Por Gabriela Lotta, professora de Administração Pública e Governo da Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP) e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e
Roberto Olinto, pesquisador associado do IBRE/FGV, Ex-presidente e ex-diretor de pesquisas do IBGE
Neste post, Gabriela Lotta e Roberto Olinto discutem sobre a suspensão do Censo Demográfico no Brasil e suas implicações para o desenvolvimento das políticas públicas no país.
A experiência do Brasil com censos demográficos se iniciou em 1872 com o censo do Império e, com sucessos e fracassos, o país tornou-se referência mundial neste tipo de operação estatística. A cada dez anos, o Brasil se redescobre por meio da pesquisa censitária realizada pelo IBGE. Um censo traz ao país a sua realidade, o obriga a ser ver de forma crua. Permite o exercício da cidadania, vai até aos domicílios e diz para o cidadão: você existe, precisamos de você. Desde sua criação, na década de 30, o IBGE assumiu uma função primordial para o país: fazer o Brasil se conhecer. E, entre todas as várias pesquisas existentes, o censo é aquela que mais nos permite retratar a realidade do país e dos brasileiros. Isso porque o censo é a única pesquisa com cobertura universal de todos os domicílios brasileiros. Ou seja, ele tem capacidade de revelar o Brasil e os brasileiros nas suas várias facetas e heterogeneidades, do Morro Caburai em Rondônia ao Chuí no Rio Grande do Sul, no espaço urbano e nas áreas rurais, vai até as populações ribeirinhas e, também, àquelas que moram em grandes condomínios urbanos, passando pelas comunidades nas periferias e nos morros, encontrando os excluídos, e os incluindo. Dada sua completude e universalidade, a pesquisa censitária é, portanto, insubstituível.
Neste sentido, um detalhe muitas vezes esquecido é que, sem as estatísticas e a geoinformação (o censo geoprocessa todos os domicílios) não teríamos mapas integrando território e cidadãos em cortes geográficos muito detalhados.
Ao permitir que o Brasil se conheça e, ao gerar um retrato muito fiel da realidade, o censo cumpre diversas funções.
A primeira função é subsidiar processos de planejamento públicos e privados. Tomando um exemplo bem atual: como planejar o SUS, onde alocar pessoal e equipamentos sem saber onde as pessoas estão e seu perfil populacional? Como distribuir as vacinas por município sem saber onde estão e como são as populações? Para sabermos o quanto investir em creches, ensino básico, médio ou superior ou em serviços para população idosa, temos que saber quantas crianças, adolescentes, adultos e idosos temos, de que idade, onde moram, quanto ganham, se pagam aluguel ou não. Para construirmos políticas sociais, como o Bolsa Família, temos que saber a renda da população e sua distribuição espacial. E as políticas habitacionais demandam conhecer onde as pessoas moram, como são suas casas e se pagam aluguel. Os dados provenientes do censo, portanto, geram um excelente diagnóstico que se torna subsídio para planejamento e possibilitam a realização de avaliações de efetividade.
Em segundo lugar, os dados do censo servem para planejamento do mercado e da economia. Investimento produtivo de médio e longo prazo pressupõe conhecer a população, sua renda e suas propriedades. Ter informações localizadas em mapas permite avaliar onde localizar os negócios. Quem quer investir no setor educacional, por exemplo, precisa saber qual o perfil etário da população e sua distribuição no território. Quem quer investir em serviços, precisa de informações sobre perfil demográfico, etário e de renda da população.
Em terceiro lugar, atores da sociedade, como a academia, a imprensa e movimentos sociais, utilizam os dados censitários para suas pesquisas, para construção de informação ou mesmo de reinvindicações e pautas. É importante lembrar, por exemplo, que qualquer pesquisa amostral precisa de um universo para calcular o tamanho e perfil da amostra. E os dados do censo funcionam como reflexo deste universo a partir do qual podemos, por exemplo, calcular amostras para pesquisas acadêmicas, para pesquisas de opinião e até mesmo para pesquisas de intenção de voto.
Estes vários exemplos mostram a relevância e insubstituibilidade do censo demográfico no Brasil. A sua realização, no entanto, requer investimento, planejamento e, acima de tudo, expertise. E nisso o Brasil historicamente se destacou. Há poucas pesquisas censitárias com a complexidade e o tamanho da brasileira, inclusive devido às características sociais e demográficas do país. Ao mesmo tempo, o Brasil foi um dos primeiros países a digitalizar o processo de coleta dos dados, no Censo de 2010, com uso de dispositivos de coleta digitais (telefones móveis ou tablets) por parte dos recenseadores e com transmissão dos dados por Internet – experiência que foi posteriormente exportada para vários países. A expertise do IBGE em pesquisas é reconhecida mundialmente e o país já assumiu postos chave internacional em decorrência disso – como a presidência da comissão de estatística da ONU, por exemplo. O Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) tem trabalhado com o IBGE para apoiar diversos países na realização de seus censos, tanto com cessão de equipamentos como com equipes de campo.
Em 2018, uma pesquisa coordenada pelo BID mostrou que, entre 10 países da América Latina, o IBGE figurava como o segundo nas chamadas capacidades estatísticas. O índice media a autonomia, qualificação dos servidores, estabilidade da organização e das pesquisas e uso das informações por parte da sociedade. Esse resultado é reflexo do processo de construção institucional pelo qual o IBGE passou durante os mais de 80 anos de existência e que transformaram a organização numa das mais fortes e estáveis da república brasileira.
No entanto, apontava a mesma pesquisa, a força das capacidades estatísticas de um país depende da capacidade de permanência destas características. E isso, por sua vez, está diretamente relacionado a como os políticos enxergam e apoiam (ou destroem) os órgãos de estatística. A credibilidade na produção, transparência de seus métodos e divulgação de dados com uma narrativa clara e compreensível pela maioria da população são componentes centrais das capacidades estatísticas; bem como a garantia de continuidade nas pesquisas de forma periódica. Na América Latina tivemos exemplos recentes de intervenção nos órgãos de estatística que, infelizmente, abalaram a legitimidade das organizações e a credibilidade de seus dados. O caso da intervenção nos dados econômicos que ocorreu na Argentina é um dos mais emblemáticos neste sentido, mas também tivemos recentemente o caso do censo do Chile que teve que ser refeito por problemas metodológicos.
Os vários ataques que o IBGE, a pesquisa de renda e emprego e o Censo têm sofrido nos últimos anos são um risco enorme para as capacidades estatísticas nacionais. Desde 2019 a organização está sob diversos ataques. A politização do órgão – que por muitos anos foi presidido por quadros internos –, a crítica e tentativa de desqualificação da produção estatística e o corte orçamentário são algumas evidências deste processo. É importante lembrar, por exemplo, os vários questionamentos que o Presidente Bolsonaro fez aos resultados de dados econômicos publicados pelo IBGE. Ou mesmo aquela infeliz frase de Paulo Guedes de que “Se perguntar demais você vai acabar descobrindo coisas que nem queria saber” como uma justificativa para revisão do questionário do censo.
Nestes últimos dois anos, o questionário do censo foi reduzido sem debate público – excluindo-se questões que não são levantadas por outras pesquisas, como a renda de todos os moradores, o pagamento de aluguel, a migração ou materiais das casas. Além disso, foram incluídas perguntas novas que também não passaram por debate público. O IBGE luta há muitos anos com a liberação de orçamento para a realização de pesquisas. A contagem populacional prevista para 2015, que é complemento aos censos decenais, teve seu orçamento cortado por vários anos, acabando por não ser realizada. O censo agropecuário de 2017 foi realizado através de uma emenda parlamentar, já que o orçamento havia sido cortado. Por fim, o corte orçamentário que o Censo tem vivido desde 2018 fragiliza sobremaneira o planejamento da operação, compra de equipamentos, treinamento de equipes e, culmina atingindo a capacidade de coletar de dados. E, embora a pandemia tenha criado uma barreira para execução do censo em 2020, ele já não estava garantido, considerando as restrições orçamentárias. Soma-se a isso um problema estrutural que o IBGE vem enfrentando: a alta taxa de aposentadoria sem reposição de quadros (nem previsão de concursos). Todas essas evidências mostram que a produção estatística nacional, de forma geral, e o Censo, de forma específica, estão sob risco. Em maio de 2021 o STF obrigou a realização do censo em 2022, o que consideramos uma decisão acertada, dado o estágio de seu desenvolvimento e os riscos da pandemia. A realização de um censo ainda em 2021 – sem orçamento, com cortes no questionário, com os riscos da pandemia e com atrasos no planejamento – poderiam prejudicar os resultados da pesquisa. No entanto, a realização de um censo em 2022 que tenha qualidade, credibilidade e capacidade de gerar subsídios para tomada de decisão depende de uma luta urgente da sociedade brasileira. É preciso garantir agora o orçamento para as atividades de planejamento, teste e contratação de pessoal ainda em 2021. Também é preciso batalhar a partir de agora para o orçamento em 2022. O orçamento inicial do censo era de 3,1 bilhões e foi cortado para 2 bilhões em 2021, dos quais apenas 71 milhões foram sancionados. É prioritário estimar um orçamento que permita um censo de qualidade. Além disso, as várias atividades necessárias para realização de um censo de qualidade precisam ser iniciadas já, como a revisão (com debate público amplo) do questionário; os testes; a contratação de pessoal; o treinamento, etc. Além disso, os efeitos da pandemia sobre a população exigem repensar o plano e adapta-lo à situação atual. Caso contrário, corremos o risco de ou não conseguir realizar o censo em 2022, ou coletar dados insuficientes ou com problemas metodológicos graves que inviabilizem seu uso. Um exemplo dos riscos deste debate mal qualificado é a proposta de transformar o censo em coleta por telefone, sem considerar como esta medida pode excluir parcela da população e como ela implica em mudanças metodológicas que podem prejudicar o histórico de coleta dos dados.
Neste processo, é importante relembrar as origens do censo e sua importância: fazer o Brasil se conhecer retratando-o e possibilitando, assim, a cidadania. Um país que não tem dados não se conhece. Um país que não se conhece não tem evidências para tomar boas decisões e não consegue planejar políticas públicas. No início de sua presidência, Bolsonaro afirmou que era preciso primeiro destruir tudo, deixar terra arrasada, para depois reconstruir. A destruição do Censo e o enfraquecimento do IBGE são peças fundamentais nesta estratégia do presidente, destruir a memória e acabar com as evidências que o país tem sobre si. E um país que não lembra e não se conhece pode ser inventado e construído ao bel prazer dos governantes da vez.