Por Fernando de Jesus Rodrigues (UFAL) [1]
Neste post, Fernando de Jesus Rodrigues aborda os “Neutros” como um novo coletivo criminal em Maceió, e o impacto desse fenômeno e da pandemia sobre os homicídios na capital alagoana, que conhece redução desde 2010.
Fotografia: Fernando de Jesus Rodrigues, arquivo pessoal.
As pichações na grota e as divisões do território entre facções
Os autointitulados Neutros se posicionam, desde 2017, em oposição ao PCC e ao CV, que se tornaram, nos anos 2010, os principais atores do comércio de drogas em quebradas de Maceió e cidades do interior de Alagoas. Tal fenômeno sinaliza novas tramas de negócios ilegalizados e de proteção, em um contexto de crise econômica no período pós-Temer, agravada pela pandemia. O surgimento e a dissidência de grupos criminais contrários ao PCC e ao CV coincidem com outro fenômeno: o aumento da coesão de forças de segurança em torno do discurso de “recuperação” de territórios urbanos e instituições de encarceramento pelo estado, visto pelas polícias (incluindo as penais) como questão de soberania. Qual o impacto do surgimento dos Neutros sobre a tendência de redução de homicídios em Maceió e Alagoas, perceptível desde 2010?
Junho de 2021, manhã chuvosa de sábado. Eu e Ari Consciência descemos, dentro de um carro, a rua Santa Sofia[2], uma das que entrelaçam a Grota do Amanhecer, situada em um dos bairros mais populosos de Maceió. Atuamos em um projeto de educação popular para crianças e adolescentes em parceria com Jairo, pastor e liderança popular que coordena uma ONG.
Já perto do destino, avistamos uma pichação em um muro: TDN (Tudo Neutro) – sigla que sinalizava às outras biqueiras que naquela região o corre (tráfico) era dos Neutros. Realidade nova, já que antes quase todas as biqueiras e bocas na grota corriam com o PCC e algumas, a minoria, corriam com o CV. TD3 (Tudo 3, PCC) e TD2 (Tudo 2, CV) eram algumas das pichações nos muros que marcavam os territórios e as zonas de circulação de moradores na grota.
No início de 2020, antes da chegada dos Neutros, a tensão entre os pontos de venda havia crescido. Jovens de bocas do CV de regiões vizinhas fortaleceram as bocas-CV dentro da grota e tentaram ganhar espaço. Inicialmente, ficou a impressão de um zoneamento negociado. Todavia, semana a semana, a luta por espaço se tornou mais violenta. Em meio a relatos de conflitos com armas de fogo, as pichações do PCC eram cobertas pelas do CV, e depois o contrário.
Alguns meses depois, após um período de agravamento da pandemia, ainda em 2020, as pichações do PCC estavam reduzidas e, em outras áreas, foram substituídas pelas inscrições Neutros, TDN, Tudo Neutro. Fato que tornou ainda mais nítido o fortalecimento dos Neutros na grota, dividindo o espaço com biqueiras que corriam com o PCC. O ápice desses conflitos entre PCC e Neutros se deu com o assassinato de dois adolescentes. As mortes indicavam até que ponto os autointitulados Neutros estavam dispostos a marcar uma posição de ruptura contra os aliados PCC na quebrada.
Dos presídios às quebradas e suas interdependências: mercado e governo nas periferias
O fortalecimento de negócios e redes de proteção entre os que se autodenominam Neutros não é específico da Grota do Amanhecer, nem teve início em 2021. Há relatos de enunciação de controle territorial dos Neutros, em Maceió, desde 2017. O primeiro contato que tive com as inscrições TDN, Tudo Neutro, se deu em 2019, na Planície dos Lagos, um extenso bairro periférico de Maceió. Elas soaram como uma desconcertante novidade e veio acompanhada de assassinatos na quebrada. As mortes também sinalizaram uma dissidência entre biqueiras anteriormente aliadas do PCC e depois anunciadas como dos Neutros. Essas dissidências começaram nos presídios e tiveram estrondosa repercussão nas periferias de Maceió, uma vez que os negócios (ilegais) e as redes de proteção que dão sustentação a eles se estruturam em interdependências entre cadeias e quebradas[3].
Após a anunciação dos Neutros como um coletivo criminal, os espaços dos presídios e do sistema socioeducativo alagoanos também foram redefinidos[4]. Os pavilhões e unidades categorizadas informalmente como do PCC e do CV tiveram reduções de presos, enquanto que outros, antes sem associação a um dos coletivos criminais nacionais, agora se tornaram Neutros. Justamente esses espaços se tornaram os mais superlotados, pela necessidade de remover dissidentes – agora enunciados como Neutros – de pavilhões controlados por faccionados do PCC ou do CV que intentavam vingar o que consideravam traição. Tais eventos ganharam mais força com as operações de forças de segurança estaduais e federais, que passaram a enunciar o PCC e o CV como focos de combate em escala nacional[5].
Quem está no mundão[6] sempre conta com a possibilidade de ser preso e ter sua caminhada[7] avaliada por potenciais afavor[8] ou alemão dentro da cadeia e do sistema socioeducativo. Saber para qual pavilhão ou unidade se dirigir quando se vai preso significa aumentar suas chances de proteção e fortalecimento de parcerias nos negócios. Um garotão pode arrumar, a partir de relações feitas na prisão, uma posição em uma boca ou biqueira quando sair da cadeia. No entanto, se ele estiver a fim de sair do crime, pode trabalhar em um posto de gasolina, casa de show ou como uber, na frota de uma dessas lideranças, e se tornar um considerado. Pode, ainda, como sabemos, se tornar evangélico, operando uma ruptura mais radical com o crime. Assim, lideranças prisionais também são empreendedoras, conduzindo negócios baseados em trabalho pouco regulado, e acabam por dar apoio a quem não consegue entrar no mercado formal, alimentando cadeias de ocupações para pessoas marginalizadas nas periferias urbanas.
No caso da Planície dos Lagos, Tony – a liderança prisional que tinha voz nessa quebrada – queria o rompimento com o PCC, mas alguns poucos aliados que viviam o cotidiano nas esquinas e biqueiras queriam manter a aliança. Estava posto o dilema: apoiar alianças já feitas com o PCC e o CV ou aumentar as fileiras dos Neutros, que cresciam?
Lideranças prisionais com poder de governo sobre quebradas em Maceió passaram a vivenciar tensões sobre a divisão das obrigações vindas das alianças criminais com facções nacionais – CV e o PCC – e seus negócios nas quebradas. Suas decisões precisavam passar por comunicações e acertos com lideranças faccionalizadas em presídios do sudeste e centro-oeste. Para muitas delas, isso tem significado inferiorização hierárquica, perda de autonomia e sujeição à exploração injusta. Tal situação gerou novos posicionamentos nos presídios e, a partir daí, pressões sobre bocas e biqueiras de Maceió e municípios do interior de Alagoas.
A Planície dos Lagos, por exemplo, conheceu conflito anterior, em fins de 2016, e início de 2017, que havia redundado em uma hegemonia-PCC. No entanto, em 2019, a situação era diferente, e os conflitos se deram para que bocas e biqueiras se reposicionassem contrariamente ao PCC e “a favor” dos Neutros. Em 2021, surpreendentemente, as biqueiras se tornam bocas, aliando-se ao Comando Vermelho.
Em suma, a grande maioria dos conflitos letais entre facções, após 2017 e durante a pandemia, parece ter se dado sob a forma de dissidências de aliados-CV contra o CV e aliados-PCC contra o PCC. Os dissidentes convergiram, de maneira inédita, para a simbolização dos Neutros como uma nova referência de parcerias em negócios e redes de proteção criminais em Maceió. Ademais, isso parece ter estimulado nova onda de tentativas de invasões territoriais promovida por CV, PCC e Neutros, uns contra os outros. Em outros casos, ainda, parecem ter havido negociações sem derramamento de sangue, em que aliados Neutros se tornaram aliados CV ou aliados PCC. Os movimentos não são simples e requerem maior atenção.
Facções, pandemia e homicídios
Neste novo cenário, ficam algumas questões: será que o surgimento dos Neutros indica um combate às facções nacionais ou um diálogo conflitivo e agonístico com elas? Não podemos esquecer que o repertório de símbolos de alianças e de justiça – o “correr pelo certo” e o “lomba errada” – enunciados pelos Neutros é aquele que chegou principalmente com o PCC e o CV no início dos anos 2000. Portanto, o acervo de símbolos a partir dos quais grupos se enunciam Neutrosé marcado pela linguagem das facções nacionais CV e PCC, tornadas também símbolos locais, agora manuseado contra elas.
A redução das taxas de homicídios que Maceió e Alagoas conhece desde 2010 mantém fortes relações com a penetração de alianças faccionais no varejo de drogas, mesmo que ainda se mantenham altas. No gráfico 1, abaixo, destaco essa tendência, apontando alguns fatos relacionados ao mundo faccional em Alagoas.
Ainda é cedo para asseverar algo sobre o impacto do aparecimento dos Neutros na tendência de redução das taxas de homicídios de Maceió. Mas podemos observar alguns dados e propor algumas hipóteses para discussão. Quando olhamos apenas os números absolutos de crimes violentos letais e intencionais, no intervalo entre 2017 e 2021 (Gráfico 2), e cotejamos com as experiências de campo de diferentes pesquisadores do GRUPPAES/UFAL, ganha força a hipótese de que os conflitos Neutros “versus” PCC e Neutros “versus” CV são os movimentos que têm tido importante contribuição para o aumento da letalidade nos conflitos em periferias de Maceió.
A partir do gráfico 2, podemos ver como o período entre maio de 2017 e outubro de 2018 é marcado por subidas e descidas abruptas nos números de homicídios mensais, congruente com relatos, vindos de diferentes bairros, associados à dissidência de biqueiras que passaram a se enunciar aliadas dos Neutros.
Após um período de relativa calma – entre janeiro e agosto de 2019 – podemos ver, a partir do gráfico 3, como em setembro de 2019 o número de homicídios aumenta agudamente, mantendo um curso de reduções e aumentos abruptos até o período pandêmico. Durante os intervalos em que vigeram decretos estatais que impunham restrições de circulação pela cidade, visando enfrentar a pandemia, o número de homicídios caiu significativamente. Já os períodos associados à flexibilização das restrições de mobilidade, aparecem nitidamente associados ao movimento anterior à pandemia, de aumentos e reduções bruscas do número de homicídios. Esses intervalos são congruentes com os relatos que situam tentativas de invasões e guerras territoriais entre CV, PCC e Neutros em diferentes regiões de Maceió. Mas notemos, o número de homicídios nesse período ainda é muito mais baixo que aqueles do período entre 2006 e 2013, no qual Maceió e Alagoas[9] figuraram entre as capitais e estados mais violentos do Brasil.
Em suma, o surgimento dos Neutros coloca novas questões para compreender os conflitos nas periferias de Maceió e, potencialmente, de capitais do Nordeste, onde o fenômeno da contraposição às facções nacionais também se coloca, expresso em diferentes figurações urbanas e posturas de atores criminais.
[1] Professor do Instituto de Ciências Sociais e atual coordenador do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas. Coordena o GRUPPAES (Grupo de Pesquisa Periferias Afetos e Economias das Simbolizações)
[2] Por questões éticas, os nomes de lugares e pessoas são fantasiosos, com exceção de Ari Consciência, que integra o GRUPPAES.
[3] Ver, nesse sentido, GODOI, Rafael. Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2017 e MALLART, Fábio; RUI, Taniele. Cadeia ping-pong: entre o dentro e o fora das muralhas. Ponto Urbe, v. 21, p. s.p., 2017. Disponível em: <http://journals.openedition.org/pontourbe/3620>
[4] Para compreender algumas dessas questões, ver RODRIGUES, Fernando de Jesus. “Corro com o PCC”, “Corro com o CV”, “Sou do crime”: facções, sistema socioeducativo e os governos do ilícito em Alagoas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 103, p. 1–21, 2020, RODRIGUES, Fernando de Jesus; CARVALHO, Ada Rízia Barbosa de; SANTOS, Alana Barros. Notas sobre redes de proteção: facção, família e crime em periferias urbanas de Alagoas. Diversitas Journal, v. 5, n. 3, p. 2297–2316, 2020. CARVALHO, Ada Rízia Barbosa de. Cadeias de tensão: repertórios disciplinares de facções e do sistema em unidades de internação alagoanas. 2021. 206 f. Programa de Pós-graduação em Sociologia, Universidade Federal de Alagoas, 2021 e SANTOS, Sérgio da Silva. Facções criminosas em Alagoas: violência urbana, racismo, sociabilidades juvenis e territorialidades. Maceió: do autor, 2020.
[5] Nesse sentido, as operações Flashback I e II são emblemáticas. Ver “Operação flashback tem dezenas de presos e um morto em Alagoas”, em https://www.gazetaweb.com/noticias/policia/operacao-flash-back-tem-dezenas-de-presos-e-um-morto-em-alagoas/, acesso em 24/08/2021 e “FLASHBACK II: Operação contra o PCC já prendeu 34 pessoas em Alagoas”, em https://gwebdev.redacms.com/index.php/noticias/policia/flashback-ii-operacao-contra-o-pcc-ja-prendeu-34-pessoas-em-alagoas/, acesso em 24/08/2021.
[6] O mundo fora da cadeia, geralmente relacionado às experiências de diversão (festas e orgias), do crime (tráfico e roubo) e da família.
[7] Trajetória e comportamento na família, na quebrada, com moradores e no mundo do crime.
[8] Aliados
[9] Ver, sobre o período, NASCIMENTO, Emerson Oliveira Do; GAUDÊNCIO, Júlio César. Homicídios em Alagoas: desafios e evidências empíricas. Latitude, v. 7, n. 2, p. 109–132, 2013.