Por Svetlana Ruseishvili (UFSCAR/Coordenadora do InterMob – Grupo Interdisciplinar de Estudos das Migrações e Mobilidade)
Desde o início da invasão russa na Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, cerca de 6,5 milhões de pessoas deixaram as suas casas nas regiões afetadas pelo conflito e 4,6 milhões de refugiados cruzaram a fronteira com outros países europeus. Diante da intensa cobertura midiática, algumas práticas de gestão dessa população em deslocamento têm chamado atenção do público, sobretudo no chamado Sul Global. No Brasil, o tratamento especial que os refugiados ucranianos receberam na Europa é interpretado comumente como resultado de sua branquitude. Não é raro ver o argumento: “os ucranianos têm prioridade e privilégios no sistema de refúgio europeu porque são brancos”. De fato, essa afirmação foi provocada por algumas manifestações na mídia europeia que os comparavam com os outros povos, “menos civilizados”. Vista do Brasil, onde as feridas da desigualdade racial ainda não se cicatrizaram, a Europa parece um continente no qual a branquitude e a prosperidade são homogêneas e opostas ao racismo contra os migrantes e refugiados, racializados como não brancos e não cristãos. Não quero ignorar o racismo, a islamofobia e o uso político da hospitalidade característicos para o sistema europeu do asilo, que merecem uma análise crítica separada. No entanto, seria ingênuo enxergar a Europa como um continente homogêneo, ainda mais quando se trata da relação com os povos eslavos, historicamente marcada pelas assimetrias de poder e relações de dominação.
Não é coincidência a proximidade das palavras “eslavo” e “escravo”, as duas palavras possuem a mesma raiz etimológica. A palavra “escravo” vem do latim sclavus que significa o povo que se denominava eslavo e habitava a Europa do Leste, nas margens do rio Dnipr e do Mar Negro. Tendo sido um dos povos mais numerosos da Europa na época medieval, os eslavos frequentemente eram aprisionados e escravizados em guerras e invasões pelos bizantinos, tribos germânicas e árabes. O caso mais celebre é o da Hürrem Haseki Sultan, ou Roxelana, a consorte e esposa favorita do Solimão, o Magnífico, o sultão otomano do século XVI. Escravizada pelos tártaros na sua aldeia natal na região da Rutênia (Oeste da Ucrânia), ela foi levada ao Império Otomano e vendida para o harém do Sultão. Roxelana se tornou a esposa favorita do Sultão e uma mulher de grande influência na corte otomana, conhecida na Europa Ocidental em sua vida e uma lenda até os dias de hoje (que, não sem a interferência do orientalismo, contribuiu para a sexualização atual das mulheres do Leste europeu).
No período moderno, o domínio econômico, político e cultural dos povos germânicos e romano-célticos sobre os eslavos na Europa se aprofundou. Na passagem dos séculos XIX e XX, a tensão revolucionária no Império Russo atraia atenções da Europa Ocidental. O status do próprio Império dos czares é descrito por muitos historiadores como “periférico” (Kagarlitsky, 2008) ou “subalterno” (Morozov, 2015). Tanto os movimentos populares pela queda da monarquia, quanto os da emancipação nacional dos povos oprimidos pelo imperialismo czarista nas franjas eslavas da Europa eram vistos pelos impérios ocidentais com certa preocupação. Ao mesmo tempo, os movimentos revolucionários do Leste Europeu eram intelectual e politicamente ligados à cultura europeia: materialmente através dos contatos nas diásporas dos exilados (russos, ucranianos, belarussos, georgianos, judeus) e no plano das ideias por meio do diálogo intenso com intelectuais ocidentais.
Os eslavos e o Leste europeu, assim, se relacionaram com os impérios latinos e anglo-germânicos nos moldes de um colonialismo interno, constituindo uma espécie do “outro colonial” dentro da própria Europa (Papadopoulos, 2002). O estabelecimento do bloco soviético que englobou todos os países eslavos da Europa e a polarização ideológica da Guerra Fria aprofundou tais relações de poder entre a Europa Ocidental e Europa do Sul e do Leste. Hoje, na Europa integrada, as desigualdades socioeconômicas ainda refletem essas relações de poder históricas.
Desigualdades econômicas na Europa contemporânea
Em 2004, dez novos países incorporaram a União Europeia, dos quais 62 por cento da população era eslava. Com isso, as relações assimétricas de poder entre o núcleo germano-latino e os novos países-membros refletiam tensões étnicas e desigualdades econômicas. Alguns autores apontam surgimento de um certo “pânico moral”, provocado por “estereótipos e preconceitos dos países “antigos” (alemães e latinos) em relação aos “recém-chegados”. […] A principal questão dentro deste processo, que continua a perseverar, tem sido que os estados eslavos reivindicaram mais do que o grupo germano-latino estava disposto a dar; em outras palavras, eles reivindicaram tratamento igual, enquanto os estados germano-latinos os trataram como unidades subordinadas” (Udovic, Podgornik, 2016, p. 117).
Mapa da população eslava na Europa
A subordinação e dependência dos países do Leste e do Sul da Europa, nem sempre eslavos, mas com a sua forte presença, se evidencia em termos econômicos. Tais países têm tido menores PIBs per capita no continente. Os últimos no ranking são Ucrânia (3.116), Moldova (3250), Belarus (6222), Montenegro (6523), Sérbia (6533), Bulgária (8050), entre outros. Em contraste, os maiores PIBs na região são de Luxemburgo (101207), Suiça (85682), Irlanda (78558) e países escandinavos[1].
As desigualdades socioeconômicas acentuadas entre os países geraram corredores migratórios regionais relativamente estáveis. De acordo com os relatórios da Organização Internacional para Migrações (OIM), em 2017, Romênia, Polônia, Itália, Portugal e Bulgária eram países com maior número de seus cidadãos vivendo em outros Estados membros da União Europeia.
Sexualização das mulheres eslavas e os riscos de exploração sexual das refugiadas ucranianas
A instabilidade econômica dos países do antigo bloco soviético, a deterioração de redes de proteção social e a sexualização do fenótipo eslavo se traduzem em massiva presença de mulheres do Leste europeu entre as vítimas da exploração e do tráfico humano para a Europa do Oeste e Central. O último relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, 2020) apontou que 54% de vítimas de tráfico humano na Europa do Oeste eram originárias dos países do Sul, Sudeste e Leste europeu. Diferentemente dos grupos de outras regiões do mundo (África subsaariana ou Sudeste asiático), o tráfico proveniente desses países é predominantemente para fins de exploração sexual e quase completamente feminino (adultos e crianças). Embora esses números tenham diminuído desde os anos 1990, a parcela de mulheres eslavas nas redes de exploração sexual permanece marcante.
Esses números refletem a tendência da sexualização da identidade das mulheres migrantes eslavas e do Sudeste Europeu que tem sido amplamente discutida na literatura acadêmica europeia desde a queda do muro de Berlim e da União Soviética. “Sendo etnicamente russas ou romenas, por um lado, e ‘racialmente brancas’, por outro, ao mesmo tempo em que também são sexualizadas como prostitutas ou ‘perdidas’, as mulheres destacam o caráter complexo e interseccional da construção de diferenças”, aponta Spyrou (2013) em sua investigação da sexualização da identidade étnica das mulheres russas e romenas.
Cartilha informativa para mulheres ucranianas refugiadas sobre como evitar o abuso sexual no exterior.
A sexualização das mulheres eslavas também repercutiu no Brasil. O deputado estadual Arthur Do Val, em sua visita à fronteira entre Ucrânia e Eslováquia no início de março, enviou mensagens particulares para os seus amigos comentando a “beleza” e a “disponibilidade” das refugiadas ucranianas na fila do posto fronteiriço. Os áudios vazaram e os comentários do deputado resultaram na aprovação do pedido de cassação de seu mandato pelo Conselho de ética da Assembleia Legislativa do estado de São Paulo.
Certamente o caso do deputado brasileiro não é isolado. A preocupação com exploração e abuso sexual de mulheres e crianças ucranianas em situação de deslocamento forçado tem crescido nas agências da ONU que monitoram o êxodo ucraniano[2]. O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, advertiu no Twitter: “Para os predadores e traficantes de seres humanos, a guerra na Ucrânia não é uma tragédia, é uma oportunidade, e as mulheres e as crianças são os alvos”. Os riscos de abuso sexual aumentam na medida em que a população em êxodo é predominantemente feminina, com grande presença de crianças e jovens desacompanhados, sem conhecimento dos idiomas locais e do inglês e em situação precária econômica e de abrigamento[3].
Aprofundar a leitura do acolhimento dos refugiados ucranianos
Olhar para Europa e ver para além da “branquitude” nos ajuda enxergar a historicidade das assimetrias de poder entre diferentes grupos étnico-linguísticos, religiosos e nacionais, “nativos” no continente. Ao mesmo tempo que as refugiadas ucranianas estão calorosamente recebidas pelas populações dos países fronteiriços, essas mulheres e crianças são presas fáceis do tráfico humano para exploração sexual dentro da própria Europa. Ao invés de cultivar o ressentimento pelo acolhimento aparentemente desigual dado para os refugiados ucranianos em comparação com outros grupos de solicitantes de asilo, sobretudo os árabes e dos países da África subsaariana, é preciso enxergar que o deslocamento forçado aprofunda desigualdades históricas e cria novas vulnerabilidades para as pessoas em trânsito. Hierarquizar o sofrimento leva ao ressentimento e destrói o fundamento da ação coletiva. Prefiro enxergar o atual impulso popular europeu de hospitalidade espontânea em relação aos ucranianos como um precedente moral e político para que seja reivindicado o direito ao asilo verdadeiramente universal independentemente de procedência nacional, religião ou cor de pele dos solicitantes.
Referências bibliográficas:
IOM – International Organization for Migration. World Migration Report. Geneva, 2020.
Kagarlitsky, Boris. Empire of the Periphery: Russia and the World-system. Pluto Press, 2008.
Morozov, Viatcheslav. Russia’s Postcolonial Identity: a Subaltern Empire in a Eurocentric World. Palgrave Macmillan, 2015.
Papadopoulos Renos K. “The other other: when the exotic other subjugates the familiar other”. Journal of Analytical Psychology, 47, p. 163–188, 2002.
Spirou, Spiros. “Children and the Sexualized Construction of Otherness: the Imaginary Perceptions of Russian and Romanian Immigrant Women in Cyprus”. Int. Migration & Integration, 14, p. 327–343, 2013.
Udovič, Boštjan and Podgornik, Ana. “Cultural Diplomacy of Slavic European Union Member States: A Cross-country Analysis”. TalTech Journal of European Studies, vol. 6, no. 2, pp.117-136, 2016.
UNODC – United Nations Office on Drugs and Crime. Global Report on Trafficking in Persons. United Nations, New York, 2020.
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[1] https://tradingeconomics.com/country-list/gdp-per-capita?continent=europe
[2] https://www.youtube.com/watch?v=VWaezl3NWA0
[3] https://www.bbc.com/news/world-europe-60891801?fbclid=IwAR1BKSNRtacWBogLH7W-jnVlCz25yvg8FiU1nq_VRJmaJWTnkD8bpmtzbHA