edição da “Mesa de triálogo”, reunindo Jonas Medeiros (Cebrap), Alana Moraes (UFRJ) e Francisco Longa (Universidad Nacional de General Sarmiento; Conicet –Argentina).A atividade é híbrida e acontece presencialmente no CEBRAP e remotamente no canal da SBS no YouTube.Link para atividade: www.youtube.com/watch?v=O2qM4skyyWI#CPMovimentosSociais #SociedadeBrasileiraDeSociologia #CEBRAP ... Ver maisVer menos
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3 weeks ago

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