Por Matthew Aaron Richmond, Moisés Kopper, Valéria Cristina de Oliveira e Jaqueline Garza Placencia
Neste post, os organizadores do livro Espaços periféricos detalham o processo de construção desta obra coletiva e como ela contribui, a partir de pesquisas realizadas em Sapopemba, para atualizar o debate sobre espaços periféricos no Brasil à luz das muitas transformações socioeconômicas e políticas vividas a partir dos anos 2000.
Vista da estação Sapopemba da Linha 15 do metrô de São Paulo. Foto: Gabriel Feltran.
Apesar do título ser bastante geral, a foto na capa desta obra suscita uma pergunta inevitável: por que Sapopemba? Para alguns, principalmente para os leitores de outras cidades ou que não conhecem muito sobre os distritos da maior capital do país, a pergunta pode ser ainda mais inicial: que lugar é esse?
O registro visual é do nosso amigo, supervisor e também autor de um capítulo da coletânea, Prof. Gabriel Feltran, de dentro de uma estação do Monotrilho que atravessa boa parte de uma das principais vias de acesso à zona leste de São Paulo, a Av. Sapopemba, que também dá nome ao distrito que foi o laboratório dos 10 estudos que compõem o livro.
Sapopemba é um espaço periférico que dá corpo a essa coletânea por muitas razões. Algumas delas, absolutamente circunstanciais, fazem com que ele forneça um retrato de processos sociais que se desenham em muitas outras periferias do país. Outros motivos são próprios da dinâmica social e política daquele lugar.
Neste último caso, encontramos o fato de que a zona leste de São Paulo foi uma região que recebeu grandes fluxos migratórios na década de 60, por sua proximidade com o polo petroquímico de Capuava, em Santo André, e com a indústria automobilística de São Bernardo. A produção demandava grandes contingentes de trabalhadores com baixa qualificação e eles responderam a esse chamado, vindo de outras regiões do Brasil, fazendo com que a cidade se expandisse naquela direção.
Figura 2 – Divisão administrativa da cidade de São Paulo segundo distritos, com destaque para Sapopemba.
Esse movimento não se deu sem problemas. A falta de moradia e deficiências estruturais na provisão de serviços públicos e infraestrutura urbana já eram observados no final dos anos 70. Não tardou que a região se tornasse um pólo também dos movimentos sociais organizados.
A atuação sindical no ABC foi importante influência. Mas o papel da Igreja Católica de viés progressista foi central para fomentar uma militância intensa naquela região, a qual envolveu também intelectuais e a sociedade civil organizada em outras frentes. A transição democrática apresentou novas oportunidades, entre elas a possibilidade de participar mais diretamente dos processos de tomada de decisão. Ao mesmo tempo coincidiu com o surgimento de novos desafios, notavelmente o crescimento de grupos armados, o aumento da violência policial e a crise no sistema produtivo fabril. Como Estado, política e violência se construíram desde aquele momento até aqui?
Essa já era a pergunta de Emir Sader, em 1987, ao apresentar uma coletânea sobre os movimentos sociais no Brasil da reabertura política[i]. Lá, já apareciam as questões raciais e de gênero, o engajamento em torno dos temas estruturais, a violência do Estado como política de segurança pública e as dificuldades de mobilização popular em torno desses temas. Parte desses problemas também são refletidos aqui, nesta outra coletânea publicada 33 anos depois.
Porém, houve mudanças. O Estado se inseriu nesses espaços de outras maneiras, por meio de políticas públicas que não haviam sido ainda contempladas na década de 80. Houve melhoria dos indicadores socioeconômicos; o aumento da escolaridade média e do acesso ao ensino superior; o avanço do setor de serviços; a inclusão mediante o consumo; alternância entre períodos de maior e menor crescimento das mortes violentas (inclusive aquelas praticadas pelas polícias); a maior organização das redes de tráfico de drogas; e a criação de novas tecnologias para o incentivo à participação popular.
O Brasil mudou e com as mudanças também se alteraram os problemas de pesquisa. Essa obra reflete isso. Em 2017, quando nos encontramos, por uma feliz e produtiva coincidência, na condição de pós-doutorandos do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), fomos aos poucos sendo conduzidos à realização de nossos estudos na região de Sapopemba. Observando as transformações socioespaciais, os movimentos habitacionais, os projetos que articulam Estado e sociedade civil ou as percepções dos moradores acerca de sua capacidade de mobilização em torno da violência, cada um chegou ao distrito tentando responder a suas questões.
O trabalho cooperativo nos levou a atravessar juntos a cidade algumas vezes em direção à Fazenda da Juta e ao Parque Santa Madalena. Nosso objetivo era encontrar os parceiros que foram indispensáveis à construção deste trabalho, com destaque para lideranças como Valdênia, Renato, Damásio, Sidney, Deocleciana e tantos outros que se dedicam ao trabalho no Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Mônica Paião Trevisan (CEDECA-Sapopemba), no Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Sapopemba (CDHS), no Instituto Daniel Comboni e nos serviços socioassistenciais de atendimentos a medidas socioeducativas, nos Centros para Crianças e Adolescentes (CCA) e nos Centros para a Juventude (CJ).
O fim do estágio que nos levou a diferentes lugares do mundo (Belo Horizonte, Brasil; Bruxelas, Bélgica; Jalisco, México; e Londres, Reino Unido) não diminuiu nossa sensação de que havia ali uma oportunidade de utilizar aquela experiência como um modo de atualizar o debate sobre espaços periféricos no Brasil à luz das transformações vividas a partir dos anos 2000. Até 2020 foram sete décadas de estudos sobre as periferias brasileiras e, a respeito daquela última década, tivemos a oportunidade de analisar muitas dessas mudanças pela perspectiva de diferentes pesquisadores observando um único território.
Nesse ponto, o trabalho de Gabriel Feltran foi novamente essencial. Ele que também chegou à Sapopemba com parceiras como Ana Paula Galdeano, que é mais uma autora da obra, foi essencial para que chegássemos até lá e pudéssemos reunir esses outros autores. Organizar o trabalho, portanto, envolveu contactar pessoas que em outros momentos realizaram estudos na região, analisando temas relacionados àqueles que também nos levaram ao nosso próprio campo.
Foi um processo intenso que demandou a revisão dos textos, a organização das tratativas com a editora, e os convites para os comentadores que discutem ao final de cada uma das três partes do livro as contribuições daqueles trabalhos. Mas valeu a pena! O percurso nos ensinou muito sobre onde este trabalho se localiza dentro desse programa de pesquisas sobre espaços periféricos e sua relação com a violência, o território e o Estado. Esse foi um momento de transição entre a produção dos anos 2000 e aquela que começou a se desenhar a partir da crise econômica e política que culminou na eleição do presidente Jair Bolsonaro em 2018. Ou seja, se tratava de um contexto fortemente impactado pelas políticas públicas redistributivas e participativas dos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016) e de diversas transformações sociais e culturais que surgiram durante esse período. Mas ele também exibia contradições, limitações e frustrações que se tornariam mais evidentes na medida em que a crise se aprofundava.
A organização do livro ajudou a delinear essas análises e destacar os elementos transversais que podem ser observados no cotidiano desses espaços periféricos. E destacamos que em todos eles está presente o argumento da inacabada presença do Estado nas periferias. Um Estado que, por vezes, se faz presente como instituição de controle e repressão e, em outras, atua como um ambíguo provedor de políticas e serviços públicos.
Nesse último, mesmo com modestos investimentos em educação, saúde e infraestrutura, ele intervém, muitas vezes, em parcerias com setores não-governamentais e religiosos. Sua presença é materializada na atuação dos agentes do nível de rua, nos postos de saúde, nas escolas de educação básica e nos serviços de assistência social.
Assim, as pesquisas presentes no livro aprendem com os trabalhos que na virada do século XXI focalizaram o crescimento das igrejas evangélicas, a redução das desigualdades, a financeirização da moradia e o advento da assim chamada “nova classe média”, ao mesmo tempo em que investigaram o avanço da política de encarceramento, a guerra às drogas e a institucionalização do crime organizado. Lançam luz sobre a difícil construção e as grandes conquistas de políticas públicas participativas em áreas como saúde e moradia, enquanto também mostram como essas políticas continuavam inacessíveis para uma parte significativa da população das periferias mesmo no seu auge e cada vez mais conforme foram sendo corroídas.
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O livro Espaços Periféricos se situa, portanto, em um lugar privilegiado. A posição de quem pode compreender o papel da pesquisa social sobre periferias no Brasil e que agora, com outros autores que buscam interpretar o momento atual, vislumbra o que nos espera em termos de categorias úteis para observar o futuro.
Como indica o título, o livro está organizado em três partes. A primeira aborda a atuação e os modos de governo do Estado, observados das margens da cidade e por meio das políticas de atendimento socioeducativo (Ana Galdeano e Gabriela Lotta), de proteção socioassistencial básica (Jaqueline Placencia), de educação (Mariana Bittar) e da organização dos movimentos habitacionais (Moisés Kopper).
A segunda reúne textos que discutem a configuração e as consequências da violência que envolve o mercado ilegal de drogas (Liniker Batista), as percepções dos moradores sobre os problemas (Valéria Oliveira), e a resposta do Estado a movimentos políticos locais (Gabriel Feltran).
Na terceira seção os pesquisadores refletem sobre os modos de vida e as sociabilidades articuladas à experiência do território às margens por meio da memória a respeito das movimentos por moradia (Deocleciana Ferreira), da luta contínua dos moradores para construir seus lugares nas periferias (Matthew Richmond) e da construção do Sistema Único de Saúde (SUS) pela perspectiva periférica (Vera Schattan, Luís Marcondes e Tássia Alves).
Cada seção é encerrada por um comentário de importantes pesquisadores da área que aceitaram participar, oferecendo em suas páginas uma interlocução/provocação ao conteúdo dos capítulos. Assim, os textos generosos de Cláudia Fonseca e Lúcia Scalco (Parte 1), Fátima Cecchetto, Jacqueline Muniz e Rodrigo Monteiro (Parte 2) e João Marcos Lopes de Almeida (Parte 3), completam os 13 capítulos da obra.
Não há espaço para resumir todos os capítulos e comentários e suas contribuições para debates atuais sobre espaços periféricos. Mas cabe apresentar alguns exemplos representativos.
Na primeira seção, falando sobre intersetorialidade a partir de “baixo”, o capítulo de Galdeano e Lotta, “A lei em conflito com o adolescente”, aponta como as diferenças entre as concepções dos atores que conduzem os serviços de saúde, educação e assistência social podem prejudicar os resultados do atendimento ao adolescente em cumprimento de medida socioeducativa de meio aberto. Alvo de uma vigilância intensa da escola, sofre sanções como a expulsão como um reflexo dos processos de rotulação pelas práticas anteriores. Na saúde é visto como “usuário”. Pela assistência, há a busca pelas causas do comportamento agressivo ou de desrespeito a normas. O resultado é um impasse que reflete na continuidade da exclusão do adolescente.
Jaqueline Garza Placencia também lança um olhar sobre a política socioassistencial, mas agora observando os repertórios organizacionais e a participação das lideranças na “Busca de Proteção Social”. Em sua etnografia, Garza destaca que a adesão de entidades sociais a projetos de longa duração cofinanciados pelo Estado foi reflexo de mudança estratégica do ativismo local contra a violência e a insegurança. Isso ampliou o repertório de ação das instituições e dos seus educadores, alguns também oriundos de projetos mantidos na região. Porém, ainda assim, encontram dificuldades para proteger aqueles que já se encontram expostos a diferentes formas de violência: tanto as vítimas quanto os autores de atos infracionais.
Da mesma forma, não deveria ser natural essencializar a participação social incorporada às políticas de melhoramentos urbanos em periferias. Analisando a “Contabilidade política nas margens da cidade” por meio de etnografia realizada durante as atividades do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra Leste 1 (MTST), a pesquisa de Moisés Kopper descreve as tecnologias da participação e a maneira como elas envolvem a produção de hierarquias entre os moradores. O autor problematiza com isso a noção de que movimentos populares são horizontais por pressuposto, dado que aspectos como a assiduidade e a contribuição financeira são requisitos para distribuir os dividendos da política pública.
Na segunda seção do livro, sobre crime e violência, os autores chamam atenção para a coexistência de diferentes atores que caracterizam a regulação desse mundo nas periferias de São Paulo hoje em dia. O texto da Valéria Cristina de Oliveira capta as ambiguidades e tensões causadas pela convivência próxima entre moradores nessas áreas. A partir de um survey representativo da favela do Madalena (no bairro Parque Santa Madalena), o texto “Prefiro não me envolver” revela a pluralidade de concepções dos moradores sobre a gravidade dos problemas que vivenciam. Existe a imagem de um bairro desunido, onde muitos se queixam do som alto das festas aos finais de semana – inclusive, acionando a polícia para conter os participantes. Ao mesmo tempo, também observa a noção de que o tráfico de drogas e a violência policial são situações graves, mas a respeito das quais o medo fala mais alto que o desejo de intervir, mesmo em uma região onde a mobilização social em relação à garantia de direitos de crianças e adolescentes é intensa.
A terceira seção, sobre transformações socioespaciais, tem foco principal em um território específico de Sapopemba: o bairro de Fazenda da Juta. No seu capítulo, Deocleciana Ferreira resgata o processo de povoamento deste território através de ocupações organizadas por movimentos habitacionais na década de 1980 e por mutirões autogestionados na década seguinte, um processo no qual ela mesma participou como mutirante. Ferreira enfatiza o papel importante das organizações sociais existentes no território hoje em dia na preservação da memória coletiva desse processo constitutivo.
Figura 3 – Entrada do povo na terra da Fazenda da Juta ,1991.
Continuando essa história da ocupação da Fazenda da Juta até os dias atuais, Matthew Richmond identifica um processo de diversificação socioespacial e, imbricada com ele, uma produção de diferentes lugares dentro do bairro. Conforme o argumento de Ferreira, o senso de lugar de muitos dos moradores dos mutirões autogestionados é construído a partir da memória da luta por moradia, o que se manifesta tanto em orgulho das conquistas realizadas quanto em críticas de aspectos de deterioração social e física no bairro. Enquanto isso, moradores de espaços formados a partir de ocupações irregulares pouco organizadas vivenciam o lugar em relação a (possíveis) processos de formalização e melhoria social e física ao longo do tempo. Enquanto uma narrativa de consolidação e superação emerge nas falas de moradores de apartamentos que foram ocupados na década de 1990 e depois regularizados e reformados, ocupações irregulares mais recentes continuam a ser construídas como “ainda-não-lugares”, definidas por sua precariedade jurídica e física e pela estigmatização simbólica. Essas hierarquias socioespaciais e simbólicas dentro e entre os espaços periféricos revelam desigualdades no alcance das políticas de moradia popular, infraestrutura e zeladoria desde a redemocratização.
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Como nestes exemplos, toda a obra documenta as nuances da atuação do Estado, o fazer político e as interfaces de ambos com a violência em espaços periféricos. Porém, ainda durante a organização da coletânea, já era possível observar as mudanças contextuais que devem informar as novas leituras que estão sendo construídas agora sobre essas mesmas periferias brasileiras.
A crise política e econômica que teve início ainda no final do primeiro governo Dilma Rousseff agravou o fenômeno de descrença da população em relação à classe política. Entre outras coisas, isso contribuiu para a ascensão do presidente Jair Bolsonaro e, com ele, de outros governadores e parlamentares informados pelo mesmo discurso de combate à corrupção, de enfrentamento à criminalidade e ao tráfico de drogas e de defesa de políticas liberais de privatização e austeridade econômica.
Sua distância em relação a pautas como as desigualdades sociais e o seu rechaço ao debate sobre direitos humanos e sobre o controle da violência policial poderiam afastá-lo do eleitorado residente em áreas onde tais problemas são vividos há anos pela população. Porém, nas eleições presidenciais de 2018, Bolsonaro foi o candidato mais votado no país, sendo, inclusive, escolhido no 2º turno por mais de 40% dos eleitores de Sapopemba, como apresentamos no capítulo introdutório a partir de dados da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE). Como discutimos em mais detalhes no livro, esse fenômeno aponta para transformações subjetivas e políticas importantes entre os eleitores receptores de políticas econômicas e sociais da era petista.
Também se tomamos os dados sobre a pandemia de Covid-19, na comparação com regiões de maior nível socioeconômico (em termos de renda média e escolaridade), Sapopemba e outras periferias de São Paulo e do Brasil apresentam as maiores taxas de mortalidade pelo novo coronavírus[ii]. As dificuldades de cumprir medidas de distanciamento social pela necessidade de manter atividades presenciais de trabalho, as limitadas condições sanitárias e o acesso insuficiente a serviços de saúde expõem essa população a maiores riscos de se tornarem vítimas fatais da doença.
O que vem a seguir, certamente, já tem mobilizado os pesquisadores sobre periferias brasileiras e, ao que tudo indica, essas leituras devem consolidar a nossa impressão de que está se iniciando uma nova etapa dos estudos sobre o tema no país. Para isso, é importante que ela conte com material amplo que observe diferentes aspectos da vida social, exatamente como propomos neste trabalho.
Enfim, esta obra é o ponto de convergência de uma certa conjuntura histórica, um espaço periférico específico e de um grupo diverso de pesquisadores que tomam os espaços periféricos e suas complexidades como tema a partir de uma mesma região. Todos os autores seguem dedicando seus esforços de pesquisa a compreender, mesmo que em outras bordas, de outras cidades, as dinâmicas sociais que se tornaram ainda mais complexas com a pandemia de Covid-19 e com as crises econômica e política que se agravaram em decorrência dela. Esperamos que este material fomente a discussão e estimule outros encontros que também lancem um olhar atento a esses espaços. Agradecemos às agências de financiamento das pesquisas, todas mencionadas no livro e, especialmente, ao povo de Sapopemba que também é parceiro neste trabalho.
[i] SADER, Emir (org.). Movimentos sociais na transição democrática. São Paulo: Cortez, 1987.
[ii] MAIA, Dhiego. Bairro paulistano de Sapopemba busca vacinação em massa contra a Covid-19. Folha de São Paulo. São Paulo, 19. Jul. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/07/bairro-paulistano-de-sapopemba-busca-vacinacao-em-massa-contra-a-covid-19.shtml. Acesso em: 25 jul. 20201.