Por Jose Miguel Rasia (UFPR)
Neste post, Jose Miguel Rasia, organizador da Seção Especial: Pandemia Covid-19 da Revista Brasileira de Sociologia, faz uma reflexão sobre as pandemias ao longo da história, tema central do dossiê da RBS v. 9, n. 21 (2021).
As epidemias sempre foram objeto de preocupação da sociedade humana, para as quais se buscou as mais diversas explicações. Da antiguidade grega aos dias atuais, sua ocorrência foi motivo de preocupação das diferentes formas de pensamento. Do mito à religião e do senso comum à ciência, as epidemias sempre foram um desafio para a produção de narrativas que as tornassem compreensíveis. Origens, formas de disseminação e efeitos estiveram no centro dessas preocupações com a doença que surge de forma inesperada e atinge grandes conjuntos humanos num curto espaço de tempo. Foi assim com a Peste Negra, com a Gripe Espanhola e assim está sendo com a Covid-19 e tantas outras epidemias.
Os efeitos de uma doença em grande escala, e para a qual não se tem conhecimento que permita cura ou prevenção, produzem uma corrida na busca de meios que contribuam para a compreensão do fenômeno e para mitigar seus efeitos, quando não para debelar o agente patógeno. A gravidade de uma epidemia pode ser medida pela extensão territorial que assume e pelo número de vítimas, mas não só. Seus efeitos também se fazem sentir pela dimensão econômica que assume e que pode ser calculada pelo investimento em busca de conhecimentos, sob a forma de medicamentos, vacinas etc., pelo custo do tratamento e pela desaceleração da atividade econômica. Esses efeitos podem ser observados nas grandes epidemias da história, como a Peste Negra (Sanches, & Rasia, 2020) e a Gripe Espanhola (Schwarcz, & Starling, 2020) que, embora tenham ocorrido em momentos distintos, tiveram como resultado um alto custo em vidas humanas e devastação econômica.
No caso da COVID-19, o quadro que se desenha não é diferente, dada a velocidade de disseminação do Novo Coronavírus, a produção de novas infecções e o número de mortes, acompanhados pela queda do PIB e a paralização da economia dos países atingidos. Neste momento, qualquer dado que se utilize aqui, para dar a dimensão da epidemia e seus efeitos, seria rapidamente obsoleto. Não há como sustentar qualquer tendência que não seja a de agravamento da situação, enquanto não for possível controlar o poder de infecção pelo vírus.
Em que pese o caráter pandêmico da Peste Medieval e da Gripe Espanhola, o Novo Coronavírus teve o contexto da globalização e a circulação intensa de pessoas como um dos fatores responsáveis por sua rápida disseminação. Poderíamos afirmar que a pandemia atual segue o ritmo acelerado da contemporaneidade e das interações. Dessa forma, o tempo de disseminação da doença coincide com tempo dos processos sociais e isto se agrava porque o tempo de resposta que a ciência pode oferecer para uma doença desconhecida é maior do que o tempo de sua multiplicação. A relação entre as medidas de isolamento, distanciamento social e uso de máscaras – eficazes contra a disseminação do vírus – resultam na desaceleração do tempo e das atividades no mundo contemporâneo. Ou seja, como conciliar o mundo acelerado (Rosa, 2019) com a desaceleração produzida pelas medidas de contenção da pandemia? Segundo, porque a emergência do Novo Coronavírus e a pandemia de Covid-19, é um desses eventos cuja duração e efeitos produziram mudanças em nossas rotinas, facilmente observáveis; terceiro, porque vivemos num mundo e num tempo acelerados (Rosa, 2019) em que tudo acontece muito rapidamente, numa velocidade nunca antes experimentada; e quarto, porque, somada à velocidade, experimentamos a simultaneidade no tempo e no espaço de processos e eventos numa dimensão jamais imaginada pela sociedade humana.
O artigo de Maria Tarcisa Silva Bega e Marcelo Nogueira de Souza, nesta edição, analisa a disseminação do Novo Coronavírus em três regiões metropolitanas do país: São Paulo, Fortaleza e Manaus, e nos dá a dimensão da Pandemia de 2020 e de como seus efeitos se fazem sentir entre a população pobre dessas regiões. Assim, nos três casos analisados, pobreza, adoecimento e morte são efeitos que se potencializam em curto espaço de tempo. A temporalidade de um vírus e seu movimento natural podem ser apreendidos no texto de Gilberto Hochman para esta seção especial, “Quando e como uma doença desaparece. A varíola e sua erradicação no Brasil (1966-1973)”, que nos aponta o que representa um marcador temporal de um evento. Ele nos diz claramente que o marcador temporal do fim da varíola cruza vários fatores como políticas científicas e sanitárias; que o movimento natural de um vírus não se esgota por si mesmo e que as doenças e as epidemias não são fenômenos estritamente biológicos. Marcadores temporais só fazem sentido porque podem se referir, ao mesmo tempo, a eventos que afetaram a vida individual e a vida coletiva.
O poder, por vezes, pode negar a ciência e suas descobertas, mesmo no contexto da modernidade atual. O texto, nesta edição, “O uso político da cloroquina: Covid-19, negacionismo e neoliberalismo”, de Sandra Caponi, Fabíola S. Brzozowski, Fernando Hellmann e Silvia Bittencourt, analisa a relação entre o uso da cloroquina e o contexto neoliberal autoritário vivido pelo Brasil neste momento. O embate entre a ciência e o populismo plutocrático e autoritário (Sluga, 2017) serve para direcionar as medidas que, na modernidade, podem fazer frente a situações como a instaurada pelas doenças emergentes que afetam, como dissemos, grandes conjuntos humanos.
Pensar a política científica na conjuntura atual é o objeto do segundo texto desta seção especial da RBS, “A resposta da política científica e tecnológica à pandemia de Covid-19”, de Fabricio Monteiro Neves e Fernanda Sobral. O texto faz uma análise comparando o que se tem feito no Brasil com o que se faz em outros países, no que diz respeito ao desenvolvimento de políticas de Estado para a ciência e a tecnologia, tendo em vista o combate à Pandemia. Assim, o que é comum e subjaz aos quatro textos que compõem esta seção sobre a Pandemia de 2020 são a temporalidade e a duração da epidemia, velocidade de disseminação do vírus e o papel da ciência e do Estado na formulação de políticas que sejam capazes de conter o avanço da doença e seus efeitos perversos no contexto da modernidade neoliberal. Se a modernidade é o momento da história em que ciência e tempo se encontram, devemos considerar as tensões desse encontro. Substrato fundamental para a compreensão da experiência humana ameaçada por uma doença ainda desconhecida.
Referências:
Elias, Norbert. (1998). Sobre o Tempo. Rio de Janeiro: Zahar.
Rosa, Hartmut. (2019). Aceleração: a transformação das estruturas temporais na modernidade. São Paulo: UNESP.
Sanches, Leide da C., & Rasia, José Miguel. (2020). As Representações Sociais das Epidemias. Curitiba: Editora CRV.
Schwarcz, Lilia M., & Starling, Eloisa M. (2020). A Bailarina da Morte: a gripe espanhola no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.
Sluga, Hans. (2017). Donald Trump: between populist rhetoric and plutocratic rule. A talk delivered at a Workshop of the Program in Critical Theory at UC Berkeley, March 2017.
Thompson, Edward P. (1998). Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras.