Por Thyffane Tayana Martins da Rocha (Discente do curso de Ciências Sociais UFPA) e
Joranny Munhoz Gomes (Discente do curso de Ciências Sociais UFPA)
Este post abre uma série em que apresentamos os trabalhos premiados na modalidade Sociólogos do Futuro do 20º Congresso Brasileiro de Sociologia. Nele, Thyffane Tayana Martins da Rocha e Joranny Munhoz Gomes apresentam resultados da pesquisa que conduziram sobre a relação entre a atitude negacionista dos youtubers de extrema direita e a racionalidade neoliberal ao longo da pandemia de COVID-19.
Para melhor descrição do processo que envolveu o desenvolvimento de nossa pesquisa, iniciamos a escrita do presente texto propondo uma espécie de retrospectiva destes anos sem precedentes que foram 2020 e 2021, que, apesar de produtivo cientificamente para todas as envolvidas no projeto, foi também muito difícil de digerir.
Apesar de devastadora, a pandemia não se apresentou em um primeiro momento como catástrofe. Todas nós fomos percebendo sua evolução de forma paulatina. Fomos assimilando aos poucos quais eram suas ameaças e quais tipos de consequências teríamos em nossas vidas, mesmo que superficialmente. Esse processo de compreensão foi se dando de modo simultâneo à expansão e disseminação do vírus. Questionávamo-nos se o vírus realmente chegaria até nós, se viveríamos os mesmos problemas que acompanhávamos pelo noticiário, vindos da China, depois Itália, Espanha e EUA. Neste momento (em meados do mês de fevereiro de 2020) a pandemia ainda não significava a destruição de nossos planos para o ano que estava apenas começando, mas uma reformulação constante deles, um recálculo de rota a cada dia.
Com o posterior avanço da pandemia e altas taxas de contaminação que colocaram em xeque os sistemas de saúde de vários países, implementou-se no Brasil medidas de segurança e isolamento social que visavam conter o vírus, e como consequência a pausa no ano letivo, suspensão das aulas e atividades presenciais nas universidades. Iniciavam-se os longos meses de incertezas em relação à produção científica que viriam nos acometer. Estávamos tateando no escuro, acreditando que a melhor maneira de nos prepararmos para o que estava por vir era simplesmente encarar um dia de cada vez. Até que em agosto de 2020, nós, as autoras deste texto, juntamente com nossa orientadora, a professora Dra. Patrícia da Silva Santos, iniciamos o desenvolvimento do projeto de pesquisa “Perfeição de meios, depreciação de fins: Propaganda política digital e influenciadores da nova direita”.
Passamos a observar que, especialmente no período de pandemia, a propaganda da extrema direita tem mobilizado estratégias de propagação do caos, da desinformação, do anti-intelectualismo e do irracionalismo científico. O ataque ao social e ao político, já presente no liberalismo clássico, aparece agora radicalizado, sem o esteio da moral tradicional e, por isso, apresenta-se de modo especialmente destrutivo. O propósito da nossa pesquisa foi compreender a atitude negacionista dos youtubers de extrema direita como subjacente à racionalidade neoliberal, aqui pensada para além de dimensões estritamente econômicas. Conforme reflexões de Wendy Brown (2019), a defesa da liberdade individual no discurso neoliberal vem acompanhada de ataque ao social, à soberania e à justiça social. Além disso, ela coteja, atualmente, um niilismo destrutivo, que destrói os laços sociais em nome de uma liberdade antidemocrática, disseminando na esfera pública das redes sociais o que Theodor Adorno (2020) denominava de “fantasia de declínio”.
Conduzimos a pesquisa mesclando a metodologia teórica à empírica. Para a parte teórica, fizemos uma revisão bibliográfica de autores que discutem o seguimento político da direita extremista e suas formas de mobilização ideológica. Entre os autores que lemos como referencial teórico, destacam-se: Theodor W. Adorno, Wendy L. Brown, Letícia Cesarino e Esther Solano. Buscou-se contemplar tanto dimensões subjetivas da “personalidade autoritária” brasileira (mobilizando ideias de Theodor Adorno), como as suas articulações com um contexto neoliberal de desarticulação democrática e niilismo sociopolítico (como argumenta Wendy Brown).
Já para a parte empírica, fomos buscar exemplos concretos e próximos dessa mobilização dentro de nosso próprio país, da seguinte forma: selecionamos canais da nova direita no Youtube (com mais de 100.000 inscritos) e analisamos os discursos de seus influenciadores nos vídeos com base em nossas leituras teóricas. No material analisado, há, por exemplo, o vídeo de Kim Paim[1], no qual o influenciador utiliza um raciocínio tergiverso para contrariar os cientistas que apontam a maior potencialidade de contágio de novas cepas do coronavírus. Para ele, não haveria uma unidade de medida para contágio e, por isso, seria impossível medir essa taxa – são feitos paralelos com situações cotidianas, como a velocidade de um avião, sugerindo que ninguém consegue medi-la com o olhar. O vídeo em questão conta com mais de 68 mil visualizações.
Pode-se mencionar também o vídeo de Olavo de Carvalho[2], no qual há uma crítica ao apelo à autoridade da ciência. Para o ideólogo, isso seria uma “baboseira”, pois o consenso científico seria uma questão de número de votos – o que o aproximaria mais da opinião que de uma autoridade objetiva: “A maioria [das pessoas] não sabe qual é o fundamento da ideia de ciência, e usa então este emblema chamado de ciência como símbolo de autoridade. Isso quando se torna um hábito generalizado corrompe a inteligência das pessoas e as emburrece”.
Outra estratégia recorrente dos canais de extrema direita durante a pandemia consiste em convidar para lives “especialistas” que defendem tratamentos de eficácia não comprovada contra o coronavírus. É o que faz Camila Abdo, ao convidar o médico Fernando Suassuna para uma defesa efusiva da ivermectina[3]. Também nesse sentido, há o vídeo publicado no canal de Abraham Weintraub com uma entrevista com o médico Luciano Azevedo[4] . Tal médico teria atuado na linha de frente durante a crise sanitária em Manaus e defende, entre outras coisas, o tratamento com o medicamento Hidroxicloroquina e a ideia de que o coronavírus teria sido desenvolvido em laboratório. O vídeo utiliza a estratégia de não dizer o nome da doença ou do medicamento controverso para não sofrer censura da rede social.
As principais características que pudemos observar nos discursos dos canais são: anticientificismo, pseudo-intelectualismo, negacionismo, individualismo extremado, neoliberalismo, seguidos por valores morais conservadores que na prática se assemelham mais a um niilismo indiferente à esfera social. As redes sociais são o palco onde esses fatores ideológicos dançam e com os quais a nova direita se opõe a tudo relacionado à democracia, alegando que há uma intervenção exagerada do Estado na economia, educação e até mesmo na área da saúde pública. Os apoiadores da nova direita se aglutinam em grandes grupos para reivindicar retrocessos sociais, pois estes reconfigurariam a sociedade desigual na qual eles retomariam antigos privilégios. No atual período de pandemia da COVID-19, a nova direita propaga, no espaço aberto da internet, o caos e a desinformação.
Figura 1 – Matéria exemplificando o aumento de Fake News durante a pandemia.
Vários elementos conformadores da solidariedade social são menosprezados pela nova direita: não há respeito diante dos sofrimentos dos infectados e das mortes pela pandemia; são descreditados dados cientificamente comprovados e perde-se até mesmo o respeito e cuidado com o próximo (representados pelo isolamento social e uso de máscaras). Se a nova direita apoia que cada cidadão exerça uma conduta de só pensar em si mesmo, negar os fatos e ser indiferente a uma situação socialmente alarmante, podemos concluir que apoia também o ataque ao social em si mesmo e às instituições públicas (hospitais, universidades e medidas governamentais). A desobediência civil às medidas de saúde pública é justificada e encorajada pela nova direita como “liberdade de expressão”. Trata-se, porém, de uma liberdade egoísta, aprisionada a conceitos vazios e falta de percepção do contexto sociopolítico geral no qual estamos inseridos.
Além de influenciar várias pessoas a não serem solidárias e empáticas em um período em que conter a pandemia depende disso, a nova-direita praticamente atua, através de seu discurso digital, a favor de um emburrecimento coletivo: onde ser “inteligente” é associado a desprezar o conhecimento científico produzido nas universidades e ser um “cidadão patriota” é apoiar a economia em detrimento da condição dos trabalhadores.
Figura 2 – Matéria do congresso em foco sobre negacionismo e covid-19
Os resultados alcançados pela pesquisa indicaram que a ideologia da extrema direita baseia-se em uma glorificação da liberdade, de forma desatrelada da sociedade e da democracia (como defende Wendy Brown), promovendo, também, o sacrifício da ciência. No contexto de pandemia, ela propaga na esfera pública impulsos destrutivos e autoritários (reeditando aspectos abordados por Adorno em relação à propaganda potencialmente fascista), que tem consequências para além das redes sociais.
Referências:
ADORNO, Theodor W. Estudos sobre a personalidade autoritária. Editora Unesp; 1ª edição, 2019.
A REAL SITUAÇÃO DA CRISE, DIRETAMENTE DE MANAUS, COM DR. LUCIANO AZEVEDO. Canal Abraham Weintraub, Youtube. Disponível em: https://youtu.be/JFCxhiJwuQU – Acesso em: 05 mar 2021.
BROWN, Wendy L. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, outubro de 2019.
CESARINO, Letícia. “Identidade e representação no bolsonarismo: corpo digital do rei, bivalência conservadorismo-neoliberalismo e pessoa fractal”. Rev. Antropol., 2019, v. 62, n. 3.
CIÊNCIA E FALSA CIÊNCIA. Canal Olavo de carvalho, Youtube, 2021. Disponível em: https://youtu.be/TjByhJIiaak – Acesso em: 18 fev. 2021.
INFECTOLOGISTA E PNEUMOLOGISTA, FERNANDO SUASSUNA DIZ: “A IVERMECTINA É A MAIS USADA”. Canal Direto aos fatos, Youtube. Disponível em: https://youtu.be/Anw9537SIQo – Acesso em: 18 fev 2021.
O CASO DOS 70% MAIS CONTAGIOSO E OS BANQUINHOS DE MADEIRA. Canal Kim Paim, Youtube. Disponível em: https://youtu.be/_cYKz2k8Fag – Acesso em: 18 fev. 2021.
SOLANO, E. (org.). O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018.
[1] Disponível em: https://youtu.be/_cYKz2k8Fag
[2] Disponível em: https://youtu.be/TjByhJIiaak
[3] Disponível em: https://youtu.be/Anw9537SIQo
[4] Disponível em: https://youtu.be/JFCxhiJwuQU