Por Daphiny Carneiro Sodré Mendonça (Graduanda em Licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás)
Neste post, trazemos um pouco mais da série dos premiados no Sociólogos do Futuro do 20º Congresso de Sociologia. Daphiny Carneiro Sodré Mendonça analisa a atuação de artistas circenses e musicistas que têm as ruas como lugar de trabalho.
A pesquisa intitulada “O trabalho de artistas de rua em Goiânia/GO” foi fruto de uma iniciação científica realizada entre 2019 e 2020 na Universidade Federal de Goiás , cujo foco foi a constatação de que os artistas de rua são movidos pelo desejo de viver fora do sistema de trabalho atual. Nômades em busca da liberdade, se deparam com o semáforo nas ruas de Goiânia: “um callejero eletrônico”, nas palavras de um circense de rua entrevistado.
A pesquisa contou com uma amostra intencional do tipo bola de neve. Entrevistei 9 pessoas em Goiânia, 6 mulheres e 3 homens, todos jovens e com tempo significativo de trabalho nas ruas. A maioria dos entrevistados é imigrante, sendo dois brasileiros do interior de Goiás e os outros da Colômbia, do Uruguai e da Venezuela. É importante destacar que existem diversas formas de arte de rua, como os artesãos, mas nos delimitamos a estudar os circenses e musicistas. O circo, principalmente as performances de malabares, é privilegiado nas ruas, além de ser mais acessível, tendo em vista que o aprendizado da técnica circense é mais “barato” se comparado à compra de um instrumento musical. Se comparados a outros trabalhadores de rua, esses artistas tem um nível escolar mais elevado, todos terminaram o ensino médio e a maioria possui ensino superior incompleto.
A principal questão que a pesquisa tenta responder é: qual a motivação dessas pessoas ao empreender um trabalho itinerante? Por que elas desejam uma vida nômade? Três pilares respondem essas questões, o que nos fará entender porque a arte de rua existe e se mantém também na atualidade, pelo menos em Goiânia:
Primeiro, as transformações no mundo das artes: aprender, apresentar e vender a arte mudou na modernidade, os artistas demonstram um desejo em deslocar a arte dos museus, teatros e lonas de circo, tornando-a mais democrática.
Esses circenses e musicistas aprendem nas ruas de uma forma relativamente acessível; todos os entrevistados começaram aprendendo a técnica circense com amigos nas ruas, portanto, existem redes de cooperação entre os artistas. Eles se apoiam tanto no aprendizado das performances, quanto nas viagens. Além disso, muitos moram juntos, dividem aluguel e mantém contato contínuo sobre as melhores cidades para se apresentar. Segundo pilar: as transformações urbanas. O que implica na globalização e em um maior fluxo de carros nas cidades, destacando o semáforo como um lugar atrativo, devido à concentração de motoristas à espera do sinal verde. O terceiro pilar diz respeito às transformações no mundo do trabalho: o crescimento da informalidade também é um fator que influencia os artistas a procurarem as ruas, contudo, é interessante observar que não é que tais indivíduos apenas tenham dificuldade em entrar no mercado de trabalho formal e ter uma carteira assinada, eles simplesmente não desejam isso.
Richard Sennet (2009), em seu livro “A Corrosão do Caráter”, discorre sobre o capitalismo a curto prazo e sua influência nos valores sociais. Segundo o autor, o trabalhador se torna uma peça negociável, ele tem os direitos e benefícios trabalhistas, mas não existe certeza nenhuma de uma trajetória estável e linear no emprego, o que implica nos próprios valores que nós sustentamos na modernidade, na confiança, na lealdade. Os artistas de rua não se identificam com o modelo de trabalhador assalariado descrito por Sennet (2009) e, consequentemente, abdicam dos benefícios trabalhistas. Eles se veem muito mais como cidadãos do mundo, uma consequência da globalização. O que podemos perceber é que esses artistas preferem abdicar desse tipo de sistema que corrói os laços sociais. Ambas as trajetórias são instáveis, porém, a vida nômade tem o benefício dos riscos e das aventuras nas ruas.
Outro ponto importante aqui é compreender por que a cidade de Goiânia é tão atrativa para esses artistas de rua. Ao longo das entrevistas percebi que Goiânia é um “ponto de parada” na rota de viagens desse trabalho itinerante. Nesta cidade, os artistas buscam se profissionalizar, principalmente no Teatro Escola Basileu França, instituição púbica e gratuita. O Encontro Goiano de Malabares e Circo e muitos outros eventos e oficinas nessa área também são fatores que tornam a cena cultural de Goiânia atrativa.
Ademais, foi possível observar outros aspectos da organização do trabalho. As apresentações acontecem em sua maioria nos semáforos ou nas praças da cidade. Nas praças são em menor quantidade, há alguma dificuldade em atrair o público até ali, no semáforo não, o público não procura o artista, o artista vai até o público. Nas praças essas apresentações acontecem em rodas e os performers misturam elementos do teatro, da dança, da música. Quase sempre se apresentam com outros artistas, passam o chapéu e dividem a remuneração final entre o grupo. Já no semáforo, há a questão da racionalização do trabalho, os artistas sabem qual época do mês é melhor para receber dos motoristas, qual região paga mais. A época de pagamento, começo do mês, é sempre a melhor, as regiões centrais com maior fluxo de carros e diversidade de pessoas são as melhores também. Nos semáforos, começam a trabalhar geralmente a partir do meio da semana e principalmente nos finais de semana. A remuneração em ambos os espaços é muito instável, o artista pode receber em um sinaleiro ou roda 5 centavos ou uma nota de 50 reais. Eles trabalham de 4 a 6 seis horas por dia, mesmo assim, é importante destacar que uma hora de trabalho na rua não é o mesmo que uma hora de trabalho dentro de um escritório. Aqui é evidente o desgaste do corpo, há a ausência de banheiros públicos, o sol, a chuva, as violências entre trabalhadores de rua oriundas da disputa pelo ponto, os próprios riscos inerentes às ruas e o estresse gerado a partir dessas situações.
O espaço então é muito importante para definir a identidade profissional do artista de rua. A rua, segundo Roberto DaMatta (1997) está mais ligada ao legalismo jurídico e à impessoalidade. A rua implica nas perspectivas futuras dos artistas, muitos não desejam passar o resto da vida ali, desejam dar aulas, entrar para uma companhia ou apenas participar de eventos e convenções. A praça, por outro lado, é um espaço peculiar, caracterizado fundamentalmente pela socialização, ou seja, um lugar em que as pessoas vão caminhar, se encontram, se divertem.
O antropólogo Marc Augé (1994) descreve os não-lugares, para ele, um não-lugar é um espaço transitório, não relacional, não histórico e não identitário, um espaço sem laços. Portanto, pude concluir que o semáforo é um não lugar. O que me levou à outra pergunta: como pode uma identidade profissional se estabelecer em um não-lugar? Tendo em vista que o semáforo é o principal local de trabalho desses artistas, o “caixa eletrônico” citado no início desse texto.
Apesar da flexibilidade de horários e do rendimento que os artistas podem obter nas ruas, esse trabalho configura um período específico em suas trajetórias. Por isso, a identidade profissional (DUBAR, 2005) ainda não é bem estabelecida nessa profissão, pois, ao mesmo tempo em que há um reconhecimento entre os pares por meio do suporte nas ruas, existem dinâmicas espaciais que impossibilitam a consolidação de uma dimensão identitária. O não-reconhecimento da sociedade, seja em forma de ausência de políticas públicas que assegurem os direitos do artista de rua ou na desvalorização da profissão, também contribui nesse processo.
As representações sociais, conceito de Denise Jodelet (2001), acerca dessa profissão podem ser entendidas diante de um conjunto positivo, em que o público considera a atividade aqui descrita enquanto um trabalho, e um conjunto negativo, em que relacionam os artistas à mendicância e ao uso de drogas. De acordo com a representação social em análise, é possível traçar as características do público: aqueles alinhados ao conjunto positivo, geralmente são provenientes de estratos sociais mais baixos, mulheres e jovens, enquanto aqueles que desvalorizam, xingam e por vezes até agridem ou assediam as mulheres artistas, são pessoas de estratos sociais mais elevados, geralmente são homens e pessoas mais velhas. Há também uma representação social de acordo com o espaço: nas praças a recepção é melhor do que no semáforo, além de existir uma distinção entre o circo e a música. A música é bem vista, recebida como algo mais erudito, clássico, elegante, se comparada aos malabares no sinal. Os dois musicistas da amostra, anteriormente circenses, migraram para o ramo música por esse motivo. No caso da saxofonista entrevistada, ela relatou que se sentia objetificada sexualmente ao realizar as performances circenses, ao mudar para as performances com o sax a interação com o público mudou totalmente.
Sobre a questão de gênero, é perceptível as diferenças entre homens e mulheres artistas de rua, tanto na recepção do público quanto nas performances. Muitas mulheres relataram que já sofreram assédios nas ruas e existem algumas naturalizações de gênero nas performances. Nessa profissão, há também uma representatividade feminina consolidada em Goiânia, um exemplo é o Coletivo Muié do Riso, são mulheres, em sua maioria artistas de rua, que promovem eventos, oficinas e apresentações em praças, semáforos. Para as mães artistas também é evidente a desigualdade, tendo em vista a problemática dos arranjos domésticos, a divisão entre o trabalho produtivo, na esfera pública, e o trabalho reprodutivo, na esfera privada. Assim, existe uma dupla jornada de trabalho para essas mães, o que se encaixa no modelo de conciliação do trabalho abordado por Helena Hirata e a Danièle Kergoat (2020). Tais mulheres precisam se desdobrar, levando os filhos no semáforo, cuidando de todas as tarefas domésticas e organizando seus horários de trabalho de acordo com os horários da escola dos filhos, o que não acontece, via de regra, para os artistas que são pais.
A partir desse estudo é possível concluir que os artistas de rua são pessoas que transgridem um sistema fixo de valores. Estar na rua implica diversas intempéries: a defesa de um ponto de vista ideológico, contra a exclusão de determinados estratos sociais do espaço público, e a tentativa de escapar, mas também de se adaptar, às transformações nas relações de trabalho, ao modelo de flexibilização do capitalismo e à renovação do fazer artístico na modernidade. Os “malabarismos” não acontecem somente nas faixas de pedestres, nas rodas em praças ou entre a fila de carros ao passar o chapéu na esperança de conseguir uma moeda. As adversidades da profissão, assim como os recomeços incessantes dos ciclos de abre e fecha dos sinais, são acompanhadas também pela tentativa de tirar um sorriso de um anônimo na rua, de viver pela arte e, principalmente, por acreditar na possibilidade de transformação do mundo através de uma arte mais acessível. Assim como no trecho da canção O bêbado e a equilibrista, composição de João Bosco Mucci e Aldir Blanc, o artista de rua desempenha uma profissão permeada por reinícios: “dança na corda bamba de sombrinha, e em cada passo dessa linha pode se machucar, azar a esperança equilibrista, sabe que o show de todo artista tem que continuar”.
Referências bibliográficas:
AUGÉ, Marc. Dos lugares aos não lugares. In: Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. p. 71-105.
DAMATTA, Roberto. Casa, rua e outro mundo: o caso do Brasil. In: A Casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
DUBAR, Claude. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes, 2005
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595-609, set./dez. 2007.
JODELET, Denise. Representações sociais: um domínio em expansão. In: As representações sociais. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2001. p. 17-44.
SENNETT, Richard. Deriva: como o capitalismo ataca o caráter pessoal. In: A Corrosão do Caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. 14 ed. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2009. p. 9-33