Esse texto é uma versão modificada de uma apresentação oral na live “Nossas Conquistas”, organizada pelo Comitê de Relações Raciais da SBS, em 11/11/2020, parte da programação do SBS Convida: Papo reto sobre racismo.
Por Paulo S C Neves
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do ABC e Pesquisador do CNPq.
Para muitos, 2020 foi um ano atípico em termos de discussão das questões raciais no Brasil e no mundo. Por um lado, os efeitos da pandemia do Covid 19 foram sentidos de forma mais crítica pela população mais vulnerável em termos socioeconômicos, especialmente, aquela majoritariamente negra. Por outro lado, a visibilidade midiática alcançada pelos protestos contra as cenas de violência policial a partir do caso de assassinato de George Floyd, em maio de 2020, nos EUA, gerou um processo de emulação na imprensa brasileira, a qual deu maior espaço para a discussão sobre o racismo e sobre as desigualdades raciais no país. Nesse sentido, não seria impreciso dizermos que nunca se debateu tanto esses temas no espaço midiático brasileiro como em 2020. Por tudo isso, talvez estejamos em um momento ímpar para repensar os caminhos trilhados até aqui visando a compreensão e superação das desigualdades raciais entre nós. Seria a ocasião para reavaliarmos o que foi feito e o que ainda precisa ser feito para atingirmos tais objetivos.
Pensemos, por exemplo, nos resultados obtidos a partir da implantação de ações afirmativas no ensino superior desde o início dos anos 2000. Como sabemos, esse debate galvanizou a esfera pública na primeira década desse século, sendo um verdadeiro divisor de águas sobre o modo como a discussão sobre relações raciais se dava entre nós. Não seria exagero dizer que essa controvérsia jogou uma pá de cal na legitimidade do discurso da democracia racial, o qual, malgrado alguns defensores saudosistas à frente do Estado, tem tido pouco ou nenhum espaço nas arenas públicas atuais.
Essas ações irão tornar cada mais legítima a ideia de que o Estado deve intervir para diminuir as desigualdades raciais, como se pode constatar pelas decisões no âmbito do Tribunal Superior Federal (TSF) difundindo a tese de que ações afirmativas de cunho racial são constitucionais[2], bem como a ação legislativa ao aprovar leis definindo cotas de corte racial em domínios específicos[3].
Duas décadas desde a introdução dessas medidas na vida pública brasileira nos possibilitam a distância histórica para avaliarmos seus principais efeitos, sobretudo no âmbito da educação. O principal deles: o crescimento do número de alunos negros no ensino universitário. Em 2018, segundo pesquisa do IBGE[4], os negros eram 50,3% dos alunos em universidades públicas; Os dados da ANDIFES mostram o crescimento dessa presença: em 2001, a porcentagem de negros nas universidades federais era de 34%; já em 2018, esse percentil chega a 51.2 % (sendo 12% destes, pretos) dos estudantes dessas mesmas universidades. De igual modo, a taxa de conclusão de Ensino Médio dos jovens negros entre 18 e 24 anos subiu de 58,1 para 61,8%. Embora esses dados sejam alvissareiros, são ainda menores que aqueles relativos aos dos jovens brancos, pois, ainda em 2018, 76.8% destes terminaram o ensino médio.
Esse mapa mostra que, apesar dos pesares, as desigualdades raciais estão diminuindo no âmbito do ensino universitário, uma vez que esses dados são próximos à composição por cor da população brasileira, na qual os negros são 55.8%. Malgrado a inexistência de informações disponíveis que façam um recorte por cursos, o que deixa no ar a suspeita de que os negros são sub-representados nos cursos de maior concorrência na entrada, há uma evidente melhoria em relação ao período anterior à adoção de ações afirmativas.
Tudo isso fala muito de nossas conquistas e, ao mesmo tempo, de nossos desafios. Para me restringir aqui, às conquistas, creio que, não obstante essas políticas apareçam como a face mais vistosa e visível das lutas antirracistas, o maior impacto delas talvez esteja se dando na esfera do que, na falta de outra terminologia, podemos chamar de “imaginário nacional”. Sei bem das críticas a esse conceito e, se o uso, é para dar conta de um processo bem amplo que está se constituindo diante de nós em que o modo de percepção hegemônico sobre raça e racismo está se transformando. Alguns indícios que vão nesse sentido, e que podem ser também pistas de pesquisas futuras, são: cada vez mais jovens que se afirmam como negros e dizem terem se descoberto enquanto tais nas universidades; o que se traduz também na criação de coletivos de jovens negros, tanto nas universidades como fora delas; o aumento da proporção de pretos e pardos nos censos e nos PNADS (em 2000, os pretos e pardos eram 45% da população brasileira, em 2010 esse número cresce para 50% e em 2018 esse número é de 55,5%), como a indicar uma maior reivindicação negra por parte da população; a maior presença da pauta antirracista no espaço público, questionando práticas instituídas de há muito e ainda prevalecentes na sociedade brasileira, a exemplo das ofensas raciais, da violência policial e a visibilidade alcançada pelo feminismo negro nos debates sobre gênero,
Não há como associar essas mudanças apenas às ações afirmativas, mas, alguns depoimentos de jovens colhidos em minhas pesquisas sobre essas políticas no Estado de Sergipe, levam-nos a crer que essas ações têm efeitos para além dos espaços universitários. Muitos desses depoentes afirmam ter se convencido a realizar a seleção para as Universidades por conta da existência das cotas, às quais ampliariam suas chances e lhes possibilitariam concorrer em pé de igualdade com alunos da rede privada. Em um dos grupos focais, uma aluna que entrou pelas cotas na Universidade, afirmou que decidiu concorrer pelas mesmas razões elencadas acima, mas que ficou muito surpresa quando descobriu que ela era a terceira na classificação geral dentre os aprovados para o seu curso. Ou seja, as ações afirmativas agiram aqui como um processo de neutralização da auto-exclusão tão típica entre jovens de classes populares. Esse “sentir-se com direito a” e “sentir-se capaz de” de grupos tradicionalmente vistos como inferiores e sem direitos revelam efeitos ainda pouco dimensionados das políticas públicas igualitaristas das últimas décadas.
Isso parece-me ser fundamental para entendermos o que está acontecendo em termos de autoimagem e autoestima de alguns dos beneficiados pelas ações afirmativas: é muito revelador o fato de que jovens de escolas públicas se sintam autorizados a sonhar com a vida universitária. Ao avaliarem como reais suas chances de sucesso a partir da introdução das cotas, eles se projetam para um mundo diferente do quotidiano que os cerca. Algo que vem acontecendo não apenas nas capitais e grandes centros, mas também em cidades menores do interior. Encontrei jovens estudantes em no Sertão do Nordeste, em escolas que nem sempre têm as melhores condições físicas e de ensino, onde o mesmo fenômeno era visível.
A possibilidade de frequentar uma universidade pública passa a ser vista como algo com o qual se pode sonhar, gerando um sentimento de autoconfiança que se traduz também na reivindicação étnico-racial. Dentre os estudantes que responderam questionários nessas pesquisas, a grande maioria se identificava como negra e sentiam orgulho de sua cor.
Aqueles que não pensavam em ir para a universidade convocavam razões econômicas, pois precisavam trabalhar; o que nos lembra que as atuais políticas reduzem as desigualdades, mas não as eliminam: as políticas de combate às desigualdades econômicas são necessárias.
De todo modo, essas mudanças simbólicas ocorrem mesmo sob condições políticas não tão favoráveis, com o crescimento da extrema-direita no país nos últimos anos, como provam os debates suscitados sobre a violência policial após a repercussão internacional da morte de George Floyd.
Contudo, dadas as desigualdades que persistem, necessitamos de políticas públicas para além do âmbito educacional para que no futuro tenhamos maiores avanços e que, finalmente, as desigualdades raciais, assim como outras desigualdades, declinem. Para isso, precisamos conectar as ações afirmativas com outras políticas públicas em áreas como a segurança, a equidade do mercado de trabalho e a representatividade nas eleições,
Há também que se levar em consideração as reivindicações de alguns segmentos jovens da população negra, e aqui merece destaque a militância das feministas negras (Carneiro, 2011). Estas passaram a denunciar a situação de exclusão das mulheres negras, trazendo à baila os temas da violência doméstica, das dificuldades de acesso ao mercado de trabalho e da violência física e simbólica nos espaços não-domésticos. Essas denúncias trazem faces das desigualdades pouco consideradas pelas políticas públicas até bem pouco tempo.
Para finalizar, gostaria de chamar atenção para o fato de que é inegável que as relações raciais no Brasil vem se transformando a olhos vistos nos últimos vinte ou trinta anos. Vários autores têm sublinhado este fato em trabalhos importantes (Guimarães, 2006; Telles, 2004) O Brasil das duas primeiras décadas do século XXI é muito diferente do Brasil anterior à Constituição de 1988. Isso se deu como consequência de decisões que foram tomadas no passado tanto por militantes dos movimentos sociais, como por intelectuais ligados às universidades e, também, por atores com peso decisório dentro do Estado.O que nos coloca a questão de que os próximos passos se darão a partir das decisões que os segmentos sociais engajados na luta antirracista vierem a tomar no futuro próximo.
A importância dessas decisões se conecta ao fato de que, em verdade, a questão racial no Brasil parece ter mudado, mas não tanto assim. Como vimos, fala-se mais do racismo e das desigualdades raciais, temos mais negros nas universidades e mais visibilidade negra nas mídias. Concomitantemente, porém, os dados da violência contra jovens negros continuam absurdamente elevados, assim como os feminicídios de mulheres negras, as dificuldades de acesso ao mercado de trabalho para negros e negras, dentre outras evidências de que há muito ainda a ser feito para vencermos as diferenças raciais… Tudo isso continua a nos constranger como nação e nos mostrar os limites das mudanças ocorridas até agora. Oxalá possamos continuar a pensar e a implantar políticas públicas voltadas a desfazer esse nó que desde a colonização nos enreda.
BIBLIOGRAFIA
CARNEIRO, Sueli. Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.
GUIMARÃES, Antônio Sérgio A. Depois da democracia racial. Tempo Social. Revista de Sociologia da USP, v. 18, p. 269-290, 2006.
IBGE, Desigualdade por Cor ou Raça no Brasil. Estudo e Pesquisa, Informação Demográfica e Sócioeconômica, no. 41, 2019.
TELLES, Edward E., Race in Another America: The Significance of Skin Color in Brazil. Princeton e Oxford: Princeton University Press, 2004.
[2] A exemplo do julgamento sobre a constituicionalidade do sistema de cotas da UNB em abril de 2012.
[3] A exemplo da lei 12.711 de agosto de 2012, tornando obrigatória as cotas nas universidades federais.
[4] IBGE, 2019.