Norbert Elias e a sociologia ao vivo

Publicado em 26 de novembro de 2020

Rodrigo da Rosa Bordignon
Universidade Federal de Santa Catarina


Sergio Miceli
Universidade de São Paulo

Neste post, Rodrigo da Rosa Bordignon e Sergio Miceli refletem sobre a importância da pesquisa empírica a partir das lentes do sociólogo alemão Norbert Elias.

Em carta a Pierre Bourdieu, em janeiro de 1987, Norbert Elias lamenta as poucas oportunidades de “sentar e dedicar algum tempo” à discussão do desejo comum de “desenvolver a teoria sociológica em interação constante com a pesquisa empírica” (JOLY, 2017, p. 98).

Trinta anos após sua morte, a vivacidade do trabalho empreendido por Elias reside, efetivamente, na potência do entrelaçamento entre o mosaico de fatos (modos à mesa, habitações, arte, vestuário, estigmas, constrangimentos, etc.), de fontes
(guias de conduta, enciclopédias, romances, biografias, entrevistas, etc.) e as noções de condensação mobilizadas (interdependência, figuração, poder, dominação) em função da conexão de sentido visada. A hipótese dando liga à combinação de elementos sobrepostos contém o cerne da sociologia elisiana: os condicionamentos sociais como produto e efeito da dinâmica inerente à própria vida societária.

De nada adianta, portanto, buscar a natureza substantiva capaz de expressar a “essência” ou a singularidade do “eu”, do “nós”, do “eles” e/ou das “coisas” e “valores”: experiências que só fazem sentido no emaranhado de interdependências que nos fazem “seres humanos entre outros” (ELIAS, 2008, p. 13). Os limites da separação entre as feições macrossociológicas (morfologia, códigos de conduta, concepções de valor, etc.) e as lentes de percepção advindas das representações dos agentes, imersos em paixões, interesses, conflitos, preconceitos, enfim, no manancial de sentidos
vivenciados em registro de singularidade, podem ser redobrados pelo intento em separar e/ou depurar o léxico conceitual operado pela sociologia de Norbert Elias. Logo, os conceitos são definidos em feitio aberto, ou seja, o conteúdo articula o argumento analítico aos sentidos derivados das lutas sociais sucedidas em meio às tramas restituídas. Sem recorrer a formalizações empoladas, o duplo movimento científico e social é, pois, articulado, escorado no trabalho científico e na vida societária.

A reconstrução circunstanciada dos domínios da vida social e de sua inserção refratada pelo entrelaçamento entre segmentos (classes, frações, facções) e hierarquias em diferentes níveis, desautoriza qualquer um deles a provocar o “efeito de arrastão” (MICELI, 1999, p. 120). As interdependências e seus significados ajustados às dinâmicas em tela são equacionadas pelo teor expressivo da vida societária, pelo empenho em coadunar processos mais gerais ao desígnio de “iluminar o destino das
pessoas” (ELIAS, 1995, p. 28) em função de sentimentos de aversão e repulsa; das disposições sociais que se transfiguram em diferentes níveis de distanciamento em relação aos demais indivíduos, e igualmente de representações sobre como essas distâncias são valoradas e escalonadas. A “teoria sociológica da interdependência” (ELIAS, 2001, p. 157) serve, portanto, de fio conector entre uma variedade de fatos, cujos sentidos só se revelam na medida em que são encaixados na estrutura de figurações que implicam em obrigações e efeitos sobre as jogadas dos agentes. À vista
disso, as diferenças são inseparáveis das representações que lhes dão o sentido e a razão de ser.


As implicações de tal postura se estendem à renovação do léxico e dos
procedimentos disponíveis à pesquisa sociológica. A prática da etiqueta, por exemplo, representa o modo através do qual a sociedade de corte enxerga a si mesma no espelho, ou seja, o meio que garante que “cada indivíduo, e antes de todos o rei” tenha seu “prestígio e a sua posição de poder relativa confirmados pelos outros”. A dinâmica dos cerimoniais é envolvente, entrelaça prestadores e prestações em uma mesma figuração; embora pitoresco, o episódio da “blusa da rainha”, resume concretamente o sistema de direitos e deveres nos quais estavam inscritos os indivíduos, e indica o quanto sua presença ou ausência em determinado ambiente impõe responsabilidades mutuas. Não é difícil encontrar paralelos que explicitem concretamente os jogos sociais de vida e morte nos quais todos estamos engajados.


O desenrolar da narrativa ganha colorações e tons variados, com o objetivo de deslindar o que dá sentido ao jogo social em marcha, expondo sua expressividade e as bases sobre as quais ele se desenrola. Assim, construído por uma sucessão de níveis em homologia – a cerimônia no quarto do rei, o pátio dos castelos, a decoração das casas, a frequência a pub’s, as caracteristicas sociodemográficas, os “moínhos da boataria”, os modos à mesa, o bom uso da língua, o ato de trinchar, etc. –, o enredo sociológico
exprime diferenças em domínios distintos e respalda, em cada um deles, as concepções o social e as hierarquias que permitem restituir as interdependências que presidem a “totalidade” do mundo social. A noção de figuração se presta, então, à apreensão de múltiplos níveis de interdependências, sejam as posições diferenciais ante aos modelos
aristocráticos que marcam os estratos intelectuais de classe média na França e na Alemanha, ou a situação dos jovens do “loteamento” em Winston Parva.


As lentes de Norbert Elias são, portanto, multifocais. A trama vivida e os
elementos que fazem parte do imbroglio coercitivo amarram e fazem pesar as valências psico-afetivas e os suportes institucionalizados no interior dos quais as tensões e conflitos são desvelados. Atento à função precípua da “arte de observar” e de “lidar” com as pessoas, a sociologia elisiana realça os personagens enredados em uma espécie de autonomia na dependência: a variabilidade, o alcance e a previsibilidade das jogadas correspondem ao tênue equilíbrio de tensões e à extensão das cadeias de interdepêndencia em que estão enredados os individuos. Afinal, o abandono do homo
clausus e o deslocamento do eixo analítico visando as imbricações entre a estrutura do tabuleiro social e a psicogênese individual abrem caminho promissor à compreensão fina das apostas e aos efeitos do alargamento e diversificação das cadeias de interdependência.

As classificações sociais tem o “seu ferrão”: operam tanto como arma de defesa quanto de ataque (ELIAS e SCOTSON, 2000, p. 132). A obrigação de viver de acordo com o cargo e a posição, o “preconceito social” e as barreiras emocionais erguidas pelo sentimento de virtude superior, a simultaneidade da aproximação espacial e do distanciamento social, em suma, os fluxos e contrafluxos que nos aprisionam em um duplo vínculo. O poder “não é um amuleto” (ELIAS, 2008, p. 81) e as concepções de excelência vigentes não variam em função de algo intrínseco ou transhistórico: a dominação depende do valor que a sociedade atribui às práticas e de como elas operam como alicerce de uma dada figuração. Cabe à sociologia entender pelo que se batem os indivíduos, o que dá sentido aos seus movimentos e apostas, pois o mundo social pesa decisivamente, chama-nos incessantemente à ordem.

Referências bibligráficas:

ELIAS, Norbert (1995). Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Zahar.
_ (2001). A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de
corte. Rio de Janeiro: Zahar._ (2008). Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70.
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. (2000). Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
JOLY, Marc (2017). Une sociologie “postphilosophique”? Norbert Elias en dialogue avec Pierre Bourdieu. Zizel, n. 2.
MICELI, Sergio (1999). Norbert Elias e a questão da determinação. In: Waizbort, L. (Org.). Dossiê Norbert Elias. São Paulo: Edusp.

Como citar este post:

BORDIGNON, Rodrigo; MICELI, Sergio. Norbert Elias e a Sociologia ao vivo. Blog da SBS, publicado em dia.mês.ano. Disponível em: [linkdapublicação]

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