Por Silvio Matheus Alves Santos
Pesquisador de Pós-Doutorado no Departamento de Sociologia – IFCH/UNICAMP.
Neste post, Silvio Matheus Alves Santos escreve sobre o livro The sociology of W.E.B. Du Bois: racialized modernity and the global color line (New York: New York University Press. 2020, 304p.) de José Itzigsohn e Karida L. Brown.
Não poderia começar esta resenha sem antes mencionar como se deu o meu contato com W. E. B. Du Bois. Em meados de 2011, eu estava num sebo buscando livros que dialogassem com a minha pesquisa de mestrado em que me dedicava aos estudos do Trabalho, mas ainda não tinha mergulhado nas Relações Raciais. Foi quando me deparei com o livro cujo título me chamou atenção, se tratava de As Almas da Gente Negra[1], de um autor que, àquela altura, era desconhecido para mim. Apesar disso, a foto dele na capa me apresentava um homem negro com olhar altivo, fitando o horizonte, como se refletindo visse além. Li avidamente as primeiras páginas e não tive dúvidas de que eu estava diante de uma obra relevante e que se tornaria importante para a minha trajetória de vida, enquanto sociólogo e pesquisador negro. Ali mesmo tive noção de que o autor havia sido o mais influente líder na criação do Niagara Movement (com suas diretrizes voltadas à organização política e econômica da população negra), além de um intenso estudioso e proeminente sociólogo negro dos Estados Unidos. Então, comprei o livro sem pestanejar. Este breve relato soma-se às distintas e interessantes narrativas sobre o encontro dos autores José Itzigsohn e Karida Brown com este grandioso ativista-pesquisador ou pesquisador-ativista, historiador e sociólogo negro estadunidense que viveu e produziu importantes obras entre o final do século XIX e a segunda metade do século XX, nas páginas iniciais do livro The sociology of W. E. B. Du Bois: racialized modernity and the global color line.
O ponto de partida dos autores é o de que Du Bois foi, de fato, um dos fundadores da Sociologia, com contribuições tão importantes quanto as dos cânones como Durkheim (e a discussão sobre ordem social), Marx (e o pilar da luta de classes) e Weber (e o debate sobre a racionalização e a burocracia). Du Bois, por sua vez, “considerou a raça, o racismo e o colonialismo como fatores centrais para a construção do mundo moderno.”[2] (p.1). Para ele, “raça era tanto um produto como também um elemento central da organização econômica e cultural do capitalismo colonial e racial.” (idem). Tais processos ergueram uma barreira intangível, mas muito real que foi denominada por Du Bois como color line (linha de cor), entendida como a divisão e/ou classificação de pessoas em grupos racializados que é, considerada por ele, a estrutura social erguida em seu tempo histórico, como um produto do colonialismo e da escravidão transatlântica.
Os autores apontam de maneira explícita que os trabalhos de Du Bois foram marginalizados e/ou invisibilizados durante o processo de institucionalização da sociologia americana enquanto disciplina e campo científico de pesquisa. Nesse sentido, citam a relevância do trabalho de Aldon Morris, The scholar denied: W. E. B. Du Bois and the birth of modern sociology, que destaca o pioneirismo de Du Bois e o reconhece como o fundador da sociologia científica americana e da Escola de Atlanta, décadas antes da constituição da Escola de Chicago, amplamente conhecida como a difusora primordial dessa sociologia sistematizada. Itzigsohn e Brown deixam evidente que o apagamento histórico de Du Bois ocorreu devido à expressão institucional do preconceito e racismo latentes.
A partir daí, os autores, dão um salto qualitativo importante em relação à análise sócio-histórica de Aldon Morris, já que realizam um estudo primoroso nos fornecendo relatos inovadores a respeito da contribuição teórica de Du Bois para a sociologia. Partindo da ideia de que raça não deveria ser vista como um subcampo da Sociologia, pois a abordagem a partir da raça coloca de fato o racismo e o colonialismo no centro da análise sociológica como pilares que edificaram o mundo moderno. Logo, os autores situam Du Bois como um teórico da modernidade racializada, conceito central presente no conjunto da obra dele e que os autores buscam, ao longo do livro, apresentar, explicar e expor. Além disso, examinam e evidenciam as implicações do desenvolvimento de uma sociologia Du Boisiana para esta ciência na contemporaneidade.
Nesse sentido, um dos pontos do livro que mais chama atenção é a maneira como os autores destacam a relevância dos desafios metodológicos e analíticos que a sociologia de Du Bois coloca para a prática da sociologia na atualidade. Itzigsohn e Brown sublinham quão intensamente as reflexões e a abordagem sociológica de Du Bois emergem a partir da relação entre a sua própria experiência e seu processo de reflexividade enquanto homem negro nos Estados Unidos do final do século XIX, ainda segregado e constituído fortemente por uma ideologia supremacista branca. A escrita dos autores entrecruzadas com análises sobre passagens de Du Bois nos permitem perceber que a iniciativa autorreflexiva do autor, ao pensar sua vivência no Sul dos EUA, lhe permitiu entender mais profundamente os dilemas da população negra estadunidense e, de alguma maneira, o levou a pensar a condição da população negra em dimensão global.
Outros pontos de destaque no livro delineiam dois aspectos metodológicos da “análise Du Boisiana da subjetividade e da agência que é a centralidade de teorizar a partir da sua experiência de vida e a contínua ligação entre subjetividade e os contextos mais amplos da modernidade racializada.” (p.58). Assim, a fenomenologia de Du Bois além de se pautar na análise da subjetividade e identidade sob a modernidade racializada, propicia refletir sobre a experiência cotidiana de lidar com o racismo e viver sob a color line, se pensarmos os contextos particulares de cada nação, e a linha de cor global, a partir das diferentes formas que a linha de cor assume em contextos e períodos distintos (como Brasil e Estados Unidos, por exemplo).
Nessa perspectiva, o estudo das linhas de cor que estabelecem barreiras raciais aos negros em diferentes sociedades é, ainda, atual. Identificar o modo como essas linhas de cor são (re)traçadas em diferentes âmbitos da vida social é muito importante. Em sociedades, como a brasileira, marcadas pelo peso da experiência histórica longeva da escravidão dos negros, e em que a inclusão e acesso aos recursos da sobrevivência se faz sobretudo pela inclusão no mercado de trabalho (na ausência de um sólido regime de proteção social), o tema ganha todo relevo.
Durante a leitura do livro pude constatar a pertinência da autoetnografia como método de pesquisa, fundamental ao meu Pós-Doutorado, e a consonância fina com o entendimento dos autores em relação ao fazer autoetnográfico. Já vinha me dedicando à investigação sobre as origens epistemológicas da prática autoetnográfica em trabalhos seminais de DuBois[3], principalmente, no que diz respeito à questão racial e ao desenvolvimento de um modus operandi da pesquisa sociológica, especificamente, a qualitativa. Itzigsohn e Brown, em algumas passagens (pp. 9, 38, 114), fazem referência a esta abordagem etnográfica como um recurso utilizado por Du Bois na época, assemelhando a “forma ou técnica” que ele utilizava no desenvolvimento de seus estudos/pesquisas com o que na contemporaneidade é denominado como autoethonography.
Os autores destacam que apesar de já ser identificado em The Souls, é em Dusk of Dawn, de 1940, que Du Bois analisa o lugar da raça no mundo moderno a partir da verificação da sua própria história de vida.[5] Neste livro, de caráter autobiográfico, é possível perceber como a experiência de vida pode ser pensada e utilizada nas análises teóricas. Ademais, as reflexões autobiográficas em Dusk auxiliou Du Bois a “desenvolver uma análise fenomenológica da experiência de vida das pessoas racializadas e a ligar tais experiências a análises mais amplas das intersecções de classe, raça e colonialismo” (p.31). Que a meu ver, pode ser estendido também ao gênero, ao sexo, dentre outros marcadores importantes para uma reflexão/interpretação sociológica da atualidade.
Portanto, é fundamental se ater ao elo entre a dimensão do indivíduo e as questões macrossociais. É a partir das interações desses indivíduos, inclusive com os sujeitos (pesquisadores e pesquisados), que poderemos estar mais próximos de captar o sentido das representações sociais e das estratégias individuais, permitindo um grau de análise mais apurado. A autoetnografia vem reforçar o vigor e a reflexividade de um conhecimento que intercede a proeminência dos microprocessos para o entendimento dos processos macrossociais, como a desigualdade, a discriminação e o racismo institucional.
Colocar em relevo, enquanto pesquisador, os microprocessos (entre indivíduos e sua agência) para o entendimento dos processos macrossociais (como a discriminação e o racismo), partindo também da reflexão de sua própria experiência de vida, fizeram com que a sociologia pública de Du Bois fosse o aspecto mais contestado de seu pensamento pelo mainstream branco americano. Mas, de acordo com os autores, ele se manteve convicto diante dos múltiplos e complexos papéis: homem negro, sociólogo, pesquisador, ativista, organizador político de movimentos sociais negros e pan-africano.
O livro de Itzigsohn e Brown se apresenta de forma muito potente, trazendo questões importantíssimas em seus capítulos divididos da seguinte maneira: o primeiro, Double Consciousness: The Phenomenology of Racialized Subjectivity; o segundo, Racial and Colonial Capitalism; o terceiro, Du Bois’s Urban and Community Research Program; o quarto, Public Sociology and Du Bois’s Envolving Program for Freedom; e o quinto, A Manifesto for a Contemporary Du Boisian Sociology.
Nos três primeiros capítulos é evidente a intenção dos autores de sistematizar os conceitos fundamentais, formular uma análise cuidadosa e oferecer uma visão geral da sociologia de Du Bois. Já na parte final do livro, Itzigsohn e Brown nos apresentam um Manifesto para uma Sociologia Du Boisiana Contemporânea, pois entendem que a sociologia pode e deve ser diferente, que as suas práticas devem ser mais inclusivas e que devemos manter as mentes abertas acerca de novas e diferentes abordagens sociológicas. Em perspectiva, os pilares da sociologia que promulgam são: “a ligação da subjetividade e da estrutura de poder; as análises da experiência de vida dos dominantes e dominados; a crítica das estruturas dos conhecimentos; e as ênfases sobre a habilidade do oprimido ver além do presente, imaginar mudanças e afirmar sua própria humanidade.” (p. 194).
Enfim, estamos diante de um livro que não só nos (re)apresenta a importância da abordagem sociológica de Du Bois, como também nos demonstra como a sociologia Du Boisiana se conecta às principais questões sociais da atualidade e se torna um necessário e valioso instrumento para compreendermos nosso momento histórico e agir sobre ele, bem como suscita novas problematizações aos cursos de Ciências Sociais e áreas afins. As reflexões desencadeadas, a difusão de novas perspectivas e a potencialização teórico-metodológica da sociologia de W.E.B. Du Bois, proporcionadas por este livro, passa a confiança de que, de uma vez por todas, a invisibilidade acadêmica insistente e seu apagamento enquanto clássico, imposto de maneira estrutural, foram de fato rompidos.
Referências Bibliográficas
DU BOIS, W. E. (1898). The Study of the Negro Problems. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, Vol. 11. (Sage Publications, Jan.), pp. 1-23.
________ (1899). The Philadelphia Negro – a social study. New York: Schocken Books.
________ ([1903] 2007). The souls of Black folk – edited with an introduction and notes by Brent Hayes Edwards. New York: Oxford University Press Inc.
________ ([1940] 2007). Dusk of Dawn – An essay toward an autobiography of a Race Concept. New York: Oxford University Press.
ITZIGSOHN, J., & BROWN, K. L. (2020). The sociology of W.E.B. Du Bois: racialized modernity and the global color line. New York: New York University Press.
MORRIS, A. D. (2015). The scholar denied: W. E. B. Du Bois and the birth of modern sociology. Oakland, California: University of California Press.
SANTOS, S. M. (2019). Experiências de desigualdades raciais e de gênero. Narrativas sobre situações de trabalho em uma fast fashion. São Paulo: Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, [doi:10.11606/T.8.2019.tde-07112019-170454].
SCAFF, L. A. (2011). Max Weber in America. Princeton: Princeton University Press.
[1] Pelo que consta, esta é a única tradução em português no país e sua edição data de 1999. É uma tradução da sua obra-referência The souls of black folks de 1903. Obra que despertou um imenso interesse do sociólogo Max Weber, inclusive em traduzi-la para o Alemão. Detalhes da interação e das correspondências entre estes dois sociólogos em Morris (2015) e Scaff (2011). Segue aqui um trecho de uma das últimas cartas trocadas entre eles, em que Weber diz a Du Bois: “[…] I am quite sure to come back to your country as soon as possible and especially to the South, because I am absolutely convinced that the ‘colour-line’ problem will be the paramount problem of the time to come, here and everywhere in the world (November 17).” (SCAFF, 2011, p.100).
[2] Como o livro ainda não tem tradução em português, alguns trechos que aparecerão com indicação de página foram traduções realizadas por mim.
[4] Cf. Du Bois (1898; 1899, [1903]2007 e 1940).
[3] Apresento um fragmento de Du Bois em Dusk que é destacado pelos autores: “My life had its significance and its only deep significance because it was part of a Problem was, as I continue to think, the central problem of the greatest of the world’s democracies and so the Problem of the future world. […]. (p.31)”.
Como citar este post
SANTOS, Silvio M. A. Sociologia de Du Bois, Modernidade Racializada e Agência, Blog da SBS, [publicado 11.11.2020]. Disponível em: https://www.sbsociologia.com.br/2020/11/06/sociologia-de-du-bois-modernidade-racializada-e-agencia/